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Triste Fim de Policarpo Quaresma
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Lima Barreto
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PRIMEIRA PARTE
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I
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A LIÇÃO DE VIOLÃO
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Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major
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Quaresma, bateu em casa às quatro e quinze da tarde. Havia mais de
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vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de Guerra, onde era
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subsecretário, bongava pelas confeitarias algumas frutas, comprava
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um queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria francesa.
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Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora, de forma que, às três
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e quarenta, por ai assim, tomava o bonde, sem erro de um minuto, ia
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pisar a soleira da porta de sua casa, numa rua afastada de São
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Januário, bem exatamente às quatro e quinze, como se fosse a
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aparição de um astro, um eclipse, enfim um fenômeno matematicamente
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determinado, previsto e predito.
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A vizinhança já lhe conhecia os hábitos e tanto que, na casa do
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Capitão Cláudio, onde era costume jantar-se aí pelas quatro e meia,
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logo que o viam passar, a dona gritava à criada: “Alice, olha que
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são horas; o Major Quaresma já passou.”
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E era assim todos os dias, há quase trinta anos. Vivendo em casa
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própria e tendo outros rendimentos além do seu ordenado, o Major
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Quaresma podia levar um trem de vida superior ao seus recursos
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burocráticos, gozando, por parte da vizinhança, da consideração e
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respeito de homem abastado.
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Não recebia ninguém, vivia num isolamento monacal, embora fosse
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cortês com os vizinhos que o julgavam esquisito e misantropo. Se não
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tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição
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que merecera, fora a do doutor Segadas, um clínico afamado no lugar,
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que não podia admitir que Quaresma tivesse livros: “Se não era
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formado, para quê? Pedantismo!”
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O subsecretário não mostrava os livros a ninguém, mas acontecia que,
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quando se abriam as janelas da sala de sua livraria, da rua
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poder-se-iam ver as estantes pejadas de cima a baixo.
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Eram esses os seus hábitos; ultimamente, porém, mudara um pouco; e
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isso provocava comentários no bairro. Além do compadre e da filha,
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as únicas pessoas que o visitavam até então, nos últimos dias, era
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visto entrar em sua casa, três vezes por semana e em dias certos, um
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senhor baixo, magro, pálido, com um violão agasalhado numa bolsa de
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camurça. Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhança. Um
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violão em casa tão respeitável! Que seria?
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E, na mesma tarde, urna das mais lindas vizinhas do major convidou
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uma amiga, e ambas levaram um tempo perdido, de cá para lá, a
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palmilhar o passeio, esticando a cabeça, quando passavam diante da
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janela aberta do esquisito subsecretário.
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Não foi inútil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal
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sujeito, empunhando o “pinho” na posição de tocar, o major,
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atentamente, ouvia: “Olhe, major, assim”. E as cordas vibravam
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vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre aduzia: “É ‘ré’,
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aprendeu?”
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Mas não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o
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major aprendia a tocar violão. Mas que coisa? Um homem tão sério
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metido nessas malandragens!
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Uma tarde de sol - sol de março, forte e implacável - aí pelas
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cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma rua de São
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Januário povoaram-se rápida e repentinamente, de um e de outro lado.
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Até da casa do general vieram moças à janela! Que era? Um batalhão?
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Um incêndio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça baixa, com
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pequenos passos de boi de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço
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um violão impudico.
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É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em papel, mas
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o vestuário não lhe escondia inteiramente as formas. À vista de tão
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escandaloso fato, a consideração e o respeito que o Major Policarpo
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Quaresma merecia nos arredores de sua casa, diminuíram um pouco.
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Estava perdido, maluco, diziam. Ele, porém, continuou serenamente
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nos seus estudos, mesmo porque não percebeu essa diminuição.
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Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava
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sempre baixo, mas, quando fixava alguém ou alguma coisa, os seus
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olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração,
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e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da coisa que
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fixava.
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Contudo, sempre os trazia baixos, como se se guiasse pela ponta do
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cavanhaque que lhe enfeitava o queixo. Vestia-se sempre de fraque,
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preto, azul, ou de cinza, de pano listrado, mas sempre de fraque, e
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era raro que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito
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alta, feita segundo um figurino antigo de que ele sabia com precisão
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a época.
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Quando entrou em casa, naquele dia, foi a irmã quem lhe abriu a
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porta, perguntando:
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- Janta já?
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- Ainda não. Espere um pouco o Ricardo que vem jantar hoje consoco.
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- Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com
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posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro,
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um quase capadócio - não é bonito!
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O major descansou o chapéu-de-sol - um antigo chapéu-de-sol, com a
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haste inteiramente de madeira, e um cabo de volta, incrustado de
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pequenos losangos de madrepérola - e respondeu:
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- Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que
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todo homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais
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genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que
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ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em
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honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas, que teve um
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auditório de fidalgas. Beckford, um inglês notável, muito o elogia.
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- Mas isso foi em outro tempo; agora...
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- Que tem isso, Adelaide? Convém que nós não deixemos morrer as
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nossas tradições, os usos genuinamente nacionais...
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- Bem, Policarpo, eu não quero contrariar você; continue lá com as
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suas manias.
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O major entrou para um aposento próximo, enquanto sua irmã seguia em
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direitura ao interior da casa. Quaresma despiu-se, lavou-se, enfiou
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a roupa de casa, veio para a biblioteca, sentou-se a uma cadeira de
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balanço, descansando.
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Estava num aposento vasto, com janelas para uma rua lateral, e todo
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ele era forrado de estantes de ferro.
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Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com os
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livros de maior tomo. Quem examinasse vagarosamente aquela grande
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coleção de livros havia de espantar-se ao perceber o espírito que
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presidia a sua reunião.
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Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais: o
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Bento Teixeira, da Prosopopéia; o Gregório de Matos, o Basílio da
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Gama, o Santa Rita Durão, o José de Alencar (todo), o Macedo, o
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Gonçalves Dias (todo), além de muitos outros. Podia-se afiançar que
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nem um dos autores nacionais ou nacionalizados de oitenta ora lá
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faltava nas estantes do major.
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De História do Brasil, era farta a messe: os cronistas, Gabriel
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Soares, Gandavo; e Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, Armitage,
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Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (Geschichte von
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Brasilien), Melo Morais, Capistrano de Abreu, Southey, Varnhagen,
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além de outros mais raros ou menos famosos. Então no tocante a
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viagens e explorações, que riqueza! Lá estavam Hans Staden, o Jean
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de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o Príncipe de Neuwied, o John
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Mawe, o von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães e se se
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encontravam também Darwin, Freycinet, Cook, Bougainville e até o
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famoso Pigafetta, cronista da viagem de Magalhães, é porque todos
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esses últimos viajantes tocavam no Brasil, resumida ou amplamente.
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Além destes, havia livros subsidiários: dicionários, manuais,
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enciclopédias, compêndios, em vários idiomas.
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Vê-se assim que a sua predileção pela poética de Porto Alegre e
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Magalhães não lhe vinha de uma irremediável ignorância das línguas
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literárias da Europa; ao contrário, o major conhecia bem
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sofrivelmente francês, inglês e alemão; e se não falava tais
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idiomas, lia-os e traduzia-os corretamente. A razão tinha que ser
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encontrada numa disposição particular de seu espírito, no forte
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sentimento que guiava sua vida. Policarpo era patriota. Desde moço,
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aí pelos vinte anos, o amor da Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora
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o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e
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absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que
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Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi
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num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os
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seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas
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progressivas, com pleno conhecimento de causa.
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Não se sabia bem onde nascera, mas não fora decerto em São Paulo,
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nem no Rio Grande do Sul, nem no Pará. Errava quem quisesse
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encontrar nele qualquer regionalismo; Quaresma era antes de tudo
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brasileiro. Não tinha predileção por esta ou aquela parte de seu
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país, tanto assim que aquilo que o fazia vibrar de paixão não eram
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só os pampas do Sul com o seu gado, não era o café de São Paulo, não
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eram o ouro e os diamantes de Minas, não era a beleza da Guanabara,
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não era a altura da Paulo Afonso, não era o estro de Gonçalves Dias
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ou o ímpeto de Andrade Neves - era tudo isso junto, fundido,
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reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro.
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Logo aos dezoito anos quis fazer-se militar; mas a junta de saúde
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julgou-o incapaz. Desgostou-se, sofreu, mas não maldisse a Pátria. O
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ministério era liberal, ele se fez conservador e continuou mais do
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que nunca a amar a “terra que o viu nascer”. Impossibilitado de
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evoluir-se sob os dourados do exército, procurou a administração e
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dos seus ramos escolheu o militar.
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Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos,
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de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis e termos
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técnicos de artilharia, aspirava diariamente aquele hálito de
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guerra, de bravura, de vitória, de triunfo, que é bem o hálito da Pátria.
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Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a Pátria, nas
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suas riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua
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literatura e na sua política. Quaresma sabia as espécies de
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minerais, vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o valor do
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ouro, dos diamantes exportados por Minas, as guerras holandesas, as
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batalhas do Paraguai, as nascentes e o curso de todos os rios.
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Defendia com azedume e paixão a proeminência do Amazonas sobre todos
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os demais rios do mundo. Para isso ia até ao crime de amputar alguns
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quilômetros ao Nilo e era com este rival do “seu” rio que ele mais
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implicava. Ai de quem o citasse na sua frente! Em geral, calmo e
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delicado, o major ficava agitado e malcriado, quando se discutia a
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extensão do Amazonas em face da do Nilo.
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Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupi-guarani. Todas as
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manhãs, antes que a “Aurora, com seus dedos rosados abrisse caminho
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ao louro Febo”, ele se atracava até ao almoço com o Montoya, Arte y
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diccionario de la lengua guaraní ó más bien tupí, e estudava o
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jargão caboclo com afinco e paixão. Na repartição, os pequenos
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empregados, amanuenses e escreventes, tendo notícia desse seu estudo
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do idioma tupiniquim, deram não se sabe por que em chamá-lo -
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Ubirajara. Certa vez, o escrevente Azevedo, ao assinar o ponto,
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distraído, sem reparar quem lhe estava às costas, disse em tom
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chocarreiro: “Você já viu que hoje o Ubirajara está tardando?”
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Quaresma era considerado no arsenal: a sua idade, a sua ilustração,
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a modéstia e honestidade de seu viver impunham-no ao respeito de
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todos. Sentindo que a alcunha lhe era dirigida, não perdeu a
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dignidade, não prorrompeu em doestos e insultos. Endireitou-se,
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concertou o pince-nez, levantou o dedo indicador no ar e respondeu:
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- Senhor Azevedo, não seja leviano. Não queira levar ao ridículo
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aqueles que trabalham em silêncio, para a grandeza e a emancipação da
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Nesse dia, o major pouco conversou. Era costume seu, assim pela hora
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do café, quando os empregados deixavam as bancas, transmitir aos
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companheiros o fruto de seus estudos, as descobertas que fazia, no
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seu gabinete de trabalho, de riquezas nacionais. Um dia era o
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petróleo que lera em qualquer parte, como sendo encontrado na Bahia;
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outra vez, era um novo exemplar de árvore de borracha que crescia no
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rio Pardo, em Mato Grosso; outra, era um sábio, uma notabilidade,
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cuja bisavó era brasileira; e quando não tinha descoberta a trazer,
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entrava pela corografia, contava o curso dos rios, a sua extensão
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navegável, os melhoramentos insignificantes de que careciam para se
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prestarem a um franco percurso da foz às nascentes. Ele amava
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sobremodo os rios; as montanhas lhe eram indiferentes, Pequenas
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talvez...
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Os colegas ouviam-no respeitosos e ninguém, a não ser esse tal
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Azevedo, se animava na sua frente a lhe fazer a menor objeção, a
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avançar uma pilhéria, um dito. Ao voltar as costas, porém,
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vingavam-se da cacetada, cobrindo-o de troças: “Este Quaresma! Que
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cacete! Pensa que somos meninos de tico-tico... Arre! Não tem outra
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conversa”.
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E desse modo ele ia levando a vida, metade na repartição, sem ser
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compreendido, e a outra metade em casa, também sem ser compreendido.
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No dia em que o chamaram de Ubirajara, Quaresma ficou reservado,
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taciturno, mudo, e só veio a falar porque, quando lavavam as mãos
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num aposento próximo à secretaria e se preparavam para sair, alguém,
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suspirando, disse: “Ah! Meu Deus! Quando poderei ir à Europa!” O
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major não se conteve: levantou o olhar, concertou o pince-nez e
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falou fraternal e persuasivo: “Ingrato! Tens uma terra tão bela, tão
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rica, e queres visitar a dos outros! Eu, se algum dia puder, hei de
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percorrer a minha de princípio ao fim!”
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O outro objetou-lhe que por aqui só havia febres e mosquitos; o
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major contestou-lhe com estatísticas e até provou exuberantemente
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que o Amazonas tinha um dos melhores climas da terra. Era um clima
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caluniado pelos viciosos que de lá vinham doentes...
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Era assim o Major Policarpo Quaresma que acabava de chegar à sua
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residência, às quatro e quinze da tarde, sem erro de um minuto, como
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todas as tardes, exceto aos domingos, exatamente, ao jeito da
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aparição de um astro ou de um eclipse.
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No mais, era um homem ctodos os outros, a não ser aqueles que têm
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ambições políticas ou de fortuna, porque Quaresma não as tinha no
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mínimo grau.
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Sentado na cadeira de balanço, bem ao centro de sua biblioteca, o
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major abriu um livro e pôs-se a lê-lo à espera do conviva. Era o
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velho Rocha Pita, o entusiástico e gongórico Rocha Pita da História
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da América Portuguesa. Quaresma estava lendo aquele famoso período:
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“Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga
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mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem os raios
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mais dourados...” mas não pôde ir ao fim. Batiam à porta. Foi
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abri-la em pessoa.
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- Tardei, major? perguntou o visitante.
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- Não. Chegaste à hora.
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Acabava de entrar em casa do Major Quaresma o Senhor Ricardo Coração
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dos Outros, homem célebre pela sua habilidade em cantar modinhas e
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tocar violão. Em começo, a sua fama estivera limitada a um pequeno
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subúrbio da cidade, em cujos “saraus” ele e seu violão figuravam
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como Paganini e a sua rebeca em festas de duques; mas, aos poucos,
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com o tempo, foi tomando toda a extensão dos subúrbios, crescendo,
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solidificando-se, até ser considerada como coisa própria a eles. Não
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se julgue, entretanto, que Ricardo fosse um cantor de modinhas aí
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qualquer, um capadócio. Não; Ricardo Coração dos Outros era um
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artista a freqüentar e a honrar as melhores famílias do Méier,
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Piedade e Riachuelo. Rara era a noite em que não recebesse um
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convite. Fosse na casa do Tenente Marques, do doutor Bulhões ou do
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“Seu” Castro, a sua presença era sempre requerida, instada e
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apreciada, O doutor Bulhões, até, tinha pelo Ricardo uma admiração
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especial, um delírio, um frenesi e, quando o trovador cantava,
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ficava em êxtase. “Gosto muito de canto”, dizia o doutor no trem
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certa vez, “mas só duas pessoas me enchem as medidas: o tamagno e o
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||
Ricardo”. Esse doutor tinha uma grande reputação nos subúrbios, não
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como médico, pois que nem óleo de rícino receitava, mas como
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||
entendido em legislação telegráfica, por ser chefe de seção da
|
||
Secretaria dos Telégrafos.
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||
Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da
|
||
alta sociedade suburbana. É uma alta sociedade muito especial e que
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só é alta nos subúrbios. Compõe-se em geral de funcionários
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públicos, de pequenos negociantes, de médicos com alguma clínica, de
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||
tenentes de diferentes milícias, nata essa que impa pelas ruas
|
||
esburacadas daquelas distantes regiões, assim como nas festas e nos
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||
bailes, com mais força que a burguesia de Petrópolis e Botafogo.
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||
Isto é só lá, nos bailes, nas festas e nas ruas, onde se algum dos
|
||
seus representantes vê um tipo mais ou menos, olha-o da cabeça aos
|
||
pés, demoradamente, assim como quem diz: aparece lá em casa que te
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||
dou um prato de comida. Porque o orgulho da aristocracia suburbana
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||
está em ter todo dia jantar e almoço, muito feijão, muita
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carne-seca, muito ensopado - aí, julga ela, é que está a pedra de
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||
toque da nobreza, da alta linha, da distinção.
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||
Fora dos subúrbios, na Rua do Ouvidor, nos teatros, nas grandes
|
||
festas centrais, essa gente míngua, apaga-se, desaparece, chegando
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||
até as suas mulheres e filhas a perder a beleza com que deslumbram,
|
||
quase diariamente, os lindos cavalheiros dos intermináveis bailes
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||
diários daquelas redondezas.
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||
Ricardo, depois de ser poeta e o cantor dessa curiosa aristocracia,
|
||
extravasou e passou à cidade, propriamente. A sua fama já chegava a
|
||
São Cristóvão e em breve (ele o esperava) Botafogo convidá-lo-ia,
|
||
pois os jornais já falavam no seu nome e discutiam o alcance de sua
|
||
obra e da sua poética...
|
||
Mas que vinha ele fazer ali, na casa de pessoa de propósitos tão
|
||
altos e tão severos hábitos? Não é difícil atinar. Decerto, não
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||
vinha auxiliar o major nos seus estudos de geologia, de poética, de
|
||
mineralogia e história brasileiras.
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||
Como bem supôs a vizinhança, o Coração dos Outros vinha ali
|
||
tão-somente ensinar o major a cantar modinhas e a tocar violão, Nada
|
||
mais, e é simples.
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||
De acordo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera muito tempo
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||
a meditar qual seria a expressão poética musical característica da
|
||
alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e
|
||
adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro
|
||
dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento
|
||
genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava
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||
nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor da
|
||
cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e
|
||
tirar dela um forte motivo original de arte.
|
||
Ricardo vinha justamente dar-lhe lição, mas, antes disso, por
|
||
convite especial do discípulo, ia compartilhar o seu jantar; e fora
|
||
por isso que o famoso trovador chegou mais cedo à casa do
|
||
subsecretário.
|
||
- Já sabe dar o “ré” sustenido, major? perguntou Ricardo logo ao
|
||
sentar-se.
|
||
- Já.
|
||
- Vamos ver.
|
||
Dizendo isto, foi desencapotar o seu sagrado violão; mas não houve
|
||
tempo. Dona Adelaide, a irmã de Quaresma, entrou e convidou-os a
|
||
irem jantar. A sopa já esfriava na mesa, que fossem!
|
||
- O Senhor Ricardo há de nos desculpar, disse a velha senhora, a
|
||
pobreza do nosso jantar. Eu lhe quis fazer um frango com petit-pois,
|
||
mas Policarpo não deixou. Disse-me que esse tal petit-pois é
|
||
estrangeiro e que eu o substituísse por guando. Onde é que se viu
|
||
frango com guando?
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||
Coração dos Outros aventou que talvez fosse bom, seria uma novidade
|
||
e não fazia mal experimentar.
|
||
- É uma mania de seu amigo, Senhor Ricardo, esta de só querer
|
||
coisas nacionais, e a gente tem que ingerir cada droga, chi!
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||
- Qual, Adelaide, você tem certas ojerizas! A nossa terra, que tem
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||
todos os climas do mundo, é capaz de produzir tudo que é necessário
|
||
para o estômago mais exigente. Você é que deu para implicar.
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- Exemplo: a manteiga que fica logo rançosa.
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||
- É porque é de leite, se fosse como essas estrangeiras aí,
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||
fabricadas com gorduras de esgotos, talvez não se estragasse... É
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||
isto, Ricardo! Não querem nada da nossa terra...
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||
- Em geral é assim, disse Ricardo.
|
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- Mas é um erro... Não protegem as indústrias nacionais... Comigo
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não há disso: de tudo que há nacional, eu não uso estrangeiro.
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Visto-me com pano nacional, calço botas nacionais e assim por
|
||
diante.
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||
Sentaram-se à mesa. Quaresma agarrou uma pequena garrafa de cristal
|
||
e serviu dois cálices de parati.
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||
- É do programa nacional, fez a irmã, sorrindo.
|
||
- Decerto, e é um magnífico aperitivo. Esses vermutes por ai,
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||
drogas; isto é álcool puro, bom, de cana, não é de batatas ou
|
||
milho...
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||
Ricardo agarrou o cálice com delicadeza e respeito, levou-o aos
|
||
lábios e foi como se todo ele bebesse o licor nacional.
|
||
- Está bom, hein? indagou o major.
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||
- Magnífico, fez Ricardo, estalando os lábios.
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||
- É de Angra. Agora tu vais ver que magnífico vinho do Rio Grande
|
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temos... Qual Borgonha! Qual Bordeaux! Temos no Sul muito
|
||
melhores...
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||
E o jantar correu assim, nesse tom. Quaresma exaltando os produtos
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nacionais: a banha, o toucinho e o arroz; a irmã fazia pequenas
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||
objeções e Ricardo dizia: “É, é, não há dúvida” - rolando nas
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órbitas os olhos pequenos, franzindo a testa diminuta que se sumia
|
||
no cabelo áspero, forçando muito a sua fisionomia miúda e dura a
|
||
adquirir uma expressão sincera de delicadeza e satisfação.
|
||
Acabado o jantar foram ver o jardim. Era uma maravilha; não tinha
|
||
nem uma flor... Certamente não se podia tomar por tal míseros
|
||
beijos-defrade, palmas-de-santa-rita, quaresmas lutulentas, manacás
|
||
melancólicos e outros belos exemplares dos nossos campos e prados.
|
||
Como em tudo o mais, o major era em jardinagem essencialmente
|
||
nacional. Nada de rosas, de crisântemos, de magnólias - flores
|
||
exóticas; as nossas terras tinham outras mais belas, mais
|
||
expressivas, mais olentes, como aquelas que ele tinha ali,
|
||
Ricardo ainda uma vez concordou e os dois entraram na sala, quando o
|
||
crepúsculo vinha devagar, muito vagaroso e lento, como se fosse um
|
||
longo adeus saudoso do sol ao deixar a terra, pondo nas coisas a sua
|
||
poesia dolente e a sua deliqüescência.
|
||
Mal foi aceso o gás, o mestre de violão empunhou o instrumento,
|
||
apertou as cravelhas, correu a escala, abaixando-se sobre ele como
|
||
se o quisesse beijar. Tirou alguns acordes, para experimentar; e
|
||
dirigiu-se ao discípulo, que já tinha o seu em posição:
|
||
- Vamos ver. Tire a escala, major.
|
||
Quaresma preparou os dedos, afinou a viola, mas não havia na sua
|
||
execução nem a firmeza, nem o dengue com que o mestre fazia a mesma
|
||
operação.
|
||
- Olhe, major, é assim.
|
||
E mostrava a posição do instrumento, indo do colo ao braço esquerdo
|
||
estendido, seguro levemente pelo direito; e em seguida acrescentou:
|
||
- Major, o violão é o instrumento da paixão. Precisa de peito para
|
||
falar... É preciso encostá-lo, mas encostá-lo com maciez e amor,
|
||
como se fosse a amada, a noiva, para que diga o que sentimos...
|
||
Diante do violão, Ricardo ficava loquaz, cheio de sentenças, todo
|
||
ele fremindo de paixão pelo instrumento desprezado.
|
||
A lição durou uns cinqüenta minutos. O major sentiu-se cansado e
|
||
pediu que o mestre cantasse. Era a primeira vez que Quaresma lhe
|
||
fazia esse pedido; embora lisonjeado, quis a vaidade profissional
|
||
que ele, a princípio, se negasse.
|
||
- Oh! Não tenho nada novo, uma composição minha.
|
||
Dona Adelaide obtemperou então:
|
||
- Cante uma de outro.
|
||
- Oh! Por Deus, minha senhora! Eu só canto as minhas. O Bilac -
|
||
conhecem? - quis fazer-me uma modinha, eu não aceitei; você não
|
||
entende de violão, “Seu” Bilac. A questão não está em escrever uns
|
||
versos certos que digam coisas bonitas; o essencial é achar-se as
|
||
palavras que o violão pede e deseja. Por exemplo: se eu dissesse,
|
||
como em começo quis, n’ “O Pé” uma modinha minha: “o teu pé é uma
|
||
folha de trevo” - não ia com o violão. Querem ver?
|
||
E ensaiou em voz baixa, acompanhado pelo instrumento: o - teu - pé
|
||
- é - uma - fo - lha - de - tre - vo.
|
||
- Vejam, continuou ele, como não dá. Agora reparem: o - teu - pé
|
||
- é - uma - ro - sa - de - mir - ra. É outra coisa, não
|
||
acham?
|
||
- Não há dúvida, disse a irmã de Quaresma.
|
||
- Cante esta, convidou o major.
|
||
- Não, objetou Ricardo. Está velha, vou cantar a “Promessa”,
|
||
conhecem?
|
||
- Não, disseram os dois irmãos.
|
||
- Oh! Anda por aí como as “Pombas” do Raimundo.
|
||
- Cante lá, Senhor Ricardo, pediu Dona Adelaide.
|
||
Ricardo Coração dos Outros por fim afinou ainda uma vez o violão e
|
||
começou em voz fraca:
|
||
Prometo pelo Santíssimo Sacramento
|
||
Que serei tua paixão...
|
||
- Vão vendo, disse ele num intervalo, quanta imagem, quanta imagem!
|
||
E continuou. As janelas estavam abertas. Moças e rapazes começaram a
|
||
se amontoar na calçada para ouvir o menestrel. Sentindo que a rua se
|
||
interessava, Coração dos Outros foi apurando a dicção, tomando um ar
|
||
feroz que ele supunha ser de ternura e entusiasmo; e, quando acabou,
|
||
as palmas soaram do lado de fora e uma moça entrou procurando Dona
|
||
Adelaide.
|
||
- Senta-te Ismênia, disse ela.
|
||
- A demora é pouca.
|
||
Ricardo aprumou-se na cadeira, olhou um pouco a moça e continuou a
|
||
dissertar sobre a modinha. Aproveitando uma pausa, a irmã de
|
||
Quaresma perguntou à moça:
|
||
- Então quando te casas?
|
||
Era a pergunta que se Lhe fazia sempre. Ela então curvava do lado
|
||
direito a sua triste cabecinha, coroada de magníficos cabelos
|
||
castanhos, com tons de ouro, e respondia:
|
||
- Não sei... Cavalcânti forma-se no fim do ano e então marcaremos.
|
||
Isto era dito arrastado, com uma preguiça de impressionar.
|
||
Não era feia a menina, a filha do general, vizinho de Quaresma. Era
|
||
até bem simpática, com a sua fisionomia de pequenos traços mal
|
||
desenhados e cobertos de umas tintas de bondade.
|
||
Aquele seu noivado durava há anos; o noivo, o tal Cavalcânti,
|
||
estudava para dentista, um curso de dois anos, mas que ele arrastava
|
||
há quatro, e Ismênia tinha sempre que responder à famosa pergunta:
|
||
- “Então quando se casa?” - “Não sei... Cavalcânti forma-se para o
|
||
ano e...”
|
||
Intimamente ela não se incomodava. Na vida, para ela, só havia uma
|
||
coisa importante: casar-se; mas pressa não tinha, nada nela a pedia.
|
||
Já agarrara um noivo, o resto era questão de tempo...
|
||
Após responder a Dona Adelaide, explicou o motivo da visita.
|
||
Viera, em nome do pai, convidar Ricardo Coração dos Outros a cantar
|
||
em casa dela.
|
||
- Papai, disse Dona Ismênia, gosta muito de modinhas... É do Norte;
|
||
a senhora sabe, Dona Adelaide, que gente do Norte aprecia muito.
|
||
Venham.
|
||
E para lá foram.
|
||
II
|
||
REFORMAS RADICAIS
|
||
Havia bem dez dias que o Major Quaresma não saía de casa. Na sua
|
||
meiga e sossegada casa de São Cristóvão, enchia os dias da forma
|
||
mais útil e agradável às necessidades do seu espírito e do seu
|
||
temperamento. De manhã, depois da toilette e do café, sentava-se no
|
||
divã da sala principal e lia os jornais. Lia diversos, porque sempre
|
||
esperava encontrar num ou noutro uma notícia curiosa, a sugestão de
|
||
uma idéia útil à sua cara Pátria. Os seus hábitos burocráticos
|
||
faziam-no almoçar cedo, e, embora estivesse de férias, para os não
|
||
perder, continuava a tomar a primeira refeição de garfo às nove e
|
||
meia da manhã.
|
||
Acabado o almoço, dava umas voltas pela chácara, chácara em que
|
||
predominavam as fruteiras nacionais, recebendo a pitanga e o cambuí
|
||
os mais cuidadosos tratamentos aconselhados pela pomologia, como se
|
||
fossem bem cerejas ou figos.
|
||
O passeio era demorado e filosófico. Conversando com o preto
|
||
Anastácio, que lhe servia há trinta anos, sobre coisas antigas - o
|
||
casamento das princesas, a quebra do Souto e outras - o major
|
||
continuava com o pensamento preso aos problemas que o preocupavam
|
||
ultimamente. Após uma hora ou menos, voltava à biblioteca e
|
||
mergulhava nas revistas do Instituto Histórico, no Fernão Cardim,
|
||
nas cartas de Nóbrega, nos anais da Biblioteca, no von den Stein e
|
||
tomava notas sobre notas, guardando-as numa pequena pasta ao lado.
|
||
Estudava os índios, Não fica bem dizer estudava, porque já o fizera
|
||
há tempos, não só no tocante à língua, que já quase falava, como
|
||
também nos simples aspectos etnográficos e antropológicos. Recordava
|
||
(é melhor dizer assim), afirmava certas noções dos seus estudos
|
||
anteriores, visto estar organizando um sistema de cerimônias e
|
||
festas que se baseasse nos costumes dos nossos silvícolas e
|
||
abrangesse todas as relações sociais.
|
||
Para bem se compreender o motivo disso, é preciso não esquecer que o
|
||
major, depois de trinta anos de meditação patriótica, de estudos e
|
||
reflexões, chegava agora ao período da frutificação. A convicção que
|
||
sempre tivera de ser o Brasil o primeiro país do mundo e o seu
|
||
grande amor à Pátria eram agora ativos e impeliram-no a grandes
|
||
cometimentos. Ele sentia dentro de si impulsos imperiosos de agir,
|
||
de obrar e de concretizar suas idéias. Eram pequenos melhoramentos,
|
||
simples toques, porque em si mesma (era a sua opinião), a grande
|
||
Pátria do Cruzeiro só precisava de tempo para ser superior à
|
||
Inglaterra.
|
||
Tinha todos os climas, todos os frutos, todos os minerais e animais
|
||
úteis, as melhores terras de cultura, a gente mais valente, mais
|
||
hospitaleira, mais inteligente e mais doce do mundo - o que
|
||
precisava mais? Tempo e um pouco de originalidade. Portanto, dúvidas
|
||
não flutuavam mais no seu espírito, mas no que se referia à
|
||
originalidade de costumes e usanças, não se tinham elas dissipado,
|
||
antes se transformaram em certeza após tomar parte na folia do
|
||
“Tangolomango”, numa festa que o general dera em casa.
|
||
Caso foi que a visita do Ricardo e do seu violão ao bravo militar
|
||
veio despertar no general e na família um gosto pelas festanças,
|
||
cantigas e hábitos genuinamente nacionais, como se diz por aí. Houve
|
||
em todos um desejo de sentir, de sonhar, de poetar à maneira popular
|
||
dos velhos tempos. Albernaz, o general, lembrava-se de ter visto
|
||
tais cerimônias na sua infância: Dona Maricota, sua mulher, até
|
||
ainda se lembrava de uns versos de Reis; e os seus filhos, cinco
|
||
moças e um rapaz, viram na coisa um pretexto de festas e, portanto,
|
||
aplaudiram o entusiasmo dos progenitores. A modinha era pouco; os
|
||
seus espíritos pediam coisa mais plebéia, mais característica e
|
||
extravagante.
|
||
Quaresma ficou encantado, quando Albernaz falou em organizar uma
|
||
chegança, à moda do Norte, por ocasião do aniversário de sua praça.
|
||
Em casa do general era assim: qualquer aniversário tinha a sua
|
||
festa, de forma que havia bem umas trinta por ano, não contando
|
||
domingos, dias feriados e santificados em que se dançava também.
|
||
O major pensara até ali pouco nessas coisas de festas e danças
|
||
tradicionais, entretanto viu logo a significação altamente
|
||
patriótica do intento. Aprovou e animou o vizinho. Mas quem havia de
|
||
ensaiar, de dar os versos e a música? Alguém lembrou a tia Maria
|
||
Rita, uma preta velha, que morava em Benfica, antiga lavadeira da
|
||
família Albernaz. Lá foram os dois, o General Albernaz e o Major
|
||
Quaresma, alegres, apressados, por uma linda e cristalina tarde de
|
||
abril.
|
||
O general nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não
|
||
possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única
|
||
batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com
|
||
a sua profissão e o seu curso de artilheiro. Fora sempre
|
||
ajudante-de-ordens, assistente, encarregado disso ou daquilo,
|
||
escriturário, almoxarife, e era secretário do Conselho Supremo
|
||
Militar, quando se reformou em general. Os seus hábitos eram de um
|
||
bom chefe de seção e a sua inteligência não era muito diferente dos
|
||
seus hábitos. Nada entendia de guerras, de estratégia, de tática ou
|
||
de história militar; a sua sabedoria a tal respeito estava reduzida
|
||
às batalhas do Paraguai, para ele a maior e a mais extraordinária
|
||
guerra de todos os tempos.
|
||
O altissonante título de general, que lembrava coisas sobre-humanas
|
||
dos Césares, dos Turennes e dos Gustavos Adolfos, ficava mal naquele
|
||
homem plácido, medíocre, bonachão cuja única preocupação era casar
|
||
as cinco filhas e arranjar “pistolões” para fazer passar o filho nos
|
||
exames do Colégio Militar. Contudo, não era conveniente que se
|
||
duvidasse das suas aptidões guerreiras. Ele mesmo, percebendo o seu
|
||
ar muito civil, de onde em onde, contava um episódio de guerra, uma
|
||
anedota militar. “Foi em Lomas Valentinas”, dizia ele... Se alguém
|
||
perguntava: “O general assistiu a batalha?” Ele respondia logo: “Não
|
||
pude. Adoeci e vim para o Brasil, nas vésperas. Mas soube pelo
|
||
Camisão, pelo Venâncio que a coisa esteve preta”.
|
||
O bonde que os levava até à velha Maria Rita, percorria um dos
|
||
trechos mais interessantes da cidade. Ia pelo Pedregulho, uma velha
|
||
porta da cidade, antigo término de um picadão que ia ter a Minas, se
|
||
esgalhava para São Paulo e abria comunicações com o Curato de Santa
|
||
Cruz.
|
||
Por aí em costas de bestas vieram ter ao Rio o ouro e o diamante de
|
||
Minas e ainda ultimamente os chamados gêneros do país. Não havia
|
||
ainda cem anos que as carruagens d’El-Rei Dom João VI, pesadas como
|
||
naus, a balouçarem-se sobre as quatro rodas muito separadas,
|
||
passavam por ali para irem ter ao longínquo Santa Cruz. Não se pode
|
||
crer que a coisa fosse lá muito imponente; a Corte andava em apuros
|
||
de dinheiro e o rei era relaxado. Não obstante os soldados
|
||
remendados, tristemente montados em “pangarés” desanimados, o
|
||
préstito devia ter a sua grandeza, não por ele mesmo, mas pelas
|
||
humilhantes marcas de respeito que todos tinham que dar à sua
|
||
lamentável majestade.
|
||
Entre nós tudo é inconsistente, provisório, não dura. Não havia ali
|
||
nada que lembrasse esse passado. As casas velhas, com grandes
|
||
janelas, quase quadradas, e vidraças de pequenos vidros eram de há
|
||
bem poucos anos, menos de cinqüenta.
|
||
Quaresma e Albernaz atravessaram tudo aquilo sem reminiscências e
|
||
foram até ao ponto. Antes perlustraram a zona do turfe, uma pequena
|
||
porção da cidade onde se amontoam cocheiras e coudelarias de animais
|
||
de corridas, tendo grandes ferraduras, cabeças de cavalos, panóplias
|
||
de chicotes e outros emblemas hípicos, nos pilares dos portões, nas
|
||
almofadas das portas, por toda parte onde tais distintivos fiquem
|
||
bem e dêem na vista.
|
||
A casa da velha preta ficava além do ponto, para as bandas da
|
||
estação da estrada de ferro Leopoldina. Lá foram ter. Passaram pela
|
||
estação. Sobre um largo terreiro, negro de moinha de
|
||
carvão-de-pedra, medas de lenha e imensas tulhas de sacos de carvão
|
||
vegetal se acumulavam; mais adiante um depósito de locomotivas e
|
||
sobre os trilhos algumas manobravam e outras arfavam sob pressão.
|
||
Apanharam afinal o carreiro onde ficava a casa da Maria Rita. O
|
||
tempo estivera seco e por isso se podia andar por ele. Para além do
|
||
caminho, estendia-se a vasta região de mangues, uma zona imensa,
|
||
triste e feia, que vai até ao fundo da baía e, no horizonte, morre
|
||
ao sopé das montanhas azuis de Petrópolis. Chegaram à casa da velha.
|
||
Era baixa, caiada e coberta com as pesadas telhas portuguesas.
|
||
Ficava um pouco afastada da estrada. À direita havia um monturo:
|
||
restos de cozinha, trapos, conchas de mariscos, pedaços de louça
|
||
caseira - um sambaqui a fazer-se para gáudio de um arqueólogo de
|
||
futuro remoto; à esquerda, crescia um mamoeiro e bem junto à cerca,
|
||
no mesmo lado, havia um pé de arruda. Bateram. Uma pretinha moça
|
||
apareceu na janela aberta.
|
||
- Que desejam?
|
||
Disseram o que queriam e aproximaram-se. A moça gritou para o
|
||
interior da casa:
|
||
- Vovó estão aí dois “moços” que querem falar com a senhora.
|
||
Entrem, façam o favor - disse ela depois, dirigindo-se ao general e
|
||
ao seu companheiro.
|
||
A sala era pequena e de telha-vã. Pelas paredes, velhos cromos de
|
||
folhinhas, registros de santos, recortes de ilustrações de jornais
|
||
baralhavamse e subiam por elas acima até dois terços da altura. Ao
|
||
lado de uma Nossa Senhora da Penha, havia um retrato de Vítor
|
||
Emanuel “ com enormes bigodes en desorden; um crini sentimental de
|
||
folhinha - uma cabeça de mulher em posição de sonho - parecia
|
||
olhar um São João Batista ao lado. No alto da porta que levava ao
|
||
interior da casa, uma lamparina, numa cantoneira, enchia de fuligem
|
||
a Conceição de louça.
|
||
Não tardou vir a velha. Entrou em camisa de bicos de rendas,
|
||
mostrando o peito descarnado, enfeitado com um colar de miçangas de
|
||
duas voltas. Capengava de um pé e parecia querer ajudar a marcha com
|
||
a mão esquerda pousada na perna correspondente.
|
||
- Boas tardes, tia Maria Rita, disse o general.
|
||
Ela respondeu, mas não deu mostras de ter reconhecido quem lhe
|
||
falava. O general atalhou:
|
||
- Não me conhece mais? Sou o general, o Coronel Albernaz.
|
||
- Ah! É sê coroné!... Há quanto tempo! Como está nhã Maricota?
|
||
- Vai bem. Minha velha, nós queríamos que você nos ensinasse umas
|
||
cantigas.
|
||
- Quem sou eu, ioiô!
|
||
- Ora! Vamos, tia Maria Rita... você não perde nada... você não
|
||
sabe o “Bumba-meu-Boi”?
|
||
- Quá, ioiô, já mi esqueceu.
|
||
- E o “Boi Espácio”?
|
||
- Coisa véia, do tempo do cativeiro - pra que sô coroné qué sabê
|
||
isso?
|
||
Ela falava arrastando as sílabas, com um doce sorriso e um olhar
|
||
vago.
|
||
- É para uma festa... Qual é a que você sabe?
|
||
A neta que até ali ouvia calada a conversa animou-se a dizer alguma
|
||
coisa, deixando perceber rapidamente a fiada reluzente de seus
|
||
dentes imaculados:
|
||
- Vovó já não se lembra.
|
||
O general, que a velha chamava coronel, por tê-la conhecido nesse
|
||
posto, não atendeu a observação da moça e insistiu:
|
||
- Qual esquecida, o quê! Deve saber ainda alguma coisa, não é, titia?
|
||
- Só sei o “Bicho Tutu”, disse a velha.
|
||
- Cante lá!
|
||
- Ioiô sabe! Não sabe? Quá, sabe!
|
||
- Não sei, cante. Se eu soubesse não vinha aqui. Pergunte aqui ao
|
||
meu amigo, o Major Policarpo, se sei.
|
||
Quaresma fez com a cabeça sinal afirmativo e a preta velha, talvez
|
||
com grandes saudades do tempo em que era escrava e ama de alguma
|
||
grande casa, farta e rica, ergueu a cabeça, como para melhor
|
||
recordar-se, e entoou:
|
||
É vêm tutu
|
||
Por detrás do murundu
|
||
Pra cumê sinhozinho
|
||
Com bucado de angu.
|
||
- Ora! fez o general com enfado, isso é coisa antiga de embalar
|
||
crianças. Você não sabe outra?
|
||
- Não, sinhô. Já mi esqueceu.
|
||
Os dois saíram tristes. Quaresma vinha desanimado. Como é que o povo
|
||
não guardava as tradições de trinta anos passados? Com que rapidez
|
||
morriam assim na sua lembrança os seus folgares e as suas canções?
|
||
Era bem um sinal de fraqueza, uma demonstração de inferioridade
|
||
diante daqueles povos tenazes que os guardam durante séculos!
|
||
Tornava-se preciso reagir, desenvolver o culto das tradições,
|
||
mantê-las sempre vivazes nas memórias e nos costumes...
|
||
Albernaz vinha contrariado. Contava arranjar um número bom para a
|
||
festa que ia dar, e escapava-lhe. Era quase a esperança de casamento
|
||
de uma das quatro filhas que se ia, das quatro, porque uma delas já
|
||
estava garantida, graças a Deus.
|
||
O crepúsculo chegava e eles entraram em casa mergulhados na
|
||
melancolia da hora.
|
||
A decepção, porém, demorou dias. Cavalcânti, o noivo de Ismênia,
|
||
informou que nas imediações morava um literato, teimoso cultivador
|
||
dos contos e canções populares do Brasil. Foram a ele. Era um velho
|
||
poeta que teve sua fama ai pelos setenta e tantos, homem doce e
|
||
ingênuo que se deixara esquecer em vida, como poeta, e agora se
|
||
entretinha em publicar coleções que ninguém lia, de contos, canções,
|
||
adágios e ditados populares.
|
||
Foi grande a sua alegria quando soube o objeto da visita daqueles
|
||
senhores. Quaresma estava animado e falou com calor; e Albernaz
|
||
também, porque via na sua festa, com um número de folklore, meio de
|
||
chamar a atenção sobre sua casa, atrair gente e... casar as filhas.
|
||
A sala em que foram recebidos, era ampla; mas estava tão cheia de
|
||
mesas, estantes, pejadas de livros, pastas, latas, que mal se podia
|
||
mover nela. Numa lata lia-se: Santa Ana dos Tocos; numa pasta: São
|
||
Bonifácio do Cabresto.
|
||
- Os senhores não sabem, disse o velho poeta, que riqueza é a nossa
|
||
poesia popular! que surpresas ela reserva!... Ainda há dias recebi
|
||
uma carta de Urubu-de-Baixo com uma linda canção. Querem ver?
|
||
O colecionador revolveu pastas e afinal trouxe de lá um papel onde
|
||
leu:
|
||
Se Deus enxergasse pobre
|
||
Não me deixaria assim:
|
||
Dava no coração dela
|
||
Um lugarzinho pra mim,
|
||
O amor que tenho por ela
|
||
Já não cabe no meu peito;
|
||
Sai-me pelos olhos afora
|
||
Voa às nuvens direito.
|
||
- Não é bonito?... Muito! Se os senhores conhecessem então o ciclo
|
||
do macaco, a coleção de histórias que o povo tem sobre o símio?...
|
||
Oh! Uma verdadeira epopéia cômica!
|
||
Quaresma olhava para o velho poeta com o espanto satisfeito de
|
||
alguém que encontrou um semelhante no deserto; e Albernaz, um
|
||
momento contagiado pela paixão do folclorista, tinha mais
|
||
inteligência no olhar com que o encarava,
|
||
O velho poeta guardou a canção de Urubu-de-Baixo, numa pasta; e foi
|
||
logo à outra, donde tirou várias folhas de papel. Veio até junto aos
|
||
dois visitantes e disse-lhes:
|
||
- Vou ler aos senhores uma pequena história do macaco, das muitas
|
||
que o nosso povo conta... Só eu já tenho perto de quarenta e
|
||
pretendo publicá-las, sob o título Histórias do Mestre Simão.
|
||
E, sem perguntar se os incomodava ou se estavam dispostos a ouvir,
|
||
começou:
|
||
“O macaco perante o juiz de direito. Andava um bando de macacos em
|
||
troça, pulando de árvore em árvore, nas bordas de uma grota. Eis
|
||
senão quando, um deles vê no fundo uma onça que lá caíra. Os macacos
|
||
se enternecem e resolvem salvá-la. Para isso, arrancaram cipós,
|
||
emendaram-nos bem, amarraram a corda assim feita à cintura de cada
|
||
um deles e atiraram uma das pontas à onça. Com o esforço reunido de
|
||
todos, conseguiram içá- la e logo se desamarraram, fugindo. Um
|
||
deles, porém, não o pôde fazer a tempo e a onça segurou-o
|
||
imediatamente.
|
||
- Compadre Macaco, disse ela, tenha paciência. Estou com fome e
|
||
você vai fazer-me o favor de deixar-se comer.
|
||
O macaco rogou, instou, chorou; mas a onça parecia inflexível, Simão
|
||
então lembrou que a demanda fosse resolvida pelo juiz de direito.
|
||
Foram a ele; o macaco sempre agarrado pela onça. É juiz de direito
|
||
entre os animais, o jabuti, cujas audiências são dadas à borda dos
|
||
rios, colocando-se ele em cima de uma pedra. Os dois chegaram e o
|
||
macaco expôs as suas razões.
|
||
O jabuti ouvi-o e no fim ordenou:
|
||
- Bata palmas.
|
||
Apesar de seguro pela onça, o macaco pôde assim mesmo bater palmas.
|
||
Chegou a vez da onça, que também expôs as suas razões e motivos. O
|
||
juiz, como da primeira vez, determinou ao felino:
|
||
- Bata palmas.
|
||
A onça não teve remédio senão largar o macaco, que se escapou, e
|
||
também o juiz, atirando-se n’água”.
|
||
Acabando a leitura, o velho dirigiu-se aos dois:
|
||
- Não acham interessante? Muito! Há no nosso povo muita invenção,
|
||
muita criação, verdadeiro material para fabliaux interessantes... No
|
||
dia em que aparecer um literato de gênio que o fixe numa forma
|
||
imortal... Ah! Então!
|
||
Dizendo isto, brincava nas suas faces um demorado sorriso de
|
||
satisfação e nos seus olhos abrolhavam duas lágrimas furtivas.
|
||
- Agora, continuou ele, depois de passada a emoção - vamos ao que
|
||
serve. O “Boi Espácio” ou o “Bumba-meu-Boi” ainda é muita coisa para
|
||
vocês... É melhor irmos devagar, começar pelo mais fácil... Está aí
|
||
o “Tangolomango”, conhecem?
|
||
- Não, disseram os dois.
|
||
- É divertido. Arranjem dez crianças, uma máscara de velho, uma
|
||
roupa estrambólica para um dos senhores, que eu ensaio.
|
||
O dia chegou. A casa do general estava cheia. Cavalcânti viera; e
|
||
ele e a noiva, à parte, no vão de uma janela, pareciam ser os únicos
|
||
que não tinham interesse pela folia. Ele, falando muito, cheio de
|
||
trejeitos no olhar; ela, meio fria, deitando de quando em quando,
|
||
para o noivo, um olhar de gratidão.
|
||
Quaresma fez o “Tangolomango”, isto é, vestiu uma velha sobrecasaca
|
||
do general, pôs uma imensa máscara de velho, agarrou-se a um bordão
|
||
curvo, em forma de báculo, e entrou na sala. As dez crianças
|
||
cantaram em coro:
|
||
Uma mãe teve dez filhos
|
||
Todos os dez dentro de um pote:
|
||
Deu o Tangolomango nele
|
||
Não ficaram senão nove.
|
||
Por aí, o major avançava, batia com o báculo no assoalho, fazia: hu!
|
||
hu! hu! ; as crianças fugiam, afinal ele agarrava uma e levava para
|
||
dentro. Assim ia executando com grande alegria da sala, quando, pela
|
||
quinta estrofe, lhe faltou o ar, lhe ficou a vista escura e caiu.
|
||
Tiraram-lhe a máscara, deram-lhe algumas sacudidelas e Quaresma
|
||
voltou a si.
|
||
O acidente, entretanto, não lhe deu nenhum desgosto pelo folklore,
|
||
Comprou livros, leu todas as publicações a respeito, mas a decepção
|
||
lhe veio ao fim de algumas semanas de estudo.
|
||
Quase todas as tradições e canções eram estrangeiras; o próprio
|
||
“Tangolomango” o era também. Tornava-se, portanto, preciso arranjar
|
||
alguma coisa própria, original, uma criação da nossa terra e dos
|
||
nossos ares.
|
||
Essa idéia levou-o a estudar os costumes tupinambás; e, como uma
|
||
idéia traz outra, logo ampliou o seu propósito e eis a razão por que
|
||
estava organizando um código de relações, de cumprimentos, de
|
||
cerimônias domésticas e festas, calcado nos preceitos tupis.
|
||
Desde dez dias que se entregava a essa árdua tarefa, quando (era
|
||
domingo) lhe bateram à porta, em meio de seu trabalho. Abriu, mas
|
||
não apertou a mão. Desandou a chorar, a berrar, a arrancar os
|
||
cabelos, como se tivesse perdido a mulher ou um filho. A irmã correu
|
||
lá de dentro, o Anastácio também, e o compadre e a filha, pois eram
|
||
eles, ficaram, estupefatos no limiar da porta.
|
||
- Mas que é isso, compadre?
|
||
- Que é isso, Policarpo?
|
||
- Mas, meu padrinho...
|
||
Ele ainda chorou um pouco. Enxugou as lágrimas e, depois, explicou
|
||
com a maior naturalidade:
|
||
- Eis aí! Vocês não têm a mínima noção das coisas da nossa terra,
|
||
Queriam que eu apertasse a mão... Isto não é nosso! Nosso
|
||
cumprimento é chorar quando encontramos os amigos, era assim que
|
||
faziam os tupinambás.
|
||
O seu compadre Vicente, a filha e Dona Adelaide entreolharam-se, sem
|
||
saber o que dizer. O homem estaria doido? Que extravagância!
|
||
- Mas, Senhor Policarpo, disse-lhe o compadre, é possível que isto
|
||
seja muito brasileiro, mas é bem triste, compadre.
|
||
- Decerto, padrinho, acrescentou a moça com vivacidade; parece até
|
||
agouro...
|
||
Este seu compadre era italiano de nascimento. A história das suas
|
||
relações vale a pena contar. Quitandeiro ambulante, fora fornecedor
|
||
da casa de Quaresma há vinte e tantos anos. O major já tinha as suas
|
||
idéias patrióticas, mas não desdenhava conversar com o quitandeiro e
|
||
até gostava de vê-lo suado, curvado ao peso dos cestos, com duas
|
||
rosas vermelhas nas faces muito brancas de europeu recém-chegado.
|
||
Mas um belo dia, ia Quaresma pelo Largo do Paço, muito distraído, a
|
||
pensar nas maravilhas arquitetônicas do chafariz do Mestre Valentim,
|
||
quando veio a encontrar-se com o mercador ambulante. Falou-lhe com
|
||
aquela simplicidade d’alma que era bem sua, e notou que o rapaz
|
||
tinha alguma preocupação séria. Não só, de onde em onde, soltava
|
||
exclamações sem ligação alguma com a conversa atual, como também,
|
||
cerrava os lábios, rilhava os dentes e crispava raivosamente os
|
||
punhos. Interrogou-o e veio a saber que tivera uma questão de
|
||
dinheiro com um seu colega, estando disposto a matá-lo, pois perdera
|
||
o crédito e em breve estaria na miséria. Havia na sua afirmação uma
|
||
tal energia e um grande e estranho acento de ferocidade que fizeram
|
||
empregar o major toda a sua doçura e persuasão para dissuadi-lo do
|
||
propósito. E não ficou nisto só: emprestou-lhe também dinheiro.
|
||
Vicente Coleoni pôs uma quitanda, ganhou uns contos de réis, fez-se
|
||
logo empreiteiro, enriqueceu, casou, veio a ter aquela filha, que
|
||
foi levada à pia pelo seu benfeitor. Inútil é dizer que Quaresma não
|
||
notou a contradição entre as suas idéias patrióticas e o seu ato.
|
||
É verdade que ele não as tinha ainda muito firmes, mas já flutuavam
|
||
na sua cabeça e reagiam sobre a sua consciência como tênues desejos,
|
||
veleidades de rapaz de pouco mais de vinte anos, veleidades que não
|
||
tardariam tomar consistência e só esperavam os anos para desabrochar
|
||
|
||
Fora, pois, ao seu compadre Vicente e à sua afilhada Olga que ele
|
||
recebera com o mais legítimo cerimonial guaitacás, e, se não
|
||
envergara o traje de rigor de tão interessante povo, motivo não foi
|
||
o não tê-lo. Estava até à mão, mas faltava-lhe tempo para despir-se.
|
||
- Lê-se muito, padrinho? perguntou-lhe a afilhada, deitando sobre
|
||
ele os seus olhos muito luminosos.
|
||
Havia entre os dois uma grande afeição. Quaresma era um tanto
|
||
reservado e o vexame de mostrar os seus sentimentos faziam-no
|
||
econômico nas demonstrações afetuosas. Adivinha-se, entretanto, que
|
||
a moça ocupavalhe no coração o lugar dos filhos que não tivera nem
|
||
teria jamais. A menina vivaz, habituada a falar alto e
|
||
desembaraçadamente, não escondia a sua afeição tanto mais que sentia
|
||
confusamente nele alguma coisa de superior, uma ânsia de ideal, uma
|
||
tenacidade em seguir um sonho, uma idéia, um vôo enfim para as altas
|
||
regiões do espírito que ela não estava habituada a ver em ninguém do
|
||
mundo que freqüentava. Essa admiração não lhe vinha da educação.
|
||
Recebera a comum às moças de seu nascimento. Vinha de um pendor
|
||
próprio, talvez das proximidades européias do seu nascimento, que a
|
||
fizeram um pouco diferente das nossas moças.
|
||
Fora com um olhar luminoso e perscrutador que ela perguntara ao
|
||
padrinho:
|
||
- Então padrinho, lê-se muito?
|
||
- Muito, minha filha. Imagina que medito grandes obras, uma
|
||
reforma, a emancipação de um povo.
|
||
Vicente fora com Dona Adelaide para o interior da casa e os dois
|
||
conversavam a sós na sala dos livros. A afilhada notou que Quaresma
|
||
tinha alguma coisa de mais. Falava agora com tanta segurança, ele
|
||
que antigamente era tão modesto, hesitante mesmo no falar - que
|
||
diabo! Não, não era possível... Mas, quem sabe? E que singular
|
||
alegria havia nos seus olhos - uma alegria de matemático que
|
||
resolveu um problema, de inventor feliz!
|
||
- Não se vá meter em alguma conspiração, disse a moça gracejando.
|
||
- Não te assustes por isso. A coisa vai naturalmente, não é preciso
|
||
violências...
|
||
Nisto Ricardo Coração dos Outros entrou com o seu longo e rabudo
|
||
fraque de sarja e o seu violão encapotado em camurça. O major fez as
|
||
apresentações.
|
||
- Já o conhecia de nome, Senhor Ricardo, disse Olga.
|
||
Coração dos Outros encheu-se de um alvissareiro contentamento. A sua
|
||
fisionomia minguada dilatou-se ao brilho do seu olhar satisfeito; e
|
||
a sua cútis que era ressecada e de um tom de velho mármore, como que
|
||
ficou macia e jovem. Aquela moça parecia rica, era fina e bonita,
|
||
conhecia-o - que satisfação! Ele que era sempre um tanto parvo e
|
||
atrapalhado, quando se encontrava diante das moças, fossem de que
|
||
condição fossem, animava-se, soltava a língua, amaciava a voz e
|
||
ficava numeroso e eloqüente.
|
||
- Leu então os meus versos, não é, minha senhora?
|
||
- Não tive esse prazer, mas li, há meses, uma apreciação sobre um
|
||
trabalho seu.
|
||
- No Tempo, não foi?
|
||
- Foi.
|
||
- Muito injusta! acrescentou Ricardo. Todos os críticos se atêm a
|
||
essa questão de metrificação. Dizem que os meus versos não são
|
||
versos... São, sim, mas são versos para violão. Vossa Excelência
|
||
sabe que os versos para música têm alguma coisa de diferente dos
|
||
comuns, não é? Não há, portanto, nada a admirar que os meus versos,
|
||
feitos para o violão, sigam outra métrica e outro sistema, não acha?
|
||
- Decerto, disse a moça. Mas parece-me que o Senhor faz versos para
|
||
a música e não música para os versos.
|
||
E ela sorriu devagar, enigmaticamente, deixando parado o seu olhar
|
||
luminoso, enquanto Ricardo, desconfiado, lhe sondava a intenção com
|
||
os seus olhinhos vivos e miúdos de camundongo.
|
||
Quaresma, que até ali se conservava calado, interveio:
|
||
- O Ricardo, Olga, é um artista... Tenta e trabalha para levantar o
|
||
violão.
|
||
- Eu sei, padrinho. Eu sei...
|
||
- Entre nós, minha senhora, falou Coração dos Outros, não se levam
|
||
a sério essas tentativas nacionais, mas, na Europa, todos respeitam
|
||
e auxiliam... Como é que se chama, major, aquele poeta que escreveu
|
||
em francês popular?
|
||
- Mistral, acudiu Quaresma, mas não é francês popular; é o
|
||
provençal, uma verdadeira língua.
|
||
- Sim, é isso, confirmou Ricardo. Pois o Mistral não é considerado,
|
||
respeitado? Eu, no tocante ao violão, estou fazendo o mesmo.
|
||
Olhou triunfante para um e outro circunstante; e Olga dirigindo-se a
|
||
ele, disse:
|
||
- Continue na tentativa, Senhor Ricardo, que é digno de louvor.
|
||
- Obrigado. Fique certa, minha senhora, que o violão é um belo
|
||
instrumento e tem grandes dificuldades. Por exemplo...
|
||
- Qual! Interroumpeu Quaresma abruptamente. Há outros mais
|
||
difíceis.
|
||
- O piano? perguntou Ricardo.
|
||
- Que piano! O maracá, a inúbia.
|
||
- Não conheço.
|
||
- Não conheces? É boa! Os instrumentos mais nacionais possíveis, os
|
||
únicos que o são verdadeiramente; instrumentos dos nossos
|
||
antepassados, daquela gente valente que se bateu e ainda se bate
|
||
pela posse desta linda terra. Os caboclos!
|
||
- Instrumento de caboclo, ora! disse Ricardo.
|
||
- De caboclo! Que é que tem? O Léry diz que são muito sonoros e
|
||
agradáveis de ouvir... Se é por ser de caboclo, o violão também não
|
||
vale nada. - é um instrumento de capadócio.
|
||
- De capadócio, major! Não diga isso...
|
||
E os dois ainda discutiram acaloradamente diante da moça, surpresa,
|
||
espantada, sem atinar, sem explicação para aquela inopinada
|
||
transformação de gênio do seu padrinho, até ali tão sossegado e tão
|
||
calmo.
|
||
III
|
||
A NOTÍCIA DO GENELÍCIO
|
||
Então quando se casa, Dona Ismênia?
|
||
- Em março. Cavalcânti já está formado e...
|
||
Afinal a filha do general pôde responder com segurança à pergunta
|
||
que se lhe vinha fazendo há quase cinco anos. O noivo finalmente
|
||
encontrara o fim do curso de dentista e marcara o casamento para dai
|
||
a três meses. A alegria foi grande na família; e, como em tal caso,
|
||
uma alegria não podia passar sem um baile, uma festa foi anunciada
|
||
para o sábado que se seguia ao pedido da pragmática.
|
||
As irmãs da noiva, Quinota, Zizi, Lalá e Vivi, estavam mais
|
||
contentes que a irmã nubente. Parecia que ela lhes ia deixar o
|
||
caminho desembaraçado, e fora a irmã quem até ali tinha impedido que
|
||
se casassem.
|
||
Noiva havia quase cinco anos, Ismênia já se sentia meio casada. Esse
|
||
sentimento junto à sua natureza pobre fê-la não sentir um pouco mais
|
||
de alegria. Ficou no mesmo. Casar, para ela, não era negócio de
|
||
paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos; era uma idéia,
|
||
uma pura idéia. Aquela sua inteligência rudimentar tinha separado da
|
||
idéia de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual
|
||
liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe
|
||
dizer: “Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar”... ou
|
||
senão: “Você precisa aprender a pregar botões, porque quando você se
|
||
casar...”
|
||
A todo instante e a toda hora, lá vinha aquele - “porque, quando
|
||
você se casar...” - e a menina foi se convencendo de que toda a
|
||
existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações
|
||
íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa
|
||
coisa: casar.
|
||
De resto, não era só dentro de sua família que ela encontrava aquela
|
||
preocupação. No colégio, na rua, em casa das famílias conhecidas, só
|
||
se falava em casar. “Sabe, Dona Maricota, a Lili casou-se, não fez
|
||
grande negócio, pois parece que o noivo não é lá grande coisa”; ou
|
||
então: “A Zezé está doida para arranjar casamento, mas é tão feia,
|
||
meu Deus!...”
|
||
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das idéias, o
|
||
nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo ninharias para
|
||
aquele cerebrozinho; e, de tal forma casar-se se lhe representou
|
||
coisa importante, uma espécie de dever, que não se casar, ficar
|
||
solteira, “tia”, parecia-lhe um crime, uma vergonha.
|
||
De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir qualquer coisa
|
||
profunda e intensamente, sem quantidade emocional para a paixão ou
|
||
para um grande afeto, na sua inteligência a idéia de “casar-se”
|
||
incrustou-se teimosamente como uma obsessão.
|
||
Ela não era feia; amorenada, com os seus traços acanhados, o
|
||
narizinho mal feito, mas galante, não muito baixa nem muito magra e
|
||
a sua aparência de bondade passiva, de indolência de corpo, de idéia
|
||
e de sentidos - era até um bom tipo das meninas a que os namorados
|
||
chamam - “bonitinhas”. O seu traço de beleza dominante, porém, eram
|
||
seus cabelos: uns bastos cabelos castanhos, com tons de ouro,
|
||
sedosos até ao olhar.
|
||
Aos dezenove anos arranjou namoro com o Cavalcânti, e à fraqueza de
|
||
sua vontade e ao temor de não encontrar marido não foi estranha a
|
||
facilidade com que o futuro dentista a conquistou.
|
||
O pai fez má cara. Ele andava sempre ao par dos namoros da filhas:
|
||
“Diga-me sempre, Maricota - dizia ele - quem são. Olho vivo!... É
|
||
melhor prevenir que curar... Pode ser um valdevinos e...” Sabendo
|
||
que o pretendente à Ismênia era um dentista, não gostou muito. Que é
|
||
um dentista? perguntava ele de si para si. Um cidadão semiformado,
|
||
uma espécie de barbeiro. Preferia um oficial, tinha montepio e meio
|
||
soldo; mas a mulher convenceu-o de que os dentistas ganham muito, e
|
||
ele acedeu.
|
||
Começou então Cavalcânti a freqüentar a casa na qualidade de noivo
|
||
“paisano”, isto é, que não pediu, não é ainda “oficial”.
|
||
No fim do primeiro ano, tendo notícia das dificuldades com que o
|
||
futuro genro lutava para acabar os estudos, o general foi
|
||
generosamente em seu socorro. Pagou-lhe taxas de matrículas, livros
|
||
e outras coisas. Não era raro que após uma longa conversa com a
|
||
filha, Dona Maricota viesse ao marido e dissesse: “Chico, arranja-me
|
||
vinte mil-réis que o Cavalcânti precisa comprar uma Anatomia”.
|
||
O general era leal, bom e generoso; a não ser a sua pretensão
|
||
marcial, não havia no seu caráter a mínima falha. Demais, aquela
|
||
necessidade de casar as filhas ainda o faziam melhor quando se
|
||
tratava dos interesses delas.
|
||
Ele ouvia a mulher, coçava a cabeça e dava o dinheiro; e até para
|
||
evitar despesas ao futuro genro, convidou-o a jantar em casa todo
|
||
dia; e assim o namoro foi correndo até ali.
|
||
Enfim - dizia Albernaz à mulher, na noite do pedido, quando já
|
||
recolhidos - a coisa vai acabar. Felizmente, respondia-lhe Dona
|
||
Maricota, vamos descontar esta letra.
|
||
A satisfação resignada do general era porém, falsa; ao contrário:
|
||
ele estava radiante. Na rua, se encontrava um camarada, no primeiro
|
||
momento azado, lá dizia ele:
|
||
- É um inferno, esta vida! Imagina tu, Castro, que ainda por cima
|
||
tenho que casar uma filha!
|
||
Ao que Castro interrogava:
|
||
- Qual delas?
|
||
- A Ismênia, a segunda, respondia Albernaz e logo acrescentava: tu
|
||
é que és feliz: só tiveste filhos.
|
||
- Ah! meu amigo! falava o outro cheio de malícia, aprendi a
|
||
receita. Por que não fizeste o mesmo?
|
||
Despedindo-se, o velho Albernaz corria aos armazéns, às lojas de
|
||
louça, comprava mais pratos, mais compoteiras, um centro de mesa,
|
||
porque a festa devia ser imponente e ter um ar de abundância e
|
||
riqueza que traduzisse o seu grande contentamento,
|
||
Na manhã do dia da festa comemorativa do pedido, Dona Maricota
|
||
amanheceu cantando. Era raro que o fizesse: mas nos dias de grande
|
||
alegria, ela cantarolava uma velha ária, uma coisa do seu tempo de
|
||
moça e as filhas que sentiam nisto sinal certo de alegria corriam a
|
||
ela, pedindo-lhe isto ou aquilo.
|
||
Muito ativa, muito diligente, não havia dona-de-casa mais econômica,
|
||
mais poupada e que fizesse render mais o dinheiro do marido e o
|
||
serviço das criadas. Logo que despertou, pôs tudo em atividade, as
|
||
criadas e as filhas. Vivi e Quinota foram para os doces; Lalá e Zizi
|
||
auxiliaram as raparigas na arrumação das salas e dos quartos,
|
||
enquanto ela e Ismênia iam arrumar a mesa, dispô-la com muito gosto
|
||
e esplendor. O móvel ficaria assim galhardo desde as primeiras horas
|
||
do dia. A alegria de Dona Maricota era grande; ela não compreendia
|
||
que uma mulher pudesse viver sem estar casada. Não eram só os
|
||
perigos a que se achava exposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feio
|
||
e desonroso para a família. A sua satisfação não vinha do simples
|
||
fato de ter descontado uma letra, como ele dizia. Vinha mais
|
||
profundamente dos seus sentimentos maternos e de família.
|
||
Ela arrumava a mesa, nervosa e alegre; e a filha fria e indiferente,
|
||
- Mas, minha filha, dizia ela, até parece que não é você quem se
|
||
vai casar! Que cara! Você parece aí uma “mosca-morta”.
|
||
- Mamãe, que quer que eu faça?
|
||
- Não é bonito rir-se muito, andar aí como uma sirigaita, mas
|
||
também assim como você está! Eu nunca vi noiva assim.
|
||
Durante uma hora, a moça esforçou-se por parecer muito alegre, mas
|
||
logo lhe tornava toda a pobreza de sua natureza, incapaz de vibração
|
||
sentimental, e o natural do seu temperamento vencia-a e não tardava
|
||
em cair naquela doentia lassidão que lhe era própria.
|
||
Veio muita gente. Além das moças e as respeitáveis mães, acudiram ao
|
||
convite do general, o Contra-Almirante Caldas, o doutor Florêncio,
|
||
engenheiro das águas, o Major honorário Inocêncio Bustamante, o
|
||
Senhor Bastos, guarda-livros, ainda parente de Dona Maricota, e
|
||
outras pessoas importantes. Ricardo não fora convidado porque o
|
||
general temia a opinião pública sobre a presença dele em festa
|
||
séria; Quaresma o fora, mas não viera; e Cavalcânti jantara com os
|
||
futuros sogros,
|
||
Às seis horas, a casa já estava cheia. As moças cercavam Ismênia,
|
||
cumprimentando-a, não sem um pouco de inveja no olhar.
|
||
Irene, uma alourada e alta, aconselhava:
|
||
- Eu, se fosse você, comprava tudo no Parque.
|
||
Tratava-se do enxoval. Todas elas, embora solteiras, davam
|
||
conselhos, sabiam as casas barateiras, as peças mais importantes e
|
||
as que podiam ser dispensadas. Estavam ao par.
|
||
A Armanda indicava com um requebro feiticeiro nos olhos:
|
||
- Eu, ontem, vi na Rua da Constituição um dormitório de casal,
|
||
muito bonito, você por que não vai ver, Ismênia? Parece barato.
|
||
A Ismênia era a menos entusiasmada, quase não respondia às
|
||
perguntas; e, se as respondia, era por monossílabos. Houve um
|
||
momento em que sorriu quase com alegria e abandono. Estefânia, a
|
||
doutora, normalista, que tinha nos dedos um anel, com tantas pedras
|
||
que nem uma joalheria, num dado momento, chegou a boca carnuda aos
|
||
ouvidos da noiva e fez uma confidência. Quando deixou de
|
||
segredar-lhe, assim como se quisesse confirmar o dito, dilatou muito
|
||
os seus olhos maliciosos e quentes, e disse alto:
|
||
- Eu quero ver isso... Todas dizem que não... Eu sei...
|
||
Ela aludia à resposta que, à sua confidência, Ismênia tinha dado com
|
||
parcimônia: qual o quê?
|
||
Todas elas, conversando, tinham os olhos no piano. Os rapazes e uma
|
||
parte dos velhos rodeavam Cavalcânti, muito solene, dentro de um
|
||
grande fraque preto.
|
||
- Então, doutor, acabou, hein? dizia este a jeito de um
|
||
cumprimento.
|
||
- É verdade! Trabalhei. Os senhores não imaginam os tropeços, os
|
||
embargos - fui de um heroísmo!...
|
||
- Conhece o Chavantes? perguntava um outro.
|
||
- Conheço. Um crônico, um pândego...
|
||
- Foi seu colega?
|
||
- Foi, isto é, ele é do curso de medicina. Matriculamo-nos no mesmo ano.
|
||
Cavalcânti ainda não tinha tido tempo de atender a este e já era
|
||
obrigado a ouvir a observação de outro.
|
||
- É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não
|
||
estava agora a quebrar a cabeça no “deve” e “haver”. Hoje, torço a
|
||
orelha e não sai sangue.
|
||
- Atualmente, não vale nada, meu caro senhor, dizia modestamente
|
||
Cavalcânti. Com essas academias livres... Imaginem que já se fala
|
||
numa Academia Livre de Odontologia! É o cúmulo! Um curso difícil e
|
||
caro, que exige cadávares, aparelhos, bons professores, como é que
|
||
particulares poderão mantê-lo? Se o governo mantém mal...
|
||
- Pois doutor, acudia um outro, dou-lhe meus parabéns, Digo-lhe o
|
||
que disse ao meu sobrinho, quando se formou: vá furando!
|
||
- Ah! Seu sobrinho é formado? inquiria delicadamente Cavalcânti.
|
||
- Em engenharia. Está no Maranhão, na estrada de Caxias.
|
||
- Boa carreira.
|
||
Nos intervalos da conversa, todos eles olhavam o novel dentista como
|
||
se fosse um ente sobrenatural.
|
||
Para aquela gente toda, Cavalcânti não era mais um simples homem,
|
||
era homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior; e não
|
||
juntavam à imagem que tinham dele atualmente, as coisas que
|
||
porventura ele pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava
|
||
nela de modo algum; e aquele tipo, para alguns, continuava a ser
|
||
vulgar, comum, na aparência, mas a sua substância tinha mudado, era
|
||
outra diferente da deles e fora ungido de não sei que coisa
|
||
vagamente fora da natureza terrestre, quase divina.
|
||
Para o lado de Cavalcânti, que se achava na sala de visitas, vieram
|
||
os menos importantes. O general ficara na sala de jantar, fumando,
|
||
cercado dos mais titulados e dos mais velhos. Estavam com ele o
|
||
Contra-Almirante Caldas, o Major Inocêncio, o doutor Florêncio e o
|
||
Capitão de Bombeiros Sigismundo.
|
||
Inocêncio aproveitou a ocasião para fazer uma consulta a Caldas
|
||
sobre assunto de legislação militar. O contra-almirante era
|
||
interessantíssimo, Na Marinha, por pouco que não fazia pendant com
|
||
Albernaz no Exército. Nunca embarcara, a não ser na guerra do
|
||
Paraguai, mas assim mesmo por muito pouco tempo. A culpa, porém, não
|
||
era dele. Logo que se viu primeiro-tenente, Caldas foi aos poucos se
|
||
metendo consigo, abandonando a roda dos camaradas, de forma que, sem
|
||
empenhos e sem amigos nos altos lugares, se esqueciam dele e não lhe
|
||
davam comissões de embarque. É curiosa essa coisa das administrações
|
||
militares: as comissões são merecimento, mas só se as dá aos protegidos,
|
||
Certa vez, quando era já capitão-tenente, deram-lhe um embarque em
|
||
Mato Grosso. Nomearam-no para comandar o couraçado “Lima Barros”.
|
||
Ele lá foi, mas, quando se apresentou ao comandante da flotilha,
|
||
teve notícia de que não existia no rio Paraguai semelhante navio.
|
||
Indagou daqui e dali e houve quem aventurasse que podia ser que o
|
||
tal “Lima Barros” fizesse parte da esquadrilha do alto Uruguai.
|
||
Consultou o comandante.
|
||
- Eu, no seu caso, disse-lhe o superior, partia imediatamente para
|
||
a flotilha do Rio Grande.
|
||
Ei-lo a fazer malas para o alto Uruguai, onde chegou enfim, depois
|
||
de uma penosa e fatigante viagem. Mas aí também não estava o tal
|
||
“Lima Barros”. Onde estaria então? Quis telegrafar para o Rio de
|
||
Janeiro, mas teve medo de ser censurado, tanto mais que não andava
|
||
em cheiro de santidade. Esteve assim um mês em Itaqui, hesitante,
|
||
sem receber soldo e sem saber que destino tomar. Um dia khe veio a
|
||
idéia de que o navio bem poderia estar no Amazonas. Embarcou na
|
||
intenção de ir ao extremo norte e quando passou pelo Rio, conforme a
|
||
praxe, apresentou-se às altas autoridades da Marinha. Foi preso e
|
||
submetido a conselho.
|
||
O “Lima Barros” tinha ido a pique, durante a guerra do Paraguai.
|
||
Embora absolvido, nunca mais entrou em graça dos ministros e dos
|
||
seus generais. Todos o tinham na conta de parvo, de um comandante de
|
||
opereta que andava à cata do seu navio pelos quatro pontos cardeais.
|
||
Deixaram-no “encostado”, como se diz na gíria militar, e ele levou
|
||
quase quarenta anos para chegar de guarda-marinha a
|
||
capitão-de-fragata. Reformado no posto imediato, com graduação do
|
||
seguinte, todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num
|
||
longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos,
|
||
consultas, que se referissem a promoções de oficiais. Comprava
|
||
repertórios de legislação, armazenava coleções de leis, relatórios,
|
||
e encheu a casa de toda essa enfadonha e fatigante literatura
|
||
administrativa. Os requerimentos, pedindo a modificação da sua
|
||
reforma, choviam sobre os ministros da Marinha. Corriam meses o
|
||
infinito rosário de repartiçôes e eram sempre indeferidos, sobre
|
||
consultas do Conselho Naval ou do Supremo Tribunal Militar.
|
||
Ultimamente constituíra advogado junto à justiça federal e lá andava
|
||
ele de cartório em cartório, acotovelando-se com meirinhos,
|
||
escrivães, juízes e advogados - esse poviléu rebarbativo do foro
|
||
que parece ter contraído todas as misérias que lhe passam pelas mãos
|
||
e pelos olhos.
|
||
Inocêncio Bustamante também tinha a mesma mania demandista. Era
|
||
renitente, teimoso mas servil e humilde. Antigo voluntário da
|
||
pátria, possuindo honras de major, não havia dia em que não fosse ao
|
||
quartel-general ver o andamento do seu requerimento e de outros. Num
|
||
pedia inclusão no Asilo dos Inválidos, noutro honras de
|
||
tenente-coronel, noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha
|
||
nenhum, ia ver o dos outros.
|
||
Não se pejou mesmo de tratar do pedido de um maníaco que, por ser
|
||
tenente honorário e também: da Guarda Nacional, requereu lhe fosse
|
||
passada a patente de major, visto que dois galões mais outros dois
|
||
fazem quatro - o que quer dizer: major.
|
||
Conhecedor dos estudos meticulosos do almirante, Bustamante fez a
|
||
sua consulta.
|
||
- Assim de pronto, não sei. Não é a minha especialidade o Exército,
|
||
mas vou ver. Isto também anda tão atrapalhado!
|
||
Acabando de responder coçava um dos seus favoritos brancos, que lhe
|
||
davam um ar de “comodoro” ou de chacareiro português, pois era forte
|
||
nele o tipo lusitano.
|
||
- Ah! meu tempo, observou Albernaz. Quanta ordem! Quanta
|
||
disciplina!
|
||
- Não há mais gente que preste, disse Bustamante.
|
||
Sigismundo por aí aventurou também a sua opinião, dizendo:
|
||
- Eu não sou militar, mas...
|
||
- Como não é militar? fez Albernaz, com ímpeto. Os senhores é que
|
||
são os verdadeiros: estão sempre com o inimigo na frente, não acha,
|
||
Caldas?
|
||
- Decerto, decerto, fez o almirante cofiando os favoritos.
|
||
- Como ia dizendo, continuou Sigismundo, apesar de não ser militar,
|
||
eu me animo a dizer que a nossa força está muito por baixo. Onde
|
||
está um Porto Alegre, um Caxias?
|
||
- Não há mais, meu caro, confirmou com voz tênue o doutor Florêncio.
|
||
- Não sei por que, pois tudo hoje não vai pela ciência?
|
||
Fora Caldas quem falara, tentando a ironia. Albernaz indignou-se e
|
||
retrucou-lhe com certo calor:
|
||
- Eu queria ver esses meninos bonitos, cheios de “xx” e “yy” em
|
||
Curupaiti, hein Caldas? hein Inocêncio?
|
||
O doutor Florêncio era o único paisano da roda. Engenheiro e
|
||
empregado público, os anos e o sossego da vida lhe tinham feito
|
||
perder todo o saber que porventura pudesse ter tido ao sair da
|
||
escola, Era mais um guarda de encanamentos do que mesmo um
|
||
engenheiro. Morando perto de Albernaz, era raro que não viesse toda
|
||
a tarde jogar o solo com o general. O doutor Florêncio perguntou:
|
||
- O senhor assistiu, não foi, general?
|
||
O general não se deteve, não se atrapalhou, não gaguejou e disse com
|
||
a máxima naturalidade:
|
||
- Não assisti. Adoeci e vim para o Brasil nas vésperas. Mas tive
|
||
muitos amigos lá: o Camisão, o Venâncio...
|
||
Todos se calaram e olharam a noite que chegava. Da janela da sala
|
||
onde estavam, não se via nem um monte. O horizonte estava
|
||
circunscrito aos fundos dos quintais das casas vizinhas com as suas
|
||
cordas de roupa a lavar, suas chaminés e o piar de pintos. Um
|
||
tamarineiro sem folhas lembrava tristemente o ar livre, as grandes
|
||
vistas sem fim. O sol já tinha desaparecido do horizonte e as tênues
|
||
luzes dos bicos de gás e dos lampiões familiares começavam a
|
||
acender-se por detrás das vidraças.
|
||
Bustamante quebrou o silêncio:
|
||
- Este país não vale mais nada. Imaginem que o meu requerimento,
|
||
pedindo honras de tenente-coronel, está no ministério há seis meses!
|
||
- Uma desordem, exclamaram todos.
|
||
Era noite. Dona Maricota chegou até onde eles estavam, muito ativa,
|
||
muito diligente e com o rosto aberto de alegria.
|
||
- Estão rezando? E logo ajuntou: Dão licença que diga uma coisa ao
|
||
Chico, sim?
|
||
Albernaz saiu fora da roda dos amigos e foi até a um canto da sala,
|
||
onde a mulher lhe disse alguma coisa em voz baixa. Ouviu a mulher,
|
||
depois voltou aos amigos e, no meio do caminho, falou alto, nestes termos:
|
||
- Se não dançam é porque não querem. Estou pegando alguém?
|
||
Dona Maricota aproximou-se dos amigos do marido e explicou:
|
||
- Os senhores sabem: se a gente não animar, ninguém tira par,
|
||
ninguém toca. Estão lá tantas moças, tantos rapazes, é uma pena!
|
||
- Bem; eu vou lá, disse Albernaz.
|
||
Deixou os amigos e foi à sala de visitas dar começo ao baile.
|
||
- Vamos, meninas! Então o que é isso? Zizi, uma valsa!
|
||
E ele mesmo em pessoa ia juntando os pares: “Não, general, já tenho
|
||
par”, dizia uma moça. “Não faz mal”, retrucava ele, “dance com o
|
||
Raimundinho; o outro espera”.
|
||
Depois de ter dado início ao baile, veio para a roda dos amigos
|
||
suado, mas contente.
|
||
- Isto de família! Qual! A gente até parece bobo, dizia. Você é que
|
||
faz bem, Caldas; não se quis casar!
|
||
- Mas tenho mais filhos que você. Só sobrinhos, oito; e os primos?
|
||
- Vamos jogar o solo, convidou Albernaz.
|
||
- Somos cinco, como há de ser? observou Florêncio.
|
||
- Não, eu não jogo, disse Bustamante.
|
||
- Então jogamos os quatro de garrancho? lembrou Albernaz.
|
||
As cartas vieram e também uma pequena mesa de tripeça. Os parceiros
|
||
sentaram-se e tiraram a sorte para ver quem dava. Coube a Florêncio
|
||
dar. Começaram. Albernaz tinha um ar atento quando jogava: a cabeça
|
||
lhe caía sobre as costas e os seus olhos tomavam uma grande
|
||
expressão de reflexão. Caldas aprumava o busto na cadeira e jogava
|
||
com a serenidade de um lorde-almirante numa partida de whist.
|
||
Sigismundo jogava com todo o cuidado, com o cigarro no canto da boca
|
||
e a cabeça do lado para fugir à fumaça. Bustamante fora à sala ver as
|
||
s.
|
||
Tinham começado a partida, quando Dona Quinota, uma das filhas do
|
||
general, atravessou a sala e foi beber água; Caldas, coçando um dos
|
||
favoritos, perguntou à moça:
|
||
- Então, Dona Quinota, quedê o Genelício?
|
||
A moça virou o rosto com faceirice, deu um pequeno muxoxo e
|
||
respondeu com falso mau humor:
|
||
- Ué! Sei lá! Ando atrás dele?
|
||
- Não precisa zangar-se, Dona Quinota; é uma simples pergunta,
|
||
advertiu Caldas,
|
||
O general que examinava atentamente as cartas recebidas, interrompeu
|
||
a conversa com voz grave:
|
||
- Eu passo.
|
||
Dona Quinota retirou-se. Este Genelício era o seu namorado. Parente
|
||
ainda de Caldas, tinha-se como certo o seu casamento na família. A
|
||
sua candidatura era favorecida por todos. Dona Maricota e o marido
|
||
enchiam- no de festas. Empregado do Tesouro, já no meio da carreira,
|
||
moço de menos de trinta anos, ameaçava ter um grande futuro. Não
|
||
havia ninguém mais bajulador e submisso do que ele. Nenhum pudor,
|
||
nenhuma vergonha! Enchia os chefes e os superiores de todo incenso
|
||
que podia. Quando saía, remancheava, lavava três ou quatro vezes as
|
||
mãos, até poder apanhar o diretor na porta. Acompanhava-o,
|
||
conversava com ele sobre o serviço, dava pareceres e opiniões,
|
||
criticava este ou aquele colega, e deixava-o no bonde, se o homem ia
|
||
para casa. Quando entrava um ministro, fazia-se escolher como
|
||
intérprete dos companheiros e deitava um discurso; nos aniversários
|
||
de nascimento, era um soneto que começava sempre por - “Salve” - e
|
||
acabava também por - “Salve! Três vezes Salve!”.
|
||
O modelo era sempre o mesmo; ele só mudava o nome do ministro e
|
||
punha a data.
|
||
No dia seguinte, os jornais falavam do seu nome, e publicavam o
|
||
soneto.
|
||
Em quatro anos, tinha tido duas promoções e agora trabalhava para
|
||
ser aproveitado no Tribunal de Contas, a se fundar, num posto acima.
|
||
Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio.
|
||
Não se limitava ao soneto, ao discurso; buscava outros meios, outros
|
||
processos. Um dos que se servia, eram as publicações nas folhas
|
||
diárias. No intuito de anunciar aos ministros e diretores que tinha
|
||
uma erudição superior, de quando em quando desovava nos jornais
|
||
longos artigos sobre contabilidade pública. Eram meras compilações
|
||
de bolorentos decretos, salpicadas aqui e ali com citações de
|
||
autores franceses ou portugueses.
|
||
Interessante é que os companheiros o respeitavam, tinham em grande
|
||
conta o seu saber e ele vivia na seção cercado do respeito de um
|
||
gênio, um gênio do papelório e das informações. Acresce que
|
||
Genelício juntava à sua segura posição administrativa, um curso de
|
||
direito a acabar; e tantos títulos juntos não podiam deixar de
|
||
impressionar favoravelmente às preocupações casamenteiras do casal
|
||
az.
|
||
Fora da repartição, tinha um empertigamento que o seu pobre físico
|
||
fazia cômico, mas que a convicção do alto auxílio que prestava ao
|
||
Estado, mantinha e sustentava. Um empregado modelo!...
|
||
O jogo continuava silenciosamente e a noite avançava. No fim das
|
||
“mãos” fazia-se um breve comentário ou outro, e no começo ouviam-se
|
||
unicamente as “falas” sacramentais do jogo: “solo, bolo, melhoro,
|
||
passo.” Feitas elas, jogava-se em silêncio; da sala, porém, vinha o
|
||
ruído festivo das danças e das conversas.
|
||
- Olhem quem está aí!
|
||
- O Genelício, fez Caldas. Onde estiveste, rapaz?
|
||
Deixou o chapéu e a bengala numa cadeira e fez os cumprimentos.
|
||
Pequeno, já um tanto curvado, chupado de rosto, com um pince-nez
|
||
azulado, todo ele traía a profissão, os seus gostos e hábitos. Era
|
||
um escriturário.
|
||
- Nada, meus amigos! Estou tratando dos meus negócios.
|
||
- Vão bem? perguntou Florêncio.
|
||
- Quase garantido. O ministro prometeu... Não há nada, estou bem
|
||
“cunhado”!
|
||
- Estimo muito, disse o general.
|
||
- Obrigado. Sabe de uma coisa, general?
|
||
- O que é?
|
||
- O Quaresma está doido.
|
||
- Mas... o quê? Quem foi que te disse?
|
||
- Aquele homem do violão. Já está na casa de saúde”.
|
||
- Eu logo vi, disse Albernaz, aquele requerimento era de doido.
|
||
- Mas não é só, general, acrescentou Genelício. Fez um ofício em
|
||
tupi e mandou ao ministro.
|
||
- É o que eu dizia, fez Albernaz.
|
||
- Quem é? perguntou Florêncio.
|
||
- Aquele vizinho, empregado do arsenal; não conhece?
|
||
- Um baixo, de pince-nez?
|
||
- Este mesmo, confirmou Caldas.
|
||
- Nem se podia esperar outra coisa, disse o doutor Florêncio.
|
||
Aqueles livros, aquela mania de leitura...
|
||
- Pra que ele lia tanto? indagou Caldas.
|
||
- Telha de menos, disse Florêncio.
|
||
Genelício atalhou com autoridade:
|
||
- Ele não era formado, para que meter-se em livros?
|
||
- É verdade, fez Florêncio.
|
||
- Isto de livros é bom para os sábios, para os doutores, observou
|
||
Sigismundo.
|
||
- Devia até ser proibido, disse Genelício, a quem não possuísse um
|
||
título “acadêmico” ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças.
|
||
Não acham?
|
||
- Decerto, disse Albernaz.
|
||
- Decerto, fez Caldas.
|
||
- Decerto, disse também Sigismundo.
|
||
Calaram-se um instante, e as atenções convergiram para o jogo.
|
||
- Já saíram todos os trunfos?
|
||
- Contasse, meu amigo.
|
||
Albernaz perdeu e lá na sala fez-se silêncio. Cavalcânti ia recitar.
|
||
Atravessou a sala triunfantemente, com um largo sorriso na face e
|
||
foi postar-se ao lado do piano. Zizi acompanhava. Tossiu e, com a
|
||
sua voz metálica, apurando muito os finais em “s”, começou:
|
||
A vida é uma comédia sem sentido,
|
||
Uma história de sangue e de poeira
|
||
Um deserto sem luz...
|
||
E o piano gemia.
|
||
IV
|
||
DESASTROSAS CONSEQÜÊNCIAS DE UM REQUERIMENTO
|
||
Os acontecimentos a que aludiam os graves personagens reunidos em
|
||
torno da mesa de solo, na tarde memorável da festa comemorativa do
|
||
pedido de casamento de Ismênia, se tinham desenrolado com rapidez
|
||
fulminante. A força de idéias e sentimentos contidos em Quaresma se
|
||
havia revelado em atos imprevistos com uma seqüência brusca e uma
|
||
velocidade de turbilhão. O primeiro fato surpreendeu, mas vieram
|
||
outros e outros, de forma que o que pareceu no começo uma
|
||
extravagância, uma pequena mania, se apresentou logo em insânia
|
||
declarada.
|
||
Justamente algumas semanas antes do pedido de casamento, ao abrirse
|
||
a sessão da Câmara, o secretário teve que proceder à leitura de um
|
||
requerimento singular e que veio a ter uma fortuna de publicidade e
|
||
comentário pouco usual em documentos de tal natureza.
|
||
O burburinho e a desordem que caracterizam o recolhimento
|
||
indispensável ao elevado trabalho de legislar, não permitiram que os
|
||
deputados o ouvissem; os jornalistas, porém, que estavam próximo à
|
||
mesa, ao ouvilo, prorromperam em gargalhadas, certamente
|
||
inconvenientes à majestade do lugar. O riso é contagioso. O
|
||
secretário, no meio da leitura, ria-se, discretamente; pelo fim, já
|
||
ria-se o presidente, ria-se o oficial da ata, ria-se o contínuo -
|
||
toda a mesa e aquela população que a cerca, riram-se da petição,
|
||
largamente, querendo sempre conter o riso, havendo em alguns tão
|
||
franca alegria que as lágrimas vieram.
|
||
Quem soubesse o que uma tal folha de papel representava de esforço,
|
||
de trabalho, de sonho generoso e desinteressado, havia de sentir uma
|
||
penosa tristeza, ouvindo aquele rir inofensivo diante dela. Merecia
|
||
raiva, ódio, um deboche de inimigo talvez, o documento que chegava à
|
||
mesa da Câmara, mas não aquele recebimento hilárico, de uma
|
||
hilaridade inocente, sem fundo algum, assim como se estivesse a rir
|
||
de uma palhaçada, de uma sorte de circo de cavalinhos ou de uma
|
||
careta de clown.
|
||
Os que riam, porém, não lhe sabiam a causa e só viam nele um motivo
|
||
para riso franco e sem maldade. A sessão daquele dia fora fria; e,
|
||
por ser assim, as seções dos jornais referentes à Câmara, no dia
|
||
seguinte, publicaram o seguinte requerimento e glosaram-no em todos
|
||
os tons.
|
||
Era assim concebida a petição:
|
||
“Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo
|
||
de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo tam bém de
|
||
que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no
|
||
campo das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer
|
||
continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo,
|
||
além, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com
|
||
espe cialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção
|
||
gra matical, vendo-se, diariamente, surgir azedas polêmicas entre os
|
||
mais profundos estudiosos do nosso idioma - usando do direito que
|
||
lhe confere a Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional
|
||
decrete o tupi-guarani, como língua oficial e nacional do povo brasileiro.
|
||
O suplicante, deixando de parte os argumentos históricos que militam
|
||
em favor de sua idéia, pede vênia para lembrar que a língua é a mais
|
||
alta manifestação da inteligência de um povo, é a sua cria ção mais
|
||
viva e original; e, portanto, a emancipação política do país requer
|
||
como complemento e consequência a sua emancipação idiomática.
|
||
Demais, Senhores Congressistas, o tupi-guarani, língua origina
|
||
líssima, aglutinante, é verdade, mas a que o polissintetismo dá
|
||
múlti plas feições de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas
|
||
belezas, de pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se
|
||
perfeita mente aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por ser criação
|
||
de povos que aqui viveram e ainda vivem, portanto possuidores da
|
||
organiza ção fisiológica e psicológica para que tendemos,
|
||
evitando-se dessa forma as estéreis controvérsias gramaticais,
|
||
oriundas de uma difícil adaptação de uma língua de outra região à
|
||
nossa organização cere bral e ao nosso aparelho vocal -
|
||
controvérsias que tanto empecem o progresso da nossa cultura
|
||
literária, científica e filosófica.
|
||
Seguro de que a sabedoria dos legisladores saberá encontrar meios
|
||
para realizar semelhante medida e cônscio de que a Câmara e o Senado
|
||
pesarão o seu alcance e utilidade P. e E. deferimento”.
|
||
Assinado e devidamente estampilhado, este requerimento do major foi
|
||
durante dias assunto de todas as palestras. Publicado em todos os
|
||
jornais, com comentários facetos, não havia quem não fizesse uma
|
||
pilhéria sobre ele, quem não ensaiasse um espírito à custa da
|
||
lembrança de Quaresma. Não ficaram nisso; a curiosidade malsã quis
|
||
mais. Indagou-se quem era, de que vivia, se era casado, se era
|
||
solteiro. Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o major
|
||
foi apontado na rua. Os pequenos jornais alegres, esses semanários
|
||
de espírito e troça, então! eram de um encarniçamento atroz com o
|
||
pobre major. Com uma abundância que marcava a felicidade dos
|
||
redatores em terem encontrado um assunto fácil, o texto vinha cheio
|
||
dele: O Major Quaresma disse isso; o Major Quaresma fez aquilo. Um
|
||
deles, além de outras referências, ocupou uma página inteira com o
|
||
assunto da semana. Intitulava-se a ilustração: “O Matadouro de Santa
|
||
Cruz, segundo o Major Quaresma”, e o desenho representava uma fila
|
||
de homens e mulheres a marchar para o choupo que se via à esquerda.
|
||
Um outro referia-se ao caso pintando um açougue, “O Açougue
|
||
Quaresma”; legenda: a cozinheira perguntava ao açougueiro: - O
|
||
senhor tem língua de vaca? O açougueiro respondia: - Não, só temos
|
||
língua de moça, quer?
|
||
Com mais ou menos espírito, os comentários não cessavam e a ausência
|
||
de relações de Quaresma no meio de que saíam, fazia com que fossem
|
||
de uma constância pouco habitual. Levaram duas semanas com o nome do
|
||
retário.
|
||
Tudo isto irritava profundamente Quaresma. Vivendo há trinta anos
|
||
quase só, sem se chocar com o mundo, adquirira uma sensibilidade
|
||
muito viva e capaz de sofrer profundamente com a menor coisa. Nunca
|
||
sofrera críticas, nunca se atirou à publicidade, vivia imerso no seu
|
||
sonho, incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fora
|
||
deles, ele não conhecia ninguém; e, com as pessoas com quem falava,
|
||
trocava pequenas banalidades, ditos de todo dia, coisas com que a
|
||
sua alma e o seu coração nada tinham que ver.
|
||
Nem mesmo a afilhada o tirava dessa reserva, embora a estimasse mais
|
||
que a todos.
|
||
Esse encerramento em si mesmo deu-lhe não sei que ar de estranho a
|
||
tudo, às competições, às ambições, pois nada dessas coisas que fazem
|
||
os ódios e as lutas tinha entrado no seu temperamento.
|
||
Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa
|
||
reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d’alma que vão
|
||
habitar esses homens de uma idéia fixa, os grandes estudiosos, os
|
||
sábios, e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua,
|
||
mais inocente que as donzelas das poesias de outras épocas.
|
||
É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra,
|
||
mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia
|
||
pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na
|
||
felicidade da raça.
|
||
A continuidade das troças feitas nos jornais, a maneira com que o
|
||
olhavam na rua, exasperavam-no e mais forte se enraizava nele a sua
|
||
idéia. À medida que engulia uma troça, uma pilhéria, vinha-lhe
|
||
meditar sobre a sua lembrança, pesar-lhe todos os aspectos,
|
||
examiná-la, detidamente, compará-la a coisas semelhantes, recordar
|
||
os autores e autoridades; e, à proporção que fazia isso, a sua
|
||
própria convicção mostrava a inanidade da crítica, a ligeireza da
|
||
pilhéria, e a idéia o tomava, o avassalava, o absorvia cada vez mais.
|
||
Se os jornais tinham recebido o requerimento com facécias de fundo
|
||
inofensivo e sem ódio, a repartição ficou furiosa. Nos meios
|
||
burocráticos, uma superioridade que nasce fora deles, que é feita e
|
||
organizada com outros materiais que não os ofícios, a sabença de
|
||
textos de regulamentos e a boa caligrafia, é recebida com a
|
||
hostilidade de uma pequena inveja.
|
||
É como se se visse no portador da superioridade um traidor à
|
||
mediocridade, ao anonimato papeleiro. Não há só uma questão de
|
||
promoção, de interesse pecuniário; há uma questão de amor-próprio,
|
||
de sentimentos feridos, vendo aquele colega, aquele galé como eles,
|
||
sujeito aos regulamentos, aos caprichos dos chefes, às olhadelas
|
||
superiores dos ministros, com mais títulos à consideração, com algum
|
||
direito a infringir as regras e os preceitos.
|
||
Olha-se para ele com o ódio dissimulado com que o assassino plebeu
|
||
olha para o assassino marquês que matou a mulher e o amante. Ambos
|
||
são assassinos, mas, mesmo na prisão, ainda o nobre e o burguês
|
||
trazem o ar do seu mundo, um resto da sua delicadeza e uma
|
||
inadaptação que ferem o seu humilde colega de desgraça.
|
||
Assim, quando surge numa secretaria alguém cujo nome não lembra
|
||
sempre o título de sua nomeação, aparecem as pequeninas perfídias,
|
||
as maledicências ditas ao ouvido, as indiretas, todo o arsenal do
|
||
ciúme invejoso de uma mulher que se convenceu de que a vizinha se
|
||
veste melhor do que ela.
|
||
Amam-se ou antes suportam-se melhor aqueles que se fazem célebres
|
||
nas informações, na redação, na assiduidade ao trabalho, mesmo os
|
||
doutores, os bacharéis, do que os que têm nomeada e fama. Em geral,
|
||
a incompreensão da obra ou do mérito do colega e total e nenhum
|
||
deles se pode capacitar que aquele tipo, aquele amanuense, como
|
||
eles, faça qualquer coisa que interesse os estranhos e dê que falar
|
||
a uma cidade inteira,
|
||
A brusca popularidade de Quaresma, o seu sucesso e nomeada efêmera
|
||
irritaram os seus colegas e superiores. Já se viu! dizia o
|
||
secretário. Este tolo dirigir-se ao Congresso e propor alguma coisa!
|
||
Pretensioso! O diretor, ao passar pela secretaria, olhava-o de
|
||
soslaio e sentia que o regulamento não cogitasse do caso para lhe
|
||
infligir uma censura. O colega arquivista era o menos terrível, mas
|
||
chamou-o logo de doido.
|
||
O major sentia bem aquele ambiente falso, aquelas alusões e isso
|
||
mais aumentava o seu desespero e a teimosia na sua idéia. Não
|
||
compreendia que o seu requerimento suscitasse tantas tempestades,
|
||
essa má vontade geral; era uma coisa inocente, uma lembrança
|
||
patriótica que merecia e devia ter o assentimento de todo mundo; e
|
||
meditava, voltava a idéia, e a examinava com mais atenção.
|
||
A extensa publicidade, que o fato tomou, atingiu o palacete de Real
|
||
Grandeza, onde morava o seu compadre Coleoni. Rico com os lucros das
|
||
empreitadas de construções de prédios, viúvo, o antigo quitandeiro
|
||
retirarase dos negócios e vivia sossegado na ampla casa que ele
|
||
mesmo edificara e tinha todos os remates arquitetônicos do seu gosto
|
||
predileto: compoteiras na cimalha, um imenso monograma sobre a porta
|
||
da entrada, dois cães de louça, nos pilares do portão da entrada e
|
||
outros detalhes equivalentes.
|
||
A casa ficava ao centro do terreno, elevava-se sobre um porão alto,
|
||
tinha um razoável jardim na frente, que avançava pelos lados,
|
||
pontilhado de bolas multicores; varanda, um viveiro, onde pelo calor
|
||
os pássaros morriam tristemente. Era uma instalação burguesa, no
|
||
gosto nacional, vistosa, cara, pouco de acordo com o clima e sem conforto.
|
||
No interior o capricho dominava, tudo obedecendo a uma fantasia
|
||
barroca, a um ecletismo desesperador. Os móveis se amontoavam, os
|
||
tapetes, as sanefas, os bibelots e a fantasia da filha, irregular e
|
||
indisciplinada, ainda trazia mais desordem àquela coleção de coisas
|
||
caras.
|
||
Viúvo, havia já alguns anos, era uma velha cunhada quem dirigia a
|
||
casa e a filha, quem o encaminhava nas distrações e nas festas.
|
||
Coleoni aceitava de bom coração esta doce tirania. Queria casar a
|
||
filha, bem e ao gosto dela; não punha, portanto, nenhum obstáculo ao
|
||
programa de Olga.
|
||
Em começo, pensou em dá-la a seu ajudante ou contramestre, uma
|
||
espécie de arquiteto que não desenhava, mas projetava casas e
|
||
grandes edifícios. Primeiro sondou a filha. Não encontrou
|
||
resistência, mas não encontrou também assentimento. Convenceu-se de
|
||
que aquela vaporosidade da menina, aquele seu ar distante de
|
||
heroína, a sua inteligência, o seu fantástico, não se dariam bem com
|
||
as rudezas e a simplicidade campônias de seu auxiliar.
|
||
Ela quer um doutor - pensava ele - que arranje! Com certeza, não
|
||
terá ceitil, mas eu tenho e as coisas se acomodam.
|
||
Ele se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o
|
||
barão de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; lá, é
|
||
visconde; aqui, é doutor, bacharel ou dentista; e julgou muito
|
||
aceitável comprar a satisfação de enobrecer a filha com umas meias
|
||
dúzias de contos de réis.
|
||
Havia momentos que se aborrecia um tanto com os propósitos da
|
||
menina. Gostando de dormir cedo, tinha que perder noites e noites no
|
||
Lírico, nos bailes; amando estar sentado em chinelas a fumar
|
||
cachimbo, era obrigado a andar horas e horas pelas ruas, saltitando
|
||
de casa em casa de modas, atrás da filha, para no fim do dia ter
|
||
comprado meio metro de fita, uns grampos e um frasco de perfume.
|
||
Era engraçado vê-lo nas lojas de fazendas cheio de complacência de
|
||
pai que quer enobrecer o filho, a dar opinião sobre o tecido, achar
|
||
este mais bonito, comparar um com outro, com uma falta de sentimento
|
||
daquelas coisas que se adivinhava até no pegá-las. Mas ele ia,
|
||
demorava-se e esforçava-se por entrar no segredo, no mistério, cheio
|
||
de tenacidade e candura perfeitamente paternais.
|
||
Até aí ele ia bem e calcava a contrariedade. Só o contrariavam
|
||
bastante as visitas, as colegas da filha, suas mães, suas irmãs, com
|
||
seus modos de falsa nobreza, os seus desdéns dissimulados, deixando
|
||
perceber ao velho empreiteiro o quanto estava ele distante da
|
||
sociedade das amigas e das colegas de Olga.
|
||
Não se aborrecia, porém, muito profundamente; ele assim o quisera e
|
||
a fizera, tinha que se conformar. Quase sempre, quando chegavam tais
|
||
visitas, Coleoni afastava-se, ia para o interior da casa.
|
||
Entretanto, não lhe era sempre possível fazer isso; nas grandes
|
||
festas e recepções tinha que estar presente e era quando mais sentia
|
||
o velado pouco-caso da alta nobreza da terra que o freqüentava. Ele
|
||
ficava sempre empreiteiro, com poucas idéias além do seu ofício, não
|
||
sabendo fingir, de modo que não se interessava por aquelas
|
||
tagarelices de casamentos, de bailes, de festas e passeios caros.
|
||
Uma vez ou outra um mais delicado propunha-lhe jogar o poker,
|
||
aceitava e sempre perdia. Chegou mesmo a formar uma roda em casa, de
|
||
que fazia parte o conhecido advogado Pacheco. Perdeu e muito, mas
|
||
não foi isso que o fez suspender o jogo. Que perdia? Uns contos -
|
||
uma ninharia! A questão, porém, é que Pacheco jogava com seis
|
||
cartas. A primeira vez que Coleoni deu com isso, pareceu-lhe simples
|
||
distração do distinto jornalista e famoso advogado. Um homem honesto
|
||
não ia fazer aquilo! E na segunda, seria também? E na terceira?
|
||
Não era possível tanta distração. Adquiriu a certeza da
|
||
trampolinagem, calou-se, conteve-se com uma dignidade não esperada
|
||
em um antigo quitandeiro, e esperou. Quando vieram a jogar outra vez
|
||
e o passe foi posto em prática, Vicente acendeu o charuto e observou
|
||
com a maior naturalidade deste mundo:
|
||
- Os senhores sabem que há agora, na Europa, um novo sistema de
|
||
jogar o poker?
|
||
- Qual é? perguntou alguém.
|
||
- A diferença é pequena: joga-se com seis cartas, isto é, um dos
|
||
parceiros, somente.
|
||
Pacheco deu-se por desentendido, continuou a jogar e a ganhar,
|
||
despediu-se à meia-noite cheio de delicadeza, fez alguns comentários
|
||
sobre a partida e não voltou mais.
|
||
Conforme o seu velho hábito, Coleoni lia de manhã os jornais, com o
|
||
vagar e a lentidão de homem pouco habituado à leitura, quando se lhe
|
||
deparou o requerimento do seu compadre do arsenal.
|
||
Ele não compreendeu bem o requerimento, mas os jornais faziam troça,
|
||
caíam tão a fundo sobre a coisa, que imaginou o seu antigo benfeitor
|
||
enleado numa meada criminosa, tendo praticado, por inadvertência,
|
||
alguma falta grave,
|
||
Sempre o tivera na conta do homem mais honesto deste mundo e ainda
|
||
tinha, mas daí quem sabe? Na última vez que o visitou ele não veio
|
||
com aqueles modos estranhos? Podia ser uma pilhéria...
|
||
Apesar de ter enriquecido, Coleoni tinha em grande conta o seu
|
||
obscuro compadre. Havia nele não só a gratidão de camponês que
|
||
recebeu um grande benefício, como um duplo respeito pelo major,
|
||
oriundo da sua qualidade de funcionário e de sábio.
|
||
Europeu, de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquele
|
||
sagrado respeito dos camponeses pelos homens que recebem a
|
||
investidura do Estado; e, como, apesar dos bastos anos de Brasil,
|
||
ainda não sabia juntar o saber aos títulos, tinha em grande
|
||
consideração a erudição do compadre.
|
||
Não é, pois, de estranhar que ele visse com mágoa o nome de Quaresma
|
||
envolvido em fatos que os jornais reprovavam. Leu de novo o
|
||
requerimento, mas não entendeu o que ele queria dizer. Chamou a
|
||
filha.
|
||
- Olga!
|
||
Ele pronunciava o nome da filha quase sem sotaque; mas, quando
|
||
falava português, punha nas palavras uma rouquidão singular, e
|
||
salpicava as frases de exclamações e pequenas expressões italianas.
|
||
- Olga, que quer dizer isto? Non capisco...
|
||
A moça sentou-se a um cadeira próxima e leu no jornal, o
|
||
requerimento e os comentários.
|
||
- Che! Então?
|
||
- O padrinho quer substituir o português pela língua tupi, entende
|
||
o senhor?
|
||
- Como?
|
||
- Hoje, nós não falamos português? Pois bem: ele quer que daqui em
|
||
diante falemos tupi.
|
||
- Tutti?
|
||
- Todos os brasileiros, todos.
|
||
- Ma che coisa! Não é possível?
|
||
- Pode ser. Os tcheques têm uma língua própria, e foram obrigados a
|
||
falar alemão, depois de conquistados pelos austríacos; os lorenos,
|
||
franceses...
|
||
- Per la madonna! Alemão é língua, agora esse acujelê, ecco!
|
||
- Acujelê é da África, papai; tupi é daqui.
|
||
- Per Bacco! É o mesmo... Está doido!
|
||
- Mas não há loucura alguma, papai.
|
||
- Como? Então é coisa de um homem bene?
|
||
- De juízo, talvez não seja; mas de doido, também não.
|
||
- Non capisco.
|
||
- É uma idéia, meu pai, é um plano, talvez à primeira vista
|
||
absurdo, fora dos moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez,
|
||
mas...
|
||
Por mais que quisesse, ela não podia julgar o ato do padrinho sob o
|
||
critério de seu pai. Neste falava o bom senso e nela o amor às
|
||
grandes coisas, aos arrojos e cometimentos ousados. Lembrou-se de
|
||
que Quaresma lhe falara em emancipação; e se houve no fundo de si um
|
||
sentimento que não fosse de admiração pelo atrevimento do major, não
|
||
foi decerto o de reprovação ou lástima; foi de piedade simpática por
|
||
ver mal compreendido o ato daquele homem que ela conhecia há tantos
|
||
anos, seguindo o seu sonho, isolado, obscuro e tenaz.
|
||
- Isto vai causar-lhe transtorno, observou Coleoni.
|
||
E ele tinha razão. A sentença do arquivista foi vencedora nas
|
||
discussões dos corredores e a suspeita de que Quaresma estivesse
|
||
doido foi tomando foros de certeza. Em princípio, o subsecretário
|
||
suportou bem a tempestade; mas tendo adivinhado que o supunham
|
||
insciente no tupi, irritou-se, encheu-se de uma raiva surda, que se
|
||
continha dificilmente. Como eram cegos! Ele que há trinta anos
|
||
estudava o Brasil minuciosamente, ele que em virtude desses estudos,
|
||
fora obrigado a aprender o rebarbativo alemão, não saber tupi, a
|
||
língua brasileira, a única que o era - que suspeita miserável!
|
||
Que o julgassem doido - vá! Mas que desconfiassem da sinceridade de
|
||
suas afirmações, não! E ele pensava, procurava meios de se
|
||
reabilitar, caía em distrações, mesmo escrevendo e fazendo a tarefa
|
||
quotidiana. Vivia dividido em dois: uma parte nas obrigações de todo
|
||
dia, e a outra, na preocupação de provar que sabia o tupi.
|
||
O secretário veio a faltar um dia e o major lhe ficou fazendo as
|
||
vezes. O expediente fora grande e ele mesmo redigira e copiara uma
|
||
parte. Tinha começado a passar a limpo um ofício sobre coisas de
|
||
Mato Grosso, onde se falava em Aquidauana e Ponta Porã, quando o
|
||
Carmo disse lá do fundo da sala, com acento escarninho:
|
||
- Homero, isto de saber é uma coisa, dizer é outra.
|
||
Quaresma nem levantou os olhos do papel. Fosse pelas palavras em
|
||
tupi que se encontravam na minuta, fosse pela alusão do funcionário
|
||
Carmo, o certo é que ele insensivelmente foi traduzindo a peça
|
||
oficial para o idioma indígena.
|
||
Ao acabar, deu com a distração, mas logo vieram outros empregados
|
||
com o trabalho que fizeram, para que ele examinasse. Novas
|
||
preocupações afastaram a primeira, esqueceu-se e o ofício em tupi
|
||
seguiu com os companheiros. O diretor não reparou, assinou e o
|
||
tupinambá foi dar ao ministério.
|
||
Não se imagina o rebuliço que tal coisa foi causar lá. Que língua
|
||
era? Consultou-se o doutor Rocha, o homem mais hábil da secretaria,
|
||
a respeito do assunto. O funcionário limpou o pince-nez, agarrou o
|
||
papel, voltou-o de trás para diante, pô-lo de pernas para o ar e
|
||
concluiu que era grego, por causa do “yy”.
|
||
O doutor Rocha tinha na secretaria a fama de sábio, porque era
|
||
bacharel em direito e não dizia coisa alguma.
|
||
- Mas, indagou o chefe, oficialmente as autoridades se podem
|
||
comunicar em línguas estrangeiras? Creio que há um aviso de 84...
|
||
Veja, Senhor doutor Rocha...
|
||
Consultaram-se todos os regulamentos e repertórios de legislação,
|
||
andou-se de mesa em mesa pedindo auxilio à memória de cada um e nada
|
||
se encontrara a respeito. Enfim, o doutor Rocha, após três dias de
|
||
meditação, foi ao chefe e disse com ênfase e segurança:
|
||
- O aviso de 84 trata de ortografia.
|
||
O diretor olhou o subalterno com admiração e mais ficou considerando
|
||
as suas qualidades de empregado zeloso, inteligente e... assíduo.
|
||
Foi informado de que a legislação era omissa no tocante à língua em
|
||
que deviam ser escritos os documentos oficiais; entretanto não
|
||
parecia regular usar uma que não fosse a do país.
|
||
O ministro, tendo em vista esta informação e várias outras
|
||
consultas, devolveu o ofício e censurou o arsenal.
|
||
Que manhã foi essa no arsenal! Os tímpanos soavam furiosamente, os
|
||
contínuos andavam numa dobadoura terrível e a toda hora perguntavam
|
||
pelo secretário que tardava em chegar.
|
||
Censurado! monologava o diretor, Ia-se por água abaixo o seu
|
||
generalato. Viver tantos anos a sonhar com aquelas estrelas e elas
|
||
se escapavam assim, talvez por causa da molecagem de um
|
||
escriturário!
|
||
Ainda se a situação mudasse... Mas qual!
|
||
O secretário chegou, foi ao gabinete do diretor. Inteirado do
|
||
motivo, examinou o ofício e pela letra conheceu que fora Quaresma
|
||
que o escrevera. Mande-o cá, disse o coronel. O major encaminhou-se
|
||
pensando nuns versos tupis que lera de manhã.
|
||
- Então o senhor leva a divertir-se comigo, não é?
|
||
- Como? fez Quaresma espantado.
|
||
- Quem escreveu isso?
|
||
O major nem quis examinar o papel. Viu a letra, lembrou-se da
|
||
distração e confessou com firmeza:
|
||
- Fui eu.
|
||
- Então confessa?
|
||
- Pois não. Mas Vossa Excelência não sabe...
|
||
- Não sabe! que diz?
|
||
O diretor levantou-se da cadeira, com os lábios brancos e a mão
|
||
levantada à altura da cabeça. Tinha sido ofendido três vezes: na sua
|
||
honra individual, na honra de sua casta e na do estabelecimento de
|
||
ensino que freqüentara, a escola da Praia Vermelha, o primeiro
|
||
estabelecimento científico do mundo. Além disso escrevera no
|
||
Pritaneu, a revista da escola, um conto - “A Saudade” - produção
|
||
muito elogiada pelos colegas. Dessa forma, tendo em todos os exames
|
||
plenamente e distinção, uma dupla coroa de sábio e artista
|
||
cingia-lhe a fronte, Tantos títulos valiosos e raros de se
|
||
encontrarem reunidos mesmo em Descartes ou Shakespeare,
|
||
transformavam aquele - não sabe - de um amanuense em ofensa
|
||
profunda, em injúria.
|
||
- Não sabe! Como é que o senhor ousa dizer-me isto! Tem o senhor
|
||
porventura o curso de Benjamim Constant? Sabe o senhor Matemática,
|
||
Astronomia, Física, Química, Sociologia e Moral? Como ousa então?
|
||
Pois o senhor pensa que por ter lido uns romances e saber um
|
||
francesinho aí, pode ombrear-se com quem tirou grau 9 em Cálculo, 10
|
||
em Mecânica, 8 em Astronomia, 10 em Hidráulica, 9 em Descritiva?
|
||
Então?!
|
||
E o homem sacudia furiosamente a mão e olhava ferozmente para
|
||
Quaresma que já se julgava fuzilado.
|
||
- Mas, senhor coronel!...
|
||
- Não tem mas, não tem nada! Considere-se suspenso, até segunda
|
||
ordem.
|
||
Quaresma era doce, bom e modesto. Nunca fora seu propósito duvidar
|
||
da sabedoria do seu diretor. Ele não tinha nenhuma pretensão a sábio
|
||
e pronunciara a frase para começar a desculpa; mas, quando viu
|
||
aquela enxurrada de saber, de títulos, a sobrenadar em águas tão
|
||
furiosas, perdeu o fio do pensamento, a fala, as idéias e nada mais
|
||
soube nem pôde dizer.
|
||
Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel, que não
|
||
deixava de olhá-lo furiosamente, indignadamente, ferozmente, como
|
||
quem foi ferido em todas as fibras do seu ser. Saiu afinal. Chegando
|
||
à sala do trabalho nada disse: pegou no chapéu, na bengala e
|
||
atirou-se pela porta afora, cambaleando como um bêbado. Deu umas
|
||
voltas, foi ao livreiro buscar uns livros. Quando ia tomar o bonde
|
||
encontrou o Ricardo Coração dos Outros.
|
||
- Cedo, hein major?
|
||
- É verdade.
|
||
E calaram-se ficando um diante do outro num mutismo contrafeito.
|
||
Ricardo avançou algumas palavras:
|
||
- O major, hoje, parece que tem uma idéia, um pensamento muito
|
||
forte.
|
||
- Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.
|
||
- É bom pensar, sonhar consola.
|
||
- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava
|
||
abismos entre os homens....
|
||
E os dois separaram-se. O major tomou o bonde e Ricardo desceu
|
||
descuidado a Rua do Ouvidor, com o seu passo acanhado e as calças
|
||
dobradas nas canelas, sobraçando o violão na sua armadura de
|
||
camurça.
|
||
V
|
||
O BIBELOT
|
||
Não era a primeira vez que ela vinha ali. Mais de uma dezena já
|
||
subira aquela larga escada de pedra, com grupos de mármores de
|
||
Lisboa de um lado e do outro, a Caridade e Nossa Senhora da Piedade;
|
||
penetrara por aquele pórtico de colunas dóricas, atravessara o átrio
|
||
ladrilhado, deixando à esquerda e à direita, Pinel e Esquirol,
|
||
meditando sobre o angustioso mistério da loucura; subira outra
|
||
escada encerada cuidadosamente e fora ter com o padrinho lá em cima,
|
||
triste e absorvido no seu sonho e na sua mania. Seu pai a trazia às
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vezes, aos domingos, quando vinha cumprir o piedoso dever de
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amizade, visitando Quaresma. Há quanto tempo estava ele ali? Ela não
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se lembrava ao certo; uns três ou quatro meses, se tanto.
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Só o nome da casa metia medo. O hospício! É assim como uma sepultura
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em vida, um semi-enterramento, enterramento do espírito, da razão
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condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem.
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A saúde não depende dela e há muitos que parecem até adquirir mais
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força de vida, prolongar a existência, quando ela se evola não se
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sabe por que orifício do corpo e para onde.
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Com que terror, uma espécie de pavor de coisa sobrenatural, espanto
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de inimigo invisível e onipresente, não ouvia a gente pobre
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referir-se ao estabelecimento da Praia das Saudades! Antes uma boa
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morte, diziam.
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No primeiro aspecto, não se compreendia bem esse pasmo, esse
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espanto, esse terror do povo por aquela casa imensa, severa e grave,
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meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janelas
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gradeadas, a se estender por uns centos de metros, em face do mar
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imenso e verde, lá na entrada da baía, na Praia das Saudades.
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Entrava-se, viam-se uns homens calmos, pensativos, meditabundos,
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como monges em recolhimento e prece.
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De resto, com aquela entrada silenciosa, clara e respeitável,
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perdiase logo a idéia popular da loucura; o escarcéu, os trejeitos,
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as fúrias, o entrechoque de tolices ditas aqui e ali.
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Não havia nada disso; era uma calma, um silêncio, uma ordem
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perfeitamente naturais. No fim, porém, quando se examinavam bem, na
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sala das visitas, aquelas faces transtornadas, aqueles ares
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aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheados e
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mergulhados em um sonho íntimo sem fim, e via-se também a excitação
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de uns, mais viva em face à atonia de outros, é que se sentia bem o
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horror da loucura, o angustioso mistério que ela encerra, feito não
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sei de que inexplicável fuga do espírito daquilo que se supõe o
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real, para se apossar e viver das aparências das coisas ou de outras
|
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aparências das mesmas.
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Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa
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própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo
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está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos
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toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão
|
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inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco
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traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi
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antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após.
|
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E essa mudança não começa, não se sente quando começa e quase nunca
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acaba. Com o seu padrinho, como fora? A princípio, aquele
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requerimento... Mas que era aquilo? Um capricho, uma fantasia, coisa
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sem importância, uma idéia de velho sem conseqüência. Depois, aquele
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ofício? Não tinha importância, uma simples distração, coisa que
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acontece a cada passo... E enfim? A loucura declarada, a torva e
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irônica loucura que nos tira a nossa alma e põe uma outra, que nos
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rebaixa... Enfim, a loucura declarada, a exaltação do eu, a mania de
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não sair, de se dizer perseguido, de imaginar como inimigos, os
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amigos, os melhores. Como fora doloroso aquilo! A primeira fase do
|
||
seu delírio, aquela agitação desordenada, aquele falar sem nexo, sem
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acordo com que se realizava fora dele e com os atos passados, um
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falar que não se sabia donde vinha, donde saia, de que ponto do seu
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ser tomava nascimento! E o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem
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viu um cataclismo, que o fazia tremer todo, desde os pés à cabeça e
|
||
enchia-o de indiferença para tudo mais que não fosse o seu próprio
|
||
delírio.
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||
A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam à
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||
matroca. Para ele, nada disso valia, nada disso tinha existência e
|
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importância. Eram sombras, aparências; o real eram os inimigos, os
|
||
inimigos terríveis cujos nomes o seu delírio não chegava a criar. A
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||
velha irmã, atarantada, atordoada, sem direção, sem saber que
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||
alvitre tomar. Educada em casa sempre com um homem ao lado, o pai,
|
||
depois o irmão, ela não sabia lidar com o mundo, com negócios, com
|
||
as autoridades e pessoas influentes. Ao mesmo tempo, na sua
|
||
inexperiência e ternura de irmã, oscilava entre a crença de que
|
||
aquilo fosse verdade e a suspeita de que fosse loucura pura e simples.
|
||
Se não fosse seu pai (e Olga amava mais por isso o seu rude pai) que
|
||
se interessava, chamando a si os interesses da família e evitando a
|
||
demissão de que estava ameaçado, transformando-a em aposentadoria,
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||
que seria dele? Como é fácil na vida tudo ruir! Aquele homem
|
||
pautado, regrado, honesto, com emprego seguro, tinha uma aparência
|
||
inabalável; entretanto bastou um grãozinho de sandice...
|
||
Estava há uns meses no hospício, o seu padrinho, e a irmã não o
|
||
podia visitar. Era tal o seu abalo de nervos, era tal a emoção ao
|
||
vê-lo ali naquela meia-prisão, decaído dele mesmo que um ataque se
|
||
seguia e não podia ser evitado.
|
||
Vinham ela e o pai, às vezes o pai só, algumas vezes Ricardo, e eram
|
||
só os três a visitá-lo.
|
||
Aquele domingo estava particularmente lindo, principalmente em
|
||
Botafogo, nas proximidades do mar e das montanhas altas que se
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||
recortavam num céu de seda. O ar era macio e docemente o sol
|
||
faiscava nas calçadas.
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||
O pai vinha lendo os jornais e ela, pensando, de quando em quando,
|
||
folheando as revistas ilustradas que trazia para alegrar e distrair
|
||
o padrinho.
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||
Ele estava como pensionista; mas, embora assim, no começo, ela teve
|
||
um certo pudor em se misturar com os visitantes.
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||
Parecia-lhe que a sua fortuna a punha acima de presenciar misérias;
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recalcou porém, dentro de si esse pensamento egoísta, o seu orgulho
|
||
de classe, e agora entrava naturalmente, pondo em mais destaque a
|
||
sua elegância natural. Amava esses sacrifícios, essas abnegações,
|
||
tinha o sentimento da grandeza deles, e ficou contente consigo
|
||
mesma.
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||
No bonde vinham outros visitantes e todos não tardaram em saltar no
|
||
portão do manicômio. Como em todas as portas dos nossos infernos
|
||
sociais, havia de toda gente, de várias condições, nascimentos e
|
||
fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a
|
||
moléstia passam também a sua rasoura pelas distinções que inventamos.
|
||
Os bem vestidos e os mal vestidos, os elegantes e os pobres, os
|
||
feios e os bonitos, os inteligentes e os néscios, entravam com
|
||
respeito, com concentração, com uma ponta de pavor nos olhos como se
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||
penetrassem noutro mundo.
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||
Chegavam aos parentes e os embrulhos se desfaziam: eram guloseimas,
|
||
fumo, meias, chinelas, às vezes livros e jornais, Dos doentes uns
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||
conversavam com os parentes; outros mantinham-se calados, num
|
||
mutismo feroz e inexplicável; outros indiferentes; e era tal a
|
||
variedade de aspectos dessas recepções que se chegava a esquecer o
|
||
império da doença sobre todos aqueles infelizes, tanto ela variava
|
||
neste ou naquele, para se pensar em caprichos pessoais, em ditames
|
||
das vontades livres de cada um.
|
||
E ela pensava como esta nossa vida é variada e diversa, como ela é
|
||
mais rica de aspectos tristes que de alegres, e como na variedade da
|
||
vida a tristeza pode mais variar que a alegria e como que dá o
|
||
próprio movimento da vida.
|
||
Verificando isso, quase teve satisfação, pois a sua natureza
|
||
inteligente e curiosa se comprazia nas mais simples descobertas que
|
||
seu espírito fazia.
|
||
Quaresma estava melhor. A exaltação passara e o delírio parecia
|
||
querer desaparecer completamente. Chocando-se com aquele meio, houve
|
||
logo nele uma reação salutar e necessária. Estava doido, pois se o
|
||
punham ali...
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||
Quando veio a ter com o compadre e a afilhada até trazia um sorriso
|
||
de satisfação por baixo do bigode já grisalho. Tinha emagrecido um
|
||
pouco, os cabelos pretos estavam um pouco brancos, mas o aspecto
|
||
geral era o mesmo. Não perdera totalmente a mansuetude e a ternura
|
||
no falar, mas quando a mania lhe tomava ficava um tanto seco e
|
||
desconfiado. Ao vê-los disse amavelmente:
|
||
- Então vieram sempre... Estava à espera...
|
||
Cumprimentaram-se e ele deu mesmo um largo abraço na afilhada.
|
||
- Como está Adelaide?
|
||
- Bem. Mandou lembranças e não veio porque... adiantou Coleoni.
|
||
- Coitada! disse ele, e pendeu a cabeça como se quisesse afastar
|
||
uma recordação triste; em seguida, perguntou:
|
||
- E o Ricardo?
|
||
A afilhada apressou-se em responder ao padrinho, com alvoroço e
|
||
alegria. Via-o já escapo à semi-sepultura de insânia.
|
||
- Está bom, padrinho. Procurou papai há dias e disse que a sua
|
||
aposentadoria já está quase acabada.
|
||
Coleoni tinha-se sentado. Quaresma também e a moça estava de pé,
|
||
para melhor olhar o padrinho com os seus olhos muito luminosos e
|
||
firmes no encarar. Guardas, internos e médicos passavam pelas portas
|
||
com a indiferença profissional. Os visitantes não se olhavam,
|
||
pareciam que não queriam conhecer-se na rua. Lá fora, era o dia
|
||
lindo, os ares macios, o mar infinito e melancólico, as montanhas a
|
||
se recortar num céu de seda - a beleza da natureza imponente e
|
||
indecifrável, Coleoni, embora mais assíduo nas visitas, notava as
|
||
melhoras do compadre com satisfação que errava na sua fisionomia,
|
||
num ligeiro sorriso. Num dado momento aventurou:
|
||
- O major já está muito melhor; quer sair?
|
||
Quaresma não respondeu logo; pensou um pouco e respondeu firme e
|
||
vagarosamente:
|
||
- É melhor esperar um pouco. Vou melhor... Sinto incomodar-te tanto
|
||
mas vocês que têm sido tão bons, hão de levar tudo isso para conta
|
||
da própria bondade. Quem tem inimigos deve ter também bons amigos...
|
||
O pai e a filha entreolharam-se; o major levantou a cabeça e parecia
|
||
que as lágrimas queriam rebentar. A moça interveio de pronto:
|
||
- Sabe, padrinho, vou casar-me.
|
||
- É verdade, confirmou o pai. A Olga vai casar-se e nós vínhamos
|
||
preveni-lo.
|
||
- Quem é teu noivo? perguntou Quaresma.
|
||
- É um rapaz...
|
||
- Decerto, interrompeu o padrinho sorrindo.
|
||
E os dois acompanharam-no com familiaridade e contentamento. Era um
|
||
bom sinal.
|
||
- É o Senhor Armando Borges, doutorando. Está satisfeito, padrinho?
|
||
fez Olga gentilmente.
|
||
- Então é para depois do fim do ano.
|
||
- Esperamos que seja por aí, disse o italiano.
|
||
- Gostas muito dele? indagou o padrinho.
|
||
Ela não sabia responder aquela pergunta. Queria sentir que gostava,
|
||
mas estava que não. E por que casava? Não sabia... Um impulso do seu
|
||
meio, uma coisa que não vinha dela - não sabia... Gostava de outro?
|
||
Também não. Todos os rapazes que ela conhecia não possuíam relevo
|
||
que a ferisse, não tinham o “quê”, ainda indeterminado na sua emoção
|
||
e na sua inteligência, que a fascinasse ou subjugasse. Ela não sabia
|
||
bem o que era, não chegava a extremar na percepção das suas
|
||
inclinações a qualidade que ela queria ver dominante no homem. Era o
|
||
heróico, era o fora do comum, era a força de projeção para as
|
||
grandes coisas; mas nessa confusão mental dos nossos primeiros anos,
|
||
quando as idéias e os desejos se entrelaçam e se embaralham, Olga
|
||
não podia colher e registrar esse anelo, esse modo de se lhe
|
||
representar e de amar o indivíduo masculino.
|
||
E tinha razão em se casar sem obedecer à sua concepção. É tão
|
||
difícil ver nitidamente num homem, de vinte a trinta anos, o que ela
|
||
sonhara que era bem possível tornasse a nuvem por Juno... Casava por
|
||
hábito de sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo
|
||
de sua vida e aguçar a sensibilidade. Lembrou-se disso tudo
|
||
rapidamente e respondeu sem convicção ao padrinho:
|
||
- Gosto.
|
||
A visita não se demorou muito mais. Era conveniente que fosse
|
||
rápida, não convinha fatigar a atenção do convalescente. Os dois
|
||
saíram sem esconder que iam esperançados e satisfeitos.
|
||
Na porta já havia alguns visitantes à espera do bonde. Como não
|
||
estivesse o veículo no ponto, foram indo ao longo da fachada do
|
||
manicômio até lá. Em meio do caminho, encontraram, encostada ao
|
||
gradil, uma velha preta a chorar. Coleoni, sempre bom, chegou-se a ela:
|
||
- Que tem, minha velha?
|
||
A pobre mulher deitou sobre ele um demorado olhar, úmido e doce,
|
||
cheio de uma irremediável tristeza, e respondeu:
|
||
- Ah! meu sinhô!... É triste... Um filho, tão bom, coitado!
|
||
E continuou a chorar. Coleoni começou a comover-se; a filha olhou-a
|
||
com interesse e perguntou no fim de um instante:
|
||
- Morreu?
|
||
- Antes fosse, sinhazinha.
|
||
E por entre lágrimas e soluços contou que o filho não a conhecia
|
||
mais, não lhe respondia às perguntas; era como estranho, Enxugou as
|
||
lágrimas e concluiu:
|
||
- Foi “coisa-feita”.
|
||
Os dois afastaram-se tristes, levando n’alma um pouco daquela
|
||
humilde dor.
|
||
O dia estava fresco e a viração, que começava a soprar, enrugava a
|
||
face do mar em pequenas ondas brancas. O Pão de Açúcar erguia-se
|
||
negro, hirto, solene, das ondas espumejantes e como que punha uma
|
||
sombra no dia muito claro.
|
||
No Instituto dos Cegos, tocavam violino: e a voz plangente e
|
||
demorada do instrumento parecia sair daquelas coisas todas, da sua
|
||
tristeza e da sua solenidade,
|
||
O bonde tardou um pouco. Chegou. Tomaram. Desceram no Largo da
|
||
Carioca. É bom ver-se a cidade nos dias de descanso, com as suas
|
||
lojas fechadas, as suas estreitas ruas desertas, onde os passos
|
||
ressoam como em claustros silenciosos. A cidade é como um esqueleto,
|
||
faltam-lhe as carnes, que são a agitação, o movimento de carros, de
|
||
carroças e gente. Na porta de uma loja ou outra, os filhos do
|
||
negociante brincam em velocípedes, atiram bolas e ainda mais se
|
||
sente a diferença da cidade do dia anterior.
|
||
Não havia ainda o hábito de procurar os arrabaldes pitorescos e só
|
||
encontravam, por vezes, casais que iam apressadamente a visitas,
|
||
como eles agora. O Largo de São Francisco estava silencioso e a
|
||
estátua, no centro daquele pequeno jardim que desapareceu, parecia
|
||
um simples enfeite. Os bondes chegavam preguiçosamente ao largo com
|
||
poucos passageiros. Coleoni e sua filha tomaram um que os levasse à
|
||
casa de Quaresma. Lá foram. A tarde se aproximava e as toilettes
|
||
domingueiras já apareciam nas janelas. Pretos com roupas claras e
|
||
grandes charutos ou cigarros; grupos de caixeiros com flores
|
||
estardalhantes; meninas em cassas bem engomadas: cartolas
|
||
antediluvianas ao lado de vestidos pesados de cetim negro,
|
||
envergados em corpos fartos de matronas sedentárias; e o domingo
|
||
aparecia assim decorado com a simplicidade dos humildes, com a
|
||
riqueza dos pobres e a ostentação dos tolos.
|
||
Dona Adelaide não estava só. Ricardo viera visitá-la e conversavam.
|
||
Quando o compadre de seu irmão bateu no portão, ele contava à velha
|
||
senhora o seu último triunfo:
|
||
- Não sei como há de ser, Dona Adelaide. Eu não guardo as minhas
|
||
músicas, não escrevo - é um inferno!
|
||
O caso era de pôr um autor em maus lençóis. O Senhor Paysandón, de
|
||
Córdoba (República Argentina), autor muito conhecido na mesma
|
||
cidade, lhe tinha escrito, pedindo exemplares de suas músicas e
|
||
canções. Ricardo estava atrapalhado, Tinha os versos escritos, mas a
|
||
música não. É verdade que as sabia de cor, porém, escrevê-las de uma
|
||
hora para outra era trabalho acima de sua força.
|
||
- É o diabo! continuou ele. Não é por mim; a questão é que se perde
|
||
uma ocasião de fazer o Brasil conhecido no estrangeiro.
|
||
A velha irmã de Quaresma não tinha grande interesse pelo violão. A
|
||
sua educação, que se fizera vendo semelhante instrumento entregue a
|
||
escravos ou gente parecida, não podia admitir que ele preocupasse a
|
||
atenção de pessoas de certa ordem, Delicada, entretanto, suportava a
|
||
mania de Ricardo, mesmo porque já começava a ter uma ponta de estima
|
||
pelo famoso trovador dos suburbanos. Nasceu-lhe essa estima pela
|
||
dedicação com que ele se houve no seu drama familiar. Os pequenos
|
||
serviços e trabalhos, os passos para ali e para aqui, ficaram a
|
||
cargo de Ricardo, que os desempenhara com boa vontade e diligência.
|
||
Atualmente era ele o encarregado de tratar da aposentadoria do seu
|
||
antigo discípulo. É um trabalho árduo, esse de liquidar uma
|
||
aposentadoria, como se diz na gíria burocrática. Aposentado o
|
||
sujeito, solenemente por um decreto, a coisa corre uma dezena de
|
||
repartições e funcionários para ser ultimada. Nada há mais grave do
|
||
que a gravidade com que o empregado nos diz; ainda estou fazendo o
|
||
cálculo; e a coisa demora um mês, mais até, como se se tratasse de
|
||
mecânica celeste.
|
||
Coleoni era o procurador do major, mas não sendo entendido em coisas
|
||
oficiais, entregou ao Coração dos Outros aquela parte do seu
|
||
mandato.
|
||
Graças à popularidade de Ricardo, e da sua lhaneza, vencera a
|
||
resistência da máquina burocrática e a liquidação estava anunciada para
|
||
|
||
Foi isso que ele anunciou a Coleoni, quando este entrou seguido da
|
||
filha. Pediram, tanto ele como Dona Adelaide, notícias do amigo e do
|
||
irmão.
|
||
A irmã nunca entendera direito o irmão, com a crise não o ficou
|
||
compreendendo melhor; mas o sentira profundamente com o sentimento
|
||
simples de irmã e desejava ardentemente a sua cura.
|
||
Ricardo Coração dos Outros gostava do major, encontrara nele certo
|
||
apoio moral e intelectual de que precisava. Os outros gostavam de
|
||
ouvir o seu canto, apreciavam como simples diletantes; mas o major
|
||
era o único que ia ao fundo da sua tentativa e compreendia o alcance
|
||
patriótico de sua obra.
|
||
De resto, ele agora sofria particularmente - sofria na sua glória,
|
||
produto de um lento e seguido trabalho de anos. É que aparecera um
|
||
crioulo a cantar modinhas e cujo nome começava a tomar força e já
|
||
era citado ao lado do seu.
|
||
Aborrecia-se com o rival, por dois fatos: primeiro: pelo sujeito ser
|
||
preto; e segundo: por causa das suas teorias.
|
||
Não é que ele tivesse ojeriza particular aos pretos. O que ele via
|
||
no fato de haver um preto famoso tocar violão, era que tal coisa ia
|
||
diminuir ainda mais o prestígio do instrumento. Se o seu rival
|
||
tocasse piano e por isso ficasse célebre, não havia mal algum; ao
|
||
contrário: o talento do rapaz levantava a sua pessoa, por intermédio
|
||
do instrumento considerado; mas, tocando violão, era o inverso: o
|
||
preconceito que lhe cercava a pessoa, desmoralizava o misterioso
|
||
violão que ele tanto estimava. E além disso com aquelas teorias!
|
||
Ora! Querer que a modinha diga alguma coisa e tenha versos certos!
|
||
Que tolice!
|
||
E Ricardo levava a pensar nesse rival inesperado que se punha assim
|
||
diante dele como um obstáculo imprevisto na subida maravilhosa para
|
||
a sua glória. Precisava afastá-lo, esmagá-lo, mostrar a sua
|
||
superioridade indiscutível; mas como?
|
||
A réclame já não bastava; o rival a empregava também. Se ele tivesse
|
||
um homem notável, um grande literato, que escrevesse um artigo sobre
|
||
ele e a sua obra, a vitória estava certa. Era difícil encontrar.
|
||
Esses nossos literatos eram tão tolos e viviam tão absorvidos em
|
||
coisas francesas... Pensou num jornal, O Violão, em que ele
|
||
desafiasse o rival e o esmagasse numa polêmica.
|
||
Era isso que precisava obter e a esperança estava em Quaresma,
|
||
atualmente recolhido ao hospício, mas felizmente em via de cura, A
|
||
sua alegria foi justamente quando soube que o amigo estava melhor.
|
||
- Não pude ir hoje, disse ele, mas irei domingo. Está mais gordo?
|
||
- Pouca coisa, disse a moça.
|
||
- Conversou bem, acrescentou Coleoni. Até ficou contente quando
|
||
soube que Olga ia casar-se.
|
||
- Vai casar-se, Dona Olga? Parabéns.
|
||
- Obrigada, fez ela.
|
||
- Quando é, Olga? perguntou Dona Adelaide.
|
||
- Lá para o fim do ano... Tem tempo...
|
||
E logo choveram perguntas sobre o noivo e afloraram as considerações
|
||
sobre o casamento.
|
||
E ela se sentia vexada; julgava, tanto as perguntas como as
|
||
considerações, impudentes e irritantes; queria fugir à conversa, mas
|
||
voltavam ao mesmo assunto, não só Ricardo, mas a velha Adelaide,
|
||
mais loquaz e curiosa que comumente. Esse suplício que se repetia em
|
||
todas as visitas, quase a fazia arrepender-se de ter aceitado o
|
||
pedido. Por fim, achou um subterfúgio, perguntando:
|
||
- Como vai o general?
|
||
- Não o tenho visto, mas a filha sempre vem aqui. Ele deve andar
|
||
bem, a Ismênia é que anda triste, desolada - coitadinha!
|
||
Dona Adelaide contou então o drama que agitava a pequenina alma da
|
||
filha do general. Cavalcânti, aquele Jacó de cinco anos, embarcara
|
||
para o interior, há três ou quatro meses, e não mandara nem uma
|
||
carta nem um cartão. A menina tinha aquilo como um rompimento; e
|
||
ela, tão incapaz de um sentimento mais profundo, de uma aplicação
|
||
mais séria de energia mental e física, sentia-o muito, como coisa
|
||
irremediável que absorvia toda a sua atenção.
|
||
Para Ismênia, era como se todos os rapazes casadoiros tivessem
|
||
deixado de existir. Arranjar outro era problema insolúvel, era
|
||
trabalho acima de suas forças. Coisa difícil! Namorar, escrever
|
||
cartinhas, fazer acenos, dançar, ir a passeios - ela não podia mais
|
||
com isso. Decididamente, estava condenada a não se casar, a ser tia,
|
||
a suportar durante toda a existência esse estado de solteira que a
|
||
apavorava. Quase não se lembrava das feições do noivo, dos seus
|
||
olhos esgazeados, do seu nariz duro e fortemente ósseo; independente
|
||
da memória dele, vinha-lhe sempre à consciência, quando, de manhã, o
|
||
estafeta não lhe entregava carta, essa outra idéia: não casar. Era
|
||
um castigo... A Quinota ia casar-se, o Genelício já estava tratando
|
||
dos papéis; e ela que esperara tanto, e fora a primeira a noivar-se,
|
||
ia ficar maldita, rebaixada diante de todas. Parecia até que ambos
|
||
estavam contentes com aquela fuga inexplicável de Cavalcânti. Como
|
||
eles se riam durante o carnaval! Como eles atiraram aos seus olhos
|
||
aquela viuvez prematura, durante os folguedos carnavalescos! Punham
|
||
tanta fúria no jogo de confetes e bisnagas, de modo a deixar bem
|
||
claro a felicidade de ambos, aquela marcha gloriosa e invejada para
|
||
o casamento, em face do seu abandono.
|
||
Ela disfarçava bem a impressão da alegria deles que lhe parecia
|
||
indecente e hostil; mas o escárnio da irmã que lhe dizia
|
||
constantemente: “Brinca, Ismênia! Ele está longe, vai aproveitando”
|
||
- metia-lhe raiva, a raiva terrível de gente fraca, que corrói
|
||
interiormente, por não poder arrebentar de qualquer forma.
|
||
Então, para espantar os maus pensamentos, ela se punha a olhar o
|
||
aspecto pueril da rua, marchetada de papeluchos multicores, e as
|
||
serpentinas irisadas pendentes nas sacadas, mas o que fazia bem à
|
||
sua natureza pobre, comprimida, eram os cordões, aquele ruído de
|
||
atabaques, e adufes, de tambores e pratos. Mergulhando nessa
|
||
barulheira, o seu pensamento repousava e como que a idéia que a
|
||
perseguia desde tanto tempo ficava impedida de lhe entrar na cabeça.
|
||
De resto, aqueles vestuários extravagantes de índios, aqueles
|
||
adornos de uma mitologia francamente selvagem, jacarés, cobras,
|
||
jabutis, vivos, bem vivos, traziam à pobreza de sua imaginação
|
||
imagens risonhas de rios claros, florestas imensas, lugares de
|
||
sossego e pureza que a reconfortavam.
|
||
Também aquelas cantigas gritadas, berradas, num ritmo duro e de uma
|
||
grande indigência melódica, vinham como reprimir a mágoa que ia
|
||
nela, abafada, comprimida, contida, que pedia uma explosão de
|
||
gritos, mas para o que não lhe sobrava força bastante e suficiente.
|
||
O noivo partira um mês antes do carnaval e depois do grande festejo
|
||
carioca a sua tortura foi maior. Sem hábito de leitura e de
|
||
conversa, sem atividade doméstica qualquer, ela passava os dias
|
||
deitada, sentada, a girar em torno de um mesmo pensamento: não
|
||
casar. Era-lhe doce chorar.
|
||
Nas horas da entrega da correspondência, tinha ainda uma alegre
|
||
esperança. Talvez? Mas a carta não vinha, e, voltava ao seu
|
||
pensamento: não casar.
|
||
Dona Adelaide, acabando de contar o desastre da triste Ismênia,
|
||
comentou:
|
||
- Merecia um castigo isso, não acham?
|
||
Coleoni interveio com brandura e boa vontade:
|
||
- Não há razão para desesperar. Há muita gente que tem preguiça de
|
||
escrever...
|
||
- Qual! fez Dona Adelaide. Há três meses, Senhor Vicente!
|
||
- Não volta, disse Ricardo sentenciosamente.
|
||
- E ela ainda o espera, Dona Adelaide? perguntou Olga.
|
||
- Não sei, minha filha. Ninguém entende essa moça. Fala pouco, se
|
||
fala diz meias palavras... É mesmo uma natureza que parece sem
|
||
sangue nem nervos. Sente-se a sua tristeza, mas não fala.
|
||
- É orgulho? perguntou ainda Olga.
|
||
- Não, não... Se fosse orgulho, ela não se referia de vez em quando
|
||
ao noivo. É antes moleza, preguiça... Parece que ela tem medo de
|
||
falar para que as coisas não venham a acontecer.
|
||
- E os pais que dizem a isso? indagou Coleoni.
|
||
- Não sei bem. Mas pelo que pude perceber, o incômodo do general
|
||
não é grande e Dona Maricota julga que ela deve arranjar “outro”.
|
||
- Era o melhor, disse Ricardo.
|
||
- Eu creio que ela não tem mais prática, disse sorrindo Dona
|
||
Adelaide. Levou tanto tempo noiva...
|
||
E a conversa já tinha virado para outros assuntos, quando a Ismênia
|
||
veio fazer a sua visita diária à irmã de Quaresma.
|
||
Cumprimentou todos e todos sentiram que ela penava. O sofrimento
|
||
dava-lhe mais atividade à fisionomia.
|
||
As pálpebras estavam roxas e até os seus pequenos olhos pardos
|
||
tinham mais brilho e expansão. Indagou da saúde de Quaresma e depois
|
||
calaram-se um instante. Por fim Dona Adelaide lhe perguntou:
|
||
- Recebeste carta, Ismênia?
|
||
- Ainda não, respondeu ela, com grande economia de voz.
|
||
Ricardo moveu-se na cadeira. Batendo com o braço num dunkerque, veio
|
||
atirar ao chão uma figurinha de biscuit, que se esfacelou em
|
||
inúmeros fragmentos, quase sem ruído.
|
||
SEGUNDA PARTE
|
||
I
|
||
NO “SOSSEGO”
|
||
Não era feio o lugar, mas não era belo. Tinha, entretanto, o aspecto
|
||
tranqüilo e satisfeito de quem se julga bem com a sua sorte.
|
||
A casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau, formando a
|
||
subida para a maior altura de uma pequena colina que lhe corria nos
|
||
fundos. Em frente, por entre os bambus da cerca, olhava uma planície
|
||
a morrer nas montanhas que se viam ao longe; um regato de águas
|
||
paradas e sujas cortava-a paralelamente à testada da casa; mais
|
||
adiante, o trem passava vincando a planície com a fita clara de sua
|
||
linha capinada; um carreiro, com casas, de um e de outro lado, saia
|
||
da esquerda e ia ter à estação, atravessando o regato e serpeando
|
||
pelo plano. A habitação de Quaresma tinha assim um amplo horizonte,
|
||
olhando para o levante, a “noruega”, e era também risonha e graciosa
|
||
nos seus muros caiados. Edificada com a desoladora indigência
|
||
arquitetônica das nossas casas de campo, possuía, porém, vastas
|
||
salas, amplos quartos, todos com janelas, e uma varanda com uma
|
||
colunata heterodoxa. Além desta principal, o sítio do “Sossego”,
|
||
como se chamava, tinha outras construções: a velha casa da farinha,
|
||
que ainda tinha o forno intacto e a roda desmontada, e uma
|
||
estrebaria coberta de sapê.
|
||
Não havia três meses que viera habitar aquela casa, naquele ermo
|
||
lugar, a duas horas do Rio, por estrada de ferro, após ter passado
|
||
seis meses no hospício da Praia das Saudades. Saíra curado? Quem
|
||
sabe lá? Parecia; não delirava e os seus gestos e propósitos eram de
|
||
homem comum embora, sob tal aparência, se pudesse sempre crer que
|
||
não se lhe despedira de todo, já não se dirá a loucura, mas o sonho
|
||
que cevara durante tantos anos. Foram mais seis meses de repouso e
|
||
útil seqüestração que mesmo de uso de uma terapêutica psiquiátrica.
|
||
Quaresma viveu lá, no manicômio, resignadamente, conversando com os
|
||
seus companheiros, onde via ricos que se diziam pobres, pobres que
|
||
se queriam ricos, sábios a maldizer da sabedoria, ignorantes a se
|
||
proclamarem sábios: mas deles todos, daquele que mais se admirou,
|
||
foi de um velho e plácido negociante da Rua dos Pescadores que se
|
||
supunha Átila. Eu, dizia o pacato velho, sou Átila, sabe? Sou Átila.
|
||
Tinha fracas notícias da personagem, sabia o nome e nada mais, Sou
|
||
Átila, matei muita gente - e era só.
|
||
Saiu o major mais triste ainda do que vivera toda a vida. De todas
|
||
as coisas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a
|
||
mais depressora e pungente.
|
||
Aquela continuação da nossa vida tal e qual, com um desarranjo
|
||
imperceptível, mas profundo e quase sempre insondável, que a
|
||
inutiliza inteiramente, faz pensar em alguma coisa mais forte que
|
||
nós, que nos guia, que nos impele e em cujas mãos somos simples
|
||
joguetes. Em vários tempos e lugares, a loucura foi considerada
|
||
sagrada, e deve haver razão nisso no sentimento que se apodera de
|
||
nós quando, ao vermos um louco desarrazoar, pensamos logo que já não
|
||
é ele quem fala, é alguém, é alguém que vê por ele, interpreta as
|
||
coisas por ele, está atrás dele, invisível!...
|
||
Quaresma saiu envolvido, penetrado da tristeza do manicômio. Voltou
|
||
à sua casa, mas a vista das suas coisas familiares não lhe tirou a
|
||
forte impressão de que vinha impregnado. Embora nunca tivesse sido
|
||
alegre, a sua fisionomia apresentava mais desgosto que antes, muito
|
||
abatimento moral, e foi para levantar o ânimo que se recolheu àquela
|
||
risonha casa de roça, onde se dedicava a modestas culturas.
|
||
Não fora ele, porém, quem se lembrara; fora a afilhada que lhe
|
||
trouxe à idéia aquele doce acabar para a sua vida. Vendo-o naquele
|
||
estado de abatimento, triste e taciturno, sem coragem de sair,
|
||
enclausurado em sua casa de São Cristóvão, Olga dirigiu-se um dia ao
|
||
padrinho meiga e filialmente:
|
||
- O padrinho por que não compra um sítio? Seria tão bom fazer as
|
||
suas culturas, ter o seu pomar, a sua horta... não acha?
|
||
Tão taciturno que ele estivesse, não pôde deixar de modificar
|
||
imediatamente a sua fisionomia à lembrança da moça. Era um velho
|
||
desejo seu, esse de tirar da terra o alimento, a alegria e a
|
||
fortuna; e foi lembrando dos seus antigos projetos que respondeu à
|
||
a:
|
||
- É verdade, minha filha. Que magnífica idéia, tens tu! Há por ai
|
||
tantas terras férteis sem emprego... A nossa terra tem os terrenos
|
||
mais férteis do mundo... O milho pode dar até duas colheitas e
|
||
quatrocentos por um...
|
||
A moça esteve quase arrependida da sua lembrança. Pareceu-lhe que ia
|
||
atear no espírito do padrinho manias já extintas.
|
||
- Em toda a parte - não acha, meu padrinho? - há terras férteis.
|
||
- Mas como no Brasil, apressou-se ele em dizer, há poucos países
|
||
que as tenham. Vou fazer o que tu dizes: plantar, criar, cultivar o
|
||
milho, o feijão, a batata inglesa... Tu irás ver as minhas culturas,
|
||
a minha horta, o meu pomar - então é que te convencerás como são
|
||
fecundas as nossas terras!
|
||
A idéia caiu-lhe na cabeça e germinou logo. O terreno estava
|
||
amanhado e só esperava uma boa semente. Não lhe voltou a alegria que
|
||
jamais teve, mas a taciturnidade foi-se com o abatimento moral, e
|
||
veio-lhe a atividade mental cerebrina, por assim dizer, de outros
|
||
tempos. Indagou dos preços correntes das frutas, dos legumes, das
|
||
batatas, dos aipins; calculou que cinqüenta laranjeiras, trinta
|
||
abacateiros, oitenta pessegueiros, outras árvores frutíferas, além
|
||
dos abacaxis (que mina!), das abóboras e outros produtos menos
|
||
importantes, podiam dar o rendimento anual de mais de quatro contos,
|
||
tirando as despesas. Seria ocioso trazer para aqui os detalhes dos
|
||
seus cálculos, baseados em tudo no que vem estabelecido nos boletins
|
||
da Associação de Agricultura Nacional. Levou em linha de conta a
|
||
produção média de cada pé de fruteira, de hectare cultivado, e
|
||
também os salários, as perdas inevitáveis; e, quanto aos preços, ele
|
||
foi em pessoa ao mercado buscá-los.
|
||
Planejou a sua vida agrícola com a exatidão e meticulosidade que
|
||
punha em todos os seus projetos. Encarou-a por todas as faces, pesou
|
||
as vantagens e ônus; e muito contente ficou em vê-la monetariamente
|
||
atraente, não por ambição de fazer fortuna, mas por haver nisso mais
|
||
uma demonstração das excelências do Brasil.
|
||
E foi obedecendo a essa ordem de idéias que comprou aquele sítio,
|
||
cujo nome - “Sossego” - cabia tão bem à nova vida que adotara,
|
||
após a tempestade que o sacudira durante quase um ano. Não ficava
|
||
longe do Rio e ele o escolhera assim mesmo maltratado, abandonado,
|
||
para melhor demonstrar a força e o poder da tenacidade, do carinho,
|
||
no trabalho agrícola. Esperava grandes colheitas de frutas, de
|
||
grãos, de legumes; e do seu exemplo, nasceriam mil outros
|
||
cultivadores, estando em breve a grande capital cercada de um
|
||
verdadeiro celeiro, virente e abundante a dispensar os argentinos e
|
||
europeus.
|
||
Com que alegria ele foi para lá! Quase não teve saudades de sua
|
||
velha casa de São Januário, agora propriedade de outras mãos, talvez
|
||
destinada ao mercenário mister de lar de aluguel... Não sentiu que
|
||
aquela vasta sala, abrigo calmo dos seus livros durante tantos anos,
|
||
fosse servir para salão de baile fútil, fosse testemunhar talvez
|
||
rixas de casais desentendidos, ódios de família - ela tão boa, tão
|
||
doce, tão simpática, com o seu teto alto e as suas paredes lisas, em
|
||
que se tinham incrustado os desejos de sua alma e toda ela penetrada
|
||
da exalação dos seus sonhos!...
|
||
Ele foi contente. Como era tão simples viver na nossa terra! Quatro
|
||
contos de réis por ano, tirados da terra, facilmente, docemente,
|
||
alegremente! Oh! terra abençoada! Como é que toda a gente queria ser
|
||
empregado público, apodrecer numa banca, sofrer na sua independência
|
||
e no seu orgulho? Como é que se preferia viver em casas apertadas,
|
||
sem ar, sem luz, respirar um ambiente epidêmico, sustentar-se de
|
||
maus alimentos, quando se podia tão facilmente obter uma vida feliz,
|
||
farta, livre, alegre e saudável?”
|
||
E era agora que ele chegava a essa conclusão, depois de ter sofrido
|
||
a miséria da cidade e o emasculamento da repartição pública, durante
|
||
tanto tempo! Chegara tarde, mas não a ponto de que não pudesse antes
|
||
da morte travar conhecimento com a doce vida campestre e a
|
||
feracidade das terras brasileiras. Então pensou que foram vãos
|
||
aqueles seus desejos de reformas capitais nas instituições e
|
||
costumes: o que era principal à grandeza da pátria estremecida, era
|
||
uma forte base agrícola, um culto pelo seu solo ubérrimo, para
|
||
alicerçar fortemente todos os outros destinos que ela linha de
|
||
preencher,
|
||
Demais, com terras tão férteis, climas variados, a permitir uma
|
||
agricultura fácil e rendosa, este caminho estava naturalmente indicado.
|
||
E ele viu então diante dos seus olhos as laranjeiras, em flor,
|
||
olentes, muito brancas, a se enfileirar pelas encostas das colinas,
|
||
como teorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a
|
||
sopesar com esforço os grandes pomos verdes; as jabuticabas negras a
|
||
estalar dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis,
|
||
recebendo a unção quente do sol; as abobreiras a se arrastarem com
|
||
flores carnudas cheias de pólen; as melancias de um verde tão fixo
|
||
que parecia pintado; os pêssegos veludosos, as jacas monstruosas, os
|
||
jambos, as mangas capitosas; e dentre tudo aquilo surgia uma linda
|
||
mulher, com o regaço cheio de frutos e um dos ombros nu, a lhe
|
||
sorrir agradecida, com um imaterial sorriso demorado de deusa - era
|
||
Pomona, a deusa dos vergéis e dos jardins!...
|
||
As primeiras semanas que passou no “Sossego”, Quaresma as empregou
|
||
numa exploração em regra da sua nova propriedade. Havia nela terra
|
||
bastante, velhas árvores frutíferas, um capoeirão grosso com
|
||
camarás, bacurubus, tinguacibas, tibibuias, monjolos, e outros
|
||
espécimes. Anastácio que o acompanhara, apelava para as suas
|
||
recordações de antigo escravo de fazenda, e era quem ensinava os
|
||
nomes dos indivíduos da mata a Quaresma muito lido e sabido em
|
||
coisas brasileiras.
|
||
O major logo organizou um museu dos produtos naturais do “Sossego”.
|
||
As espécies florestais e campesinas foram etiquetadas com os seus
|
||
nomes vulgares, e quando era possível com os científicos. Os
|
||
arbustos, em herbário, e as madeiras, em pequenos tocos, seccionados
|
||
longitudinal e transversalmente,
|
||
Os azares de leituras tinham-no levado a estudar as ciências
|
||
naturais e o furor autodidata dera a Quaresma sólidas noções de
|
||
Botânica, Zoologia, Mineralogia e Geologia.
|
||
Não foram só os vegetais que mereceram as honras de um inventário;
|
||
os animais também, mas como ele não tinha espaço suficiente e a
|
||
conservação dos exemplares exigia mais cuidado, Quaresma limitou-se
|
||
a fazer o seu museu no papel, por onde sabia que as terras eram
|
||
povoadas de tatus, cutias, preás, cobras variadas, saracuras, sanãs,
|
||
avinhados, coleiros, tiês, etc. A parte mineral era pobre, argilas,
|
||
areia e, aqui e ali, uns blocos de granito esfoliando-se.
|
||
Acabado esse inventário, passou duas semanas a organizar a sua
|
||
biblioteca agrícola e uma relação de instrumentos meteorológicos
|
||
para auxiliar os trabalhos da lavoura.
|
||
Encomendou livros nacionais, franceses, portugueses; comprou
|
||
termômetros, barômetros, pluviômetros, higrômetros, anemômetros.
|
||
Vieram estes e foram arrumados e colocados convenientemente.
|
||
Anastácio assistia a todos esses preparativos com assombro. Para que
|
||
tanta coisa, tanto livro, tanto vidro? Estaria o seu antigo patrão
|
||
dando para farmacêutico? A dúvida do preto velho não durou muito,
|
||
Estando certa vez Quaresma a ler o pluviômetro, Anastácio, ao lado,
|
||
olhava-o espantado, como quem assiste a um passe de feitiçaria. O
|
||
patrão notou o espanto do criado e disse:
|
||
- Sabes o que estou fazendo, Anastácio?
|
||
- Não “sinhô”.
|
||
- Estou vendo se choveu muito.
|
||
- Pra que isso, patrão? A gente sabe logo “de olho” quando chove
|
||
muito ou pouco... Isso de plantar é capinar, pôr a semente na terra,
|
||
deixar crescer e apanhar...
|
||
Ele falava com a voz mole de africano, sem “rr” fortes, com lentidão
|
||
e convicção.
|
||
Quaresma, sem abandonar o instrumento, tomou em consideração o
|
||
conselho de seu empregado, O capim e o mato cobriam as suas terras.
|
||
As laranjeiras, os abacateiros, as mangueiras estavam sujos, cheios
|
||
de galhos mortos, e cobertos de uma medusina cabeleira de
|
||
erva-de-passarinho; mas, como não fosse época própria à poda e ao
|
||
corte dos galhos, Quaresma limitou-se a capinar por entre os pés das
|
||
fruteiras. De manhã, logo ao amanhecer, ele mais o Anastácio, lá
|
||
iam, de enxada ao ombro, para o trabalho do campo. O sol era forte e
|
||
rijo; o verão estava no auge, mas Quaresma era inflexível e
|
||
corajoso. Lá ia.
|
||
Era de vê-lo, coberto com um chapéu de palha de coco, atracado a um
|
||
grande enxadão de cabo nodoso, ele, muito pequeno, míope, a dar
|
||
golpes sobre golpes para arrancar um teimoso pé de guaximba. A sua
|
||
enxada mais parecia uma draga, um escavador, que um pequeno
|
||
instrumento agrícola. Anastácio, junto ao patrão, olhava-o com
|
||
piedade e espanto. Por gosto andar naquele sol a capinar sem
|
||
saber?... Há cada coisa neste mundo!
|
||
E os dois iam continuando. O velho preto, ligeiro, rápido, raspando
|
||
o mato rasteiro, com a mão habituada, a cujo impulso a enxada
|
||
resvalava sem obstáculo pelo solo, destruindo a erva má; Quaresma,
|
||
furioso, a arrancar torrões de terra daqui, dali, demorando-se muito
|
||
em cada arbusto e, às vezes, quando o golpe falhava e a lâmina do
|
||
instrumento roçava a terra, a força era tanta que se erguia uma
|
||
poeira infernal, fazendo supor que por aquelas paragens passara um
|
||
pelotão de cavalaria. Anastácio, então, intervinha humildemente, mas
|
||
em tom professoral:
|
||
- Não é assim, “seu majó”. Não se mete a enxada pela terra adentro.
|
||
É de leve, assim.
|
||
E ensinava ao Cincinato inexperiente o jeito de servir-se do velho
|
||
instrumento de trabalho.
|
||
Quaresma agarrava-o, punha-se em posição e procurava com toda a boa
|
||
vontade usá-lo da maneira ensinada. Era em vão. O flange batia na
|
||
erva, a enxada saltava e ouvia-se um pássaro ao alto soltar uma
|
||
piada irônica: bem-te-vi! O major enfurecia-se, tentava outra vez,
|
||
fatigava-se, suava, enchia-se de raiva e batia com toda a força; e
|
||
houve várias vezes que a enxada, batendo em falso, escapando ao
|
||
chão, fê-lo perder o equilíbrio, cair, e beijar a terra, mãe dos
|
||
frutos e dos homens. O pince-nez saltava, partia-se de encontro a um
|
||
seixo.
|
||
O major ficava todo enfurecido e voltava com mais rigor e energia à
|
||
tarefa que se impusera; mas, tanto é em nossos músculos firme a
|
||
memória ancestral desse sagrado trabalho de tirar da terra o
|
||
sustento de nossa vida, que não foi impossível a Quaresma acordar
|
||
nos seus o jeito, a maneira de empregar a enxada vetusta.
|
||
Ao fim de um mês, ele capinava razoavelmente, não seguido, de sol a
|
||
sol, mas com grandes repousos de hora em hora que a sua idade e
|
||
falta de hábito requeriam.
|
||
Às vezes, o fiel Anastácio seguia-o no descanso e ambos, lado a
|
||
lado, à sombra de uma fruteira mais copada, ficavam a ver o ar
|
||
pesado daqueles dias de verão que enrodilhava as folhas das árvores
|
||
e punha nas coisas um forte acento de resignação mórbida. Então, aí
|
||
por depois do meio-dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e
|
||
mergulhar em silêncio a vida inteira, é que o velho major percebia
|
||
bem a alma dos trópicos, feita de desencontros como aquele que se
|
||
via agora, de um sol alto, claro, olímpico, a brilhar sobre um
|
||
torpor de morte, que ele mesmo provocava.
|
||
Almoçavam mesmo no eito, comidas do dia anterior, aquecidas
|
||
rapidamente sobre um improvisado fogão de calhaus, e o trabalho ia
|
||
assim até à hora do jantar. Havia em Quaresma um entusiasmo sincero,
|
||
entusiasmo de ideólogo que quer pôr em prática a sua idéia. Não se
|
||
agastou com as primeiras ingratidões da terra, aquele seu mórbido
|
||
amor pelas ervas daninhas e o incompreensível ódio pela enxada
|
||
fecundante. Capinava e capinava sempre até vir jantar.
|
||
Esta refeição ele fazia mais demorada. Conversava um pouco com a
|
||
irmã, contava-lhe a tarefa do dia, consistindo sempre em avaliar a
|
||
área já limpa.
|
||
- Sabes, Adelaide, amanhã estarão as laranjeiras limpas, não ficará
|
||
nem mais uma touceira de mato.
|
||
A irmã, mais velha que ele, não partilhava aquele seu entusiasmo
|
||
pelas coisas da roça. Considerava-o silenciosa, e, se viera viver
|
||
com ele, não foi senão pelo hábito de acompanhá-lo. Decerto, ela o
|
||
estimava, mas não o compreendia. Não chegava a entender nem os seus
|
||
gestos nem a sua agitação interna. Por que não seguira ele o caminho
|
||
dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito...
|
||
Andar com livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira!
|
||
Seguira-o ao “Sossego” e, para entreter-se, criava galinhas, com
|
||
grande alegria do irmão cultivador.
|
||
- Está direito, dizia ela, quando o irmão lhe contava as coisas do
|
||
seu trabalho. Não vá ficares doente... Neste sol todo o dia...
|
||
- Qual, doente, Adelaide! Não estás vendo como essa gente tem tanta
|
||
saúde por aí... Se adoecem, é porque não trabalham.
|
||
Acabado o jantar, Quaresma chegava à janela que dava para o
|
||
galinheiro e atirava migalhas de pão às aves.
|
||
Ele gostava desse espetáculo, daquela luta encarniçada entre patos,
|
||
gansos, galinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida
|
||
da vida e dos prêmios que ela comporta. Depois, fazia indagações
|
||
sobre a vida do galinheiro:
|
||
- Já nasceram os patos, Adelaide?
|
||
- Ainda não. Faltam oito dias ainda.
|
||
E logo a irmã acrescentava:
|
||
- Tua afilhada deve casar-se sábado, tu não vais?
|
||
- Não. Não posso... Vou incomodar-me, luxo... Mando um leitão e um peru.
|
||
- Ora, tu! Que presente!
|
||
- Que é que tem? É da tradição.
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Justamente estavam nesse dia assim a conversar as dois irmãos na
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sala de jantar da velha casa roceira, quando Anastácio veio
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avisar-lhes que se achava um cavalheiro na porteira.
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Desde que ali se instalara, nenhuma visita batera à porta de
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Quaresma, a não ser a gente pobre do lugar, a pedir isso ou aquilo,
|
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esmolando disfarçadamente. Ele mesmo não travara conhecimento com
|
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ninguém, de modo que foi com surpresa que recebeu o aviso do velho
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Apressou-se em ir receber o visitante na sala principal. Ele já
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subia a pequena escada da frente e penetrava pela varanda adentro.
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- Boas tardes, major.
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- Boas tardes. Faça o favor de entrar.
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O desconhecido entrou e sentou-se. Era um tipo comum, mas o que
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havia nele de estranho, era a gordura. Não era desmedida ou
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||
grotesca, mas tinha um aspecto desonesto. Parecia que a fizera de
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repente e comia, a mais não poder, com medo de a perder de um dia
|
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para outro. Era assim como a de um lagarto que entesoura enxúndia
|
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para o inverno ingrato. Através da gordura de suas bochechas, via-se
|
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perfeitamente a sua magreza natural, normal, e se devia ser gordo
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não era naquela idade, com pouco mais de trinta anos, sem dar tempo
|
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que todo ele engordasse; porque, se as suas faces eram gordas, as
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suas mãos continuavam magras com longos dedos fusiformes e ágeis. O
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visitante falou:
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- Eu sou o Tenente Antonino Dutra, escrivão da coletoria...
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- Alguma formalidade? indagou medroso Quaresma.
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- Nenhuma, major. Já sabemos quem o senhor é; não há novidade nem
|
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nenhuma exigência legal.
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||
O escrivão tossiu, tirou um cigarro, ofereceu outro a Quaresma e
|
||
continuou.
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- Sabendo que o major vem estabelecer-se aqui, tomei a iniciativa
|
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de vir incomodá-lo... Não é coisa de importância... Creio que o
|
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major...
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- Oh! Por Deus, tenente!
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- Venho pedir-lhe um pequeno auxílio, um óbulo, para a festa da
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||
Conceição, a nossa padroeira, de cuja irmandade sou tesoureiro.
|
||
- Perfeitamente. É muito justo. Apesar de não ser religioso,
|
||
estou...
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||
- Uma coisa nada tem com a outra. É uma tradição do lugar que
|
||
devemos manter.
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- É justo.
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- O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre
|
||
e a irmandade também, de forma que somos obrigados a apelar para a
|
||
boa vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto,
|
||
major...
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||
- Não. Espere um pouco...
|
||
- Oh! major, não se incomode, Não é pra já.
|
||
Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fora e
|
||
acrescentou:
|
||
- Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem,
|
||
major?
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||
- Muito bem.
|
||
- Pretende dedicar-se à agricultura?
|
||
- Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.
|
||
- Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sítio já foi uma
|
||
lindeza, major! Quanta fruta, quanta farinha! As terras estão
|
||
cansadas e...
|
||
- Qual cansadas, Seu Antonino! Não há terras cansadas... A Europa é
|
||
cultivada há milhares de anos, entretanto...
|
||
- Mas lá se trabalha.
|
||
- Por que não se há de trabalhar aqui também?
|
||
- Lá isso é verdade; mas há tantas contrariedades na nossa terra que...
|
||
- Qual, meu caro tenente! Não há nada que não se vença.
|
||
- O senhor verá com o tempo, major. Na nossa terra não se vive
|
||
senão de política, fora disso, babau! Agora mesmo anda tudo brigado
|
||
por causa da questão da eleição de deputados...
|
||
Ao dizer isto, o escrivão lançou por baixo das suas pálpebras gordas
|
||
um olhar pesquisador sobre a ingênua fisionomia de Quaresma.
|
||
- Que questão é? indagou Quaresma.
|
||
O tenente parecia que esperava a pergunta e logo fez com alegria:
|
||
- Então não sabe?
|
||
- Não.
|
||
- Eu lhe explico: o candidato do governo é o doutor Castrioto, moço
|
||
honesto, bom orador; mas entenderam aqui certos presidentes de
|
||
Câmaras Municipais do Distrito que se hão de sobrepor ao governo, só
|
||
porque o Senador Guariba rompeu com o governador; e - zás -
|
||
apresentaram um tal Neves que não tem serviço algum ao partido e
|
||
nenhuma influência... Que pensa o senhor?
|
||
- Eu... Nada!
|
||
O serventuário do fisco ficou espantado. Havia no mundo um homem
|
||
que, sabendo e morando no município de Curuzu, não se incomodasse
|
||
com a briga do Senador Guariba com o governador do Estado! Não era
|
||
possível! Pensou e sorriu levemente. Com certeza, disse ele consigo,
|
||
este malandro quer ficar bem com os dois, para depois arranjar-se
|
||
sem dificuldade. Estava tirando sardinha com mão de gato... Aquilo
|
||
devia ser um ambicioso matreiro; era preciso cortar as asas daquele
|
||
“estrangeiro”, que vinha não se sabe donde!
|
||
- O major é um filósofo, disse ele com malícia.
|
||
- Quem me dera? fez com ingenuidade Quaresma.
|
||
Antonino ainda fez rodar um pouco a conversa sobre a grave questão,
|
||
mas, desanimado de penetrar nas tenções ocultas do major, apagou a
|
||
fisionomia e disse em ar de despedida:
|
||
- Então o major não se recusa a concorrer para a nossa festa, não é?
|
||
- Decerto.
|
||
Os dois se despediram. Debruçado na varanda, Quaresma ficou a vê-lo
|
||
montar no seu pequeno castanho, luzidio de suor, gordo e vivo. O
|
||
escrivão afastou-se, desapareceu na estrada, e o major ficou a
|
||
pensar no interesse estranho que essa gente punha nas lutas
|
||
políticas, nessas tricas eleitorais, como se nelas houvesse qualquer
|
||
coisa de vital e importante. Não atinava porque uma rezinga entre
|
||
dois figurões importantes vinha pôr desarmonia entre tanta gente,
|
||
cuja vida estava tão fora da esfera daqueles. Não estava ali a terra
|
||
boa para cultivar e criar? Não exigia ela uma árdua luta diária? Por
|
||
que não se empregava o esforço que se punha naqueles barulhos de
|
||
votos, de atas, no trabalho de fecundá-la, de tirar dela seres,
|
||
vidas - trabalho igual ao de Deus e dos artistas? Era tolo estar a
|
||
pensar em governadores e guaribas, quando a nossa vida pede tudo à
|
||
terra e ela quer carinho, luta, trabalho e amor...
|
||
O sufrágio universal pareceu-lhe um flagelo.
|
||
O trem apitou e ele demorou-se a vê-lo chegar. É uma emoção especial
|
||
de quem mora longe, essa de ver chegar os meios de transporte que
|
||
nos põem em comunicação com o resto do mundo. Há uma mescla de
|
||
e de alegria, Ao mesmo tempo que se pensa em boas novas, pensam-se
|
||
também más. A alternativa angustia...
|
||
O trem ou o vapor como que vem do indeterminado, do Mistério, e
|
||
traz, além de notícias gerais, boas ou más, também o gesto, um
|
||
sorriso, a voz das pessoas que amamos e estão longe.
|
||
Quaresma esperou o trem. Ele chegou arfando e se estirando como um
|
||
réptil pela estação afora à luz forte do sol poente. Não se demorou
|
||
muito. Apitou de novo e saiu a levar notícias, amigos, riquezas,
|
||
tristezas por outras estações além. O major pensou ainda um pouco
|
||
como aquilo era bruto e feio, e como as invenções do nosso tempo se
|
||
afastam tanto da linha imaginária da beleza que os nossos educadores
|
||
de dois mil anos atrás nos legaram. Olhou a estrada que levava à
|
||
estação. Vinha um sujeito... Dirigia-se para a sua casa... Quem
|
||
podia ser? Limpou o pince-nez e assestou-o para o homem que
|
||
caminhava com pressa... Quem era? Aquele chapéu dobrado, como um
|
||
morrião... Aquele fraque comprido... Passo miúdo... Um violão! Era
|
||
ele!
|
||
- Adelaide, está aí o Ricardo.
|
||
II
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||
ESPINHOS E FLORES
|
||
Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa coisa em matéria
|
||
de edificação da cidade. A topografia do local, caprichosamente
|
||
montuosa, influiu decerto para tal aspecto, mais influíram, porém,
|
||
os azares das construções.
|
||
Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode
|
||
ser imaginado. As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e,
|
||
conforme as casas, as ruas se fizeram. Há algumas delas que começam
|
||
largas como boulevards e acabam estreitas que nem vielas; dão
|
||
voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um
|
||
ódio tenaz e sagrado.
|
||
Às vezes se sucedem na mesma direção com uma freqüência irritante,
|
||
outras se afastam, e deixam de permeio um longo intervalo coeso e
|
||
fechado de casas. Num trecho, há casas amontoadas umas sobre outras
|
||
numa angústia de espaço desoladora, logo adiante um vasto campo abre
|
||
ao nosso olhar uma ampla perspectiva.
|
||
Marcham assim ao acaso as edificações e conseguintemente o
|
||
arruamento. Há casas de todos os gostos e construídas de todas as
|
||
s.
|
||
Vai-se por uma rua a ver um correr de chalets, de porta e janela,
|
||
parede de frontal, humildes e acanhados, de repente se nos depara
|
||
uma casa burguesa, dessas de compoteiras na cimalha rendilhada, a se
|
||
erguer sobre um porão alto com mezaninos gradeados. Passada essa
|
||
surpresa, olha-se acolá e dá-se com uma choupana de pau-a-pique,
|
||
coberta de zinco ou mesmo palha, em torno da qual formiga uma
|
||
população; adiante, é uma velha casa de roça, com varanda e colunas
|
||
de estilo pouco classificável, que parece vexada e querer ocultar-se
|
||
diante daquela onda de edifícios disparatados e novos.
|
||
Não há nos nossos subúrbios coisa alguma que nos lembre os famosos
|
||
das grandes cidades européias, com as suas vilas de ar repousado e
|
||
satisfeito, as suas estradas e ruas macadamizadas e cuidadas, nem
|
||
mesmo se encontram aqueles jardins, cuidadinhos, aparadinhos,
|
||
penteados, porque os nossos, se os há, são em geral pobres, feios e
|
||
desleixados.
|
||
Os cuidados municipais também são variáveis e caprichosos. Às vezes,
|
||
nas ruas, há passeios, em certas partes e outras não; algumas vias
|
||
de comunicação são calçadas e outras da mesma importância estão
|
||
ainda em estado de natureza. Encontra-se aqui um pontilhão bem
|
||
cuidado sobre o rio seco e passos além temos que atravessar um
|
||
ribeirão sobre uma pinguela de trilhos mal juntos.
|
||
Há pelas ruas damas elegantes, com sedas e brocados, evitando a
|
||
custo que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido; há
|
||
operários de tamancos; há peralvilhos à última moda; há mulheres de
|
||
chita; e assim pela tarde, quando essa gente volta do trabalho ou do
|
||
passeio, a mescla se faz numa mesma rua, num quarteirão, e quase
|
||
sempre o mais bem posto não é que entra na melhor casa.
|
||
Além disto, os subúrbios têm mais aspectos interessantes, sem falar
|
||
no namoro epidêmico e no espiritismo endêmico; as casas de cômodos
|
||
(quem as suporia lá!) constituem um deles bem inédito. Casas que mal
|
||
dariam para uma pequena família, são divididas, subdivididas, e os
|
||
minúsculos aposentos assim obtidos, alugados à população miserável
|
||
da cidade. Aí, nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna
|
||
menos observada da nossa vida, sobre a qual a miséria paira com um
|
||
rigor londrino.
|
||
Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da
|
||
gente que habita tais caixinhas. Além dos serventes de repartições,
|
||
contínuos de escritórios, podemos deparar velhas fabricantes de
|
||
rendas de bilros, compradores de garrafas vazias, castradores de
|
||
gatos, cães e galos, mandingueiros, catadores de ervas medicinais,
|
||
enfim, uma variedade de profissões miseráveis que as nossas pequena
|
||
e grande burguesias não podem adivinhar. Às vezes num cubículo
|
||
desses se amontoa uma família, e há ocasiões em que os seus chefes
|
||
vão a pé para a cidade por falta do níquel do trem.
|
||
Ricardo Coração dos Outros morava em uma pobre casa de cômodos de
|
||
|
||
dos subúrbios. Não era das sórdidas, mas era uma casa de cômodos dos
|
||
subúrbios.
|
||
Desde anos que ele a habitava e gostava da casa que ficava trepada
|
||
sobre uma colina, olhando a janela do seu quarto para uma ampla
|
||
extensão edificada que ia da Piedade a Todos os Santos. Vistos assim
|
||
do alto, os subúrbios têm a sua graça. As casas pequeninas, pintadas
|
||
de azul, de branco, de oca, engastadas nas comas verde-negras das
|
||
mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro ou uma
|
||
palmeira, alta e soberba, fazem a vista boa e a falta de percepção
|
||
do desenho das ruas põe no panorama um sabor de confusão
|
||
democrática, de solidariedade perfeita entre as gentes que as
|
||
habitam; e o trem minúsculo, rápido, atravessa tudo aquilo, dobrando
|
||
à esquerda, inclinando-se para a direita, muito flexível nas suas
|
||
grandes vértebras de carros, como uma cobra entre pedrouços.
|
||
Era daquela janela que Ricardo espraiava as suas alegrias, as suas
|
||
satisfações, os seus triunfos e também os seus sofrimentos e mágoas.
|
||
Ainda agora estava ele lá, debruçado no peitoril, com a mão em
|
||
concha no queixo, colhendo com a vista uma grande parte daquela
|
||
bela, grande e original cidade, capital de um grande país, de que
|
||
ele a modos que era e se sentia ser, a alma, consubstanciando os
|
||
seus tênues sonhos e desejos em versos discutíveis, mas que a
|
||
plangência do violão, se não lhes dava sentido, dava um quê de
|
||
balbucio, de queixume dorido da pátria criança ainda, ainda na sua
|
||
ção...
|
||
Em que pensava ele? Não pensava só, sofria também. Aquele tal preto
|
||
continuava na sua mania de querer fazer a modinha dizer alguma
|
||
coisa, e tinha adeptos. Alguns já o citavam como rival dele,
|
||
Ricardo; outros já afirmavam que o tal rapaz deixava longe o Coração
|
||
dos Outros, e alguns mais - ingratos! - já esqueciam os trabalhos,
|
||
o tenaz trabalhar de Ricardo Coração dos Outros em prol do
|
||
levantamento da modinha e do violão, e nem nomeavam o abnegado
|
||
o.
|
||
Com o olhar perdido, Ricardo lembrava-se de sua infância, daquela
|
||
sua aldeia sertaneja, da casinha dos seus pais, com seu curral e o
|
||
mugido dos vitelos... E o queijo? Aquele queijo tão substancial, tão
|
||
forte, feio como aquela terra, mas feraz como ela tanto que bastava
|
||
comer dele uma pequena fatia para se sentir almoçado... E as festas?
|
||
Saudades... E o violão, como aprendeu? O seu mestre, o Maneco
|
||
Borges, não lhe predissera o futuro: “Irás longe, Ricardo. A viola
|
||
quer teu coração”?
|
||
Por que então aquele encarniçamento, aquele ódio contra ele - ele
|
||
que trouxera para esta terra de estrangeiros a alma, o suco, a
|
||
substância do país!
|
||
E as lágrimas lhe saltaram quentes dos olhos afora. Olhou um pouco
|
||
as montanhas, farejou o mar lá longe... Era bela a terra, era linda,
|
||
era majestosa, mas parecia ingrata e áspera no seu granito
|
||
onipresente que se fazia negro e mau quando não era amaciado pela
|
||
verdura das árvores.
|
||
E ele estava ali só, só com a sua glória e o seu tormento, sem amor,
|
||
sem confidente, sem amigo, só como um deus ou como um apóstolo em
|
||
terra ingrata que não lhe quer ouvir a boa nova.
|
||
Sofria em não ter um peito amado, amigo em que derramasse aquelas
|
||
lágrimas que iam cair no solo indiferente. Por aí, lembrou-se dos
|
||
famosos versos:
|
||
“Se choro... bebe o pranto a areia ardente”...
|
||
Com a lembrança, ele baixou um pouco o olhar à terra e viu que, no
|
||
tanque da casa, um tanto escondida dele, uma rapariga preta lavava.
|
||
Ela abaixava o corpo sobre a roupa, carregava todo o seu peso,
|
||
ensaboava-a ligeira, batia-a de encontro à pedra, e recomeçava. Teve
|
||
pena daquela pobre mulher, duas vezes triste na sua condição e na
|
||
sua cor. Veio-lhe um afluxo de ternura e, depois, pôs-se a pensar no
|
||
mundo, nas desgraças, ficando um instante enleado no enigma do nosso
|
||
miserável destino humano.
|
||
A rapariga não o viu, distraída com o trabalho; e se pôs a cantar:
|
||
Da doçura dos teus olhos
|
||
A brisa inveja já tem
|
||
Era dele. Ricardo sorriu satisfeito e teve vontade de ir beijar
|
||
aquela pobre mulher, abraçá-la...
|
||
E como eram as coisas? Ele recebia lenitivo daquela rapariga; era a
|
||
sua humilde e dorida voz que vinha afagar o seu tormento! Vieram-lhe
|
||
então à memória aqueles versos do Padre Caldas, esse seu antecessor
|
||
feliz que teve um auditório de fidalgas:
|
||
Lereno alegrou os outros
|
||
E nunca teve alegria...
|
||
Enfim era uma missão!... A rapariga acabou de cantar e Ricardo não
|
||
se pôde conter:
|
||
- Vai bem, Dona Alice, vai bem! Se não fosse, por que lhe pedia bis?
|
||
A rapariga estendeu a cabeça, reconheceu quem falava e disse:
|
||
- Não sabia que o senhor estava aí, senão não cantava na vista do senhor.
|
||
- Qual o quê! Posso garantir-lhe que está bom, muito bom. Cante.
|
||
- Deus me livre! Para o senhor me “acriticar”...
|
||
Embora insistisse muito, a rapariga não quis continuar. As mágoas
|
||
pareciam ter passado do pensamento de Ricardo. Veio ao interior do
|
||
quarto e pôs-se à mesa na tenção de escrever.
|
||
O seu quarto tinha o mobiliário mais reduzido possível. Havia uma
|
||
rede com franjas de rendas, uma mesa de pinho, sobre ela objetos de
|
||
escrever; uma cadeira, uma estante com livros, e, pendurado a uma
|
||
parede, o violão na sua armadura de camurça. Havia também uma
|
||
máquina para fazer café.
|
||
Sentou-se e quis começar uma modinha sobre a Glória, essa coisa
|
||
fugace, que se tem e se pensa que não se tem, alguma coisa
|
||
impalpável, incolhível como um sopro, que nos alanceia, queima,
|
||
inquieta e abrasa como o Amor.
|
||
Tentou começar, dispôs o papel, mas não pôde. A emoção tinha sido
|
||
forte, toda a sua natureza tinha sido lavrada, baralhada, com a
|
||
idéia daquele furto que se queria fazer ao seu mérito. Não conseguiu
|
||
assentar o pensamento, apanhar as palavras no ar, sentir a música
|
||
zumbir no ouvido.
|
||
A manhã ia alta. As cigarras defronte chilreavam no tamarineiro
|
||
desfolhado; começava a esquentar e o céu estava de um azul ligeiro,
|
||
tênue, fino. Quis sair, procurar um amigo, espairecer com ele, mas
|
||
quem? Ainda se o Quaresma... Ah! O Quaresma! Esse, sim, trazia-lhe
|
||
conforto e consolo.
|
||
É verdade que ultimamente esse seu amigo achava-se pouco interessada
|
||
pela modinha; mas assim mesmo compreendia o seu propósito, os fins e
|
||
o alcance da obra a que ele, Ricardo, se propunha. Ainda se o major
|
||
estivesse perto, mas tão longe! Consultou as algibeiras. Não chegava
|
||
a dois mil-réis a sua fortuna. Como ir? Arranjaria um passe e iria.
|
||
Bateram à porta. Traziam-lhe uma carta. Não reconheceu a letra;
|
||
rasgou o envelope com emoção. Que seria? Leu:
|
||
“Meu caro Ricardo - Saúde - Minha filha Quinota casa-se depois de
|
||
amanhã, quinta-feira. Ela e o noivo fazem muito gosto que você
|
||
apareça. Se o amigo não estiver comprometido com alguém, agarre o
|
||
violão e venha até cá tomar uma chávena de chá conosco - Seu amigo
|
||
Albernaz”.
|
||
O trovador, à proporção que lia, ia mudando de fisionomia. Até então
|
||
estava carregada e dura; quando acabou de ler o bilhete, um sorriso
|
||
brincava por toda ela, descia e subia, ia de uma face a outra. O
|
||
general não o abandonara; para o respeitável militar, Ricardo
|
||
Coração dos Outros ainda era o rei do violão. Iria e arranjaria
|
||
passagem com o antigo vizinho de Quaresma. Contemplou um pouco o
|
||
violão, demoradamente, ternamente, agradecidamente como se fosse um
|
||
ídolo benfazejo.
|
||
Quando Ricardo penetrou em casa do General Albernaz, o último brinde
|
||
havia sido levantado e todos se dirigiam para a sala de visitas em
|
||
pequenos grupos. Dona Maricota vestia seda malva e o seu busto curto
|
||
parecia ainda mais abafado, mais socado, naquele tecido caro que
|
||
parece requerer corpos elegantes e flexíveis. Quinota estava
|
||
radiante no vestido de noiva. Ela era alta, de feições mais
|
||
regulares que a irmã Ismênia, mas menos interessante e mais comum de
|
||
temperamento e alma, embora faceira. Lalá, a terceira filha do
|
||
general, que já se ajeitava a moça, tinha muito pó-de-arroz, estava
|
||
sempre a concertar o penteado e o sorrir para o Tenente Fontes. Um
|
||
casamento bem cotado e esperado. Genelício dava o braço à noiva,
|
||
encasacado numa casaca mal talhada, que punha bem à mostra a sua
|
||
gibosidade, e caminhava todo atrapalhado nos apertados sapatos de
|
||
.
|
||
Ricardo não os viu passar, pois ao entrar, a fila estava no general,
|
||
metido num segundo uniforme dos grandes dias, que lhe ia mal como a
|
||
farda de um guarda-nacional endomingado; mas, quem tinha um ar
|
||
importante, marcial e navegado, ao mesmo tempo palaciano, era o
|
||
Contra-Almirante Caldas. Fora padrinho e estava irrepreensível na
|
||
sua casaca do uniforme. As âncoras reluziam como metais de bordo em
|
||
hora de revista e os seus favoritos, muito penteados, alargavam a
|
||
sua face e pareciam desejar com ardor os grandes ventos do vasto
|
||
oceano sem fim. Ismênia estava de rosa e andava pelas salas com o
|
||
seu ar dolente, com o seu vagar, com os seus gestos lentos, dando
|
||
providências. O Lulu, o único filho do general, impava no seu
|
||
uniforme do Colégio Militar, cheio de dourados e cabelos, tanto mais
|
||
que passara de ano, graças aos empenhos do pai.
|
||
O general não tardou em vir falar com Ricardo; e os noivos, quando o
|
||
trovador os cumprimentou, agradeceram-lhe muito, e até Quinota disse
|
||
um - “sou muito feliz...” - deitando a cabeça de lado e sorrindo
|
||
para o chão, sorriso que encheu de imenso transporte a cândida alma
|
||
do menestrel.
|
||
Deram começo às danças e o general, o almirante, o Major Inocêncio
|
||
Bustamante, que também viera de uniforme, com a sua banda roxa de
|
||
honorário, o doutor Florêncio, Ricardo e dois convidados outros
|
||
foram para a sala de jantar palestrar um pouco.
|
||
O general estava satisfeito. Sonhava há tantos anos uma cerimônia
|
||
daquelas em sua casa e enfim pela primeira vez via realizado esse anseio.
|
||
A Ismênia foi aquela desgraça... O ingrato!... Mas para que recordar?
|
||
Os cumprimentos se repetiram.
|
||
- É um rapagão, o seu novo genro, disse um dos convidados novos.
|
||
O general tirou o pince-nez que era preso por um trancelim de ouro,
|
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e enquanto o limpava, respondeu, olhando com aquele jeito dos
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míopes:
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- Estou muito contente.
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Por aí pôs o pince-nez, endireitou o trancelim e continuou:
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- Creio que casei bem minha filha; rapaz formado, bem encaminhado e
|
||
inteligente.
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||
O almirante acudiu:
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||
- E que carreira! Não é por ser meu parente, mas com trinta e dois
|
||
anos primeiro escriturário do Tesouro, é coisa nunca vista.
|
||
- O Genelício não está no Tribunal de Contas, não passou? perguntou
|
||
Florêncio.
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||
- Passou, mas é a mesma coisa, replicou o outro convidado novo, que
|
||
era da amizade do recém-casado.
|
||
De fato, Genelício tinha arranjado a transferência e não fora só
|
||
isso que o decidira a casar-se. Tendo escrito uma - Síntese de
|
||
Contabilidade Pública Científica - viu-se, sem saber como, cumulado
|
||
de elogios pela “imprensa desta capital.” O ministro, atendendo ao
|
||
mérito excepcional da obra, mandou-lhe dar dois contos de prêmio,
|
||
tendo sido a edição feita à custa do Estado, na Imprensa Nacional.
|
||
Era um grosso volume de quatrocentas páginas, tipo doze, escrito em
|
||
estilo de ofício, com uma basta documentação de decretos e
|
||
portarias, ocupando dois terços do livro.
|
||
A primeira frase da primeira parte, o quinhão do livro
|
||
verdadeiramente sintético e científico, fora até muito notada e
|
||
gabada pelos críticos, não só pela novidade da idéia, como também
|
||
pela beleza da expressão.
|
||
Dizia assim: “A Contabilidade Pública é a arte ou ciência de
|
||
escriturar convenientemente a despesa e receita do Estado”.
|
||
Além do prêmio e da transferência, ele já tinha promessa de ser
|
||
subdiretor na primeira vaga.
|
||
Ouvindo tudo isso que tinham dito o almirante, o general e os
|
||
convidados novos, o major não pôde deixar de observar:
|
||
- Depois da militar, a melhor carreira é a de Fazenda, não acham?
|
||
- Sim... Bem entendido, fez o doutor Florêncio.
|
||
- Eu não quero falar dos formados, apressou-se o major. Esses...
|
||
Ricardo sentia-se na obrigação de dizer qualquer coisa e foi
|
||
soltando a primeira frase que lhe veio aos lábios:
|
||
- Quando se prospera, todas as profissões são boas.
|
||
- Não é tanto assim, obtemperou o almirante, alisando um dos
|
||
favoritos. Não é para desfazer nas outras, mas a nossa, hein
|
||
Albernaz? hein Inocêncio?
|
||
Albernaz levantou a cabeça como se quisesse apanhar no ar uma
|
||
lembrança e depois replicou:
|
||
- É, mas tem os seus percalços, Quando se está numa trapalhada,
|
||
fogo daqui, tiro dali, morre um, grita outro como em Curupaiti,
|
||
então...
|
||
- O senhor esteve lá, general? perguntou o convidado amigo de
|
||
Genelício.
|
||
- Não estive, Adoeci e vim para o Brasil. Mas o Camisão... Não
|
||
imaginam o que foi - você sabe, não é Inocêncio?
|
||
- Se estive lá...
|
||
- Polidoro tinha ordem de atacar Sauce, Flores à esquerda e “nós”
|
||
caímos sobre os paraguaios. Mas os malandros estavam bem
|
||
entrincheirados, tinham aproveitado o tempo.
|
||
- Foi “Seu” Mitre, disse Inocêncio.
|
||
- Foi. Atacamos com fúria. Era um ribombar de canhões que metia
|
||
medo, bala por todo canto, os homens morriam como moscas... Um o!
|
||
- Quem venceu? perguntou um dos convidados novos.
|
||
Todos se entreolharam admirados, exceto o general que julgava a
|
||
sabedoria do Paraguai excepcional.
|
||
- Foram os paraguaios, isto é, repeliram o nosso ataque. É por isso
|
||
que eu digo que a nossa profissão é bela, mas tem as suas “coisas””.
|
||
- Isso não quer dizer nada, Também na passagem de Humaitá... ia
|
||
dizendo o almirante.
|
||
- O senhor estava a bordo?
|
||
- Não, eu fui mais tarde. Perseguições fizeram com que eu não fosse
|
||
designado, porque o embarque equivalia a uma promoção... Mas, na
|
||
passagem de Humaitá...
|
||
Na sala de visitas as danças continuavam com animação. Era raro que
|
||
alguém viesse lá de dentro até onde eles estavam. Os risos, a
|
||
música, e o mais que se adivinhava não distraíam aqueles homens das
|
||
suas preocupações belicosas.
|
||
O general, o almirante e o major enchiam de pasmo aqueles burgueses
|
||
pacíficos, contando batalhas em que não estiveram e pugnas valorosas
|
||
que não pelejaram.
|
||
Não há como um cidadão pacato, bem comido, tendo tomado alguns
|
||
vinhos generosos, para apreciar as narrações de guerra. Ele só vê a
|
||
parte pitoresca, a parte por assim dizer espiritual das batalhas,
|
||
dos encontros; os tiros são os de salva e se matam é coisa de
|
||
somenos. A Morte mesmo, nas narrações feitas assim, perde a sua
|
||
importância trágica: três mil mortos, só!!!
|
||
De resto, contadas pelo General Albernaz, que nunca tinha visto a
|
||
guerra, a coisa ficava edulcorada, uma guerra bibliothèque rose,
|
||
guerra de estampa popular, em que não aparecem a carniçaria, a
|
||
brutalidade e a ferocidade normais.
|
||
Estavam Ricardo, o doutor Florêncio, o exato empregado como
|
||
engenheiro das águas, aqueles dois recentes conhecimentos de
|
||
Albernaz, embevecidos, boquiabertos e invejosos diante das proezas
|
||
imaginárias daqueles três militares, um honorário, talvez o menos
|
||
pacífico dos três, o único que tivesse mesmo tomado parte em alguma
|
||
coisa guerreira - quando Dona Maricota chegou, sempre diligente,
|
||
altiva, dando movimento e vida à festa. Era mais moça que o marido,
|
||
tinha ainda inteiramente pretos os cabelos na sua cabeça pequena,
|
||
que contrastava tanto com o seu corpo enorme. Ela vinha ofegante e
|
||
dirigiu-se ao marido:
|
||
- Então, Chico, que é isso? Ficam ai e eu que faça sala, que anime
|
||
as moças... Pra sala todos!
|
||
- Já vamos, Dona Maricota, disse alguém.
|
||
- Não, fez com rapidez a dona da casa, é já. Vamos, “Seu” Caldas,
|
||
“Seu” Ricardo, os senhores!
|
||
E foi empurrando um a um pelo ombro.
|
||
- Depressa, depressa, que a filha do Lemos vai cantar; e depois é o
|
||
senhor... Está ouvindo, “Seu” Ricardo!
|
||
- Pois não, minha senhora. É uma ordem...
|
||
E foram. No caminho o general parou um pouco, chegou-se a Coração
|
||
dos Outros e perguntou:
|
||
- Diga-me uma coisa: como vai o nosso amigo Quaresma?
|
||
- Vai bem.
|
||
- Tem-lhe escrito?
|
||
- Às vezes. Eu queria, general...
|
||
O general suspendeu a cabeça, levantou um pouco o pince-nez que
|
||
começava a cair, e perguntou:
|
||
- O quê?
|
||
Ricardo ficou intimidado com o ar marcial com que Albernaz lhe fez a
|
||
pergunta. Depois de uma ligeira hesitação, respondeu de um jato, com
|
||
medo de perder as palavras.
|
||
- Eu queria que o senhor me arranjasse uma passagem, um passe, para
|
||
ir vê-lo.
|
||
O general esteve uns instantes de cabeça baixa, coçou o cabelo e
|
||
disse:
|
||
- Isso é difícil, mas você apareça lá, na repartição, amanhã.
|
||
E continuaram a andar. Ainda andando, Coração dos Outros
|
||
acrescentou:
|
||
- Estou com saudades dele, depois tenho certos desgostos... O
|
||
senhor sabe: um homem que tem nome...
|
||
- Vá lá amanhã.
|
||
Dona Maricota apareceu na frente e falou agastada:
|
||
- Vocês não vêm!
|
||
- Já vamos, fez o general.
|
||
E depois, dirigindo-se a Ricardo, ajuntou:
|
||
- Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi meter-se com livros... É
|
||
isto! Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro...
|
||
Chegaram à sala. Era vasta. Tinha dois grandes retratos em pesadas
|
||
molduras douradas, furiosos retratos a óleo de Albernaz e da mulher;
|
||
um espelho oval e alguns quadrinhos, e a decoração estava completa.
|
||
Da mobília não se pode julgar, tinha sido retirada, para dar mais
|
||
espaço aos dançantes. A noiva e o noivo estavam no sofá sentados a
|
||
presidir a festa. Havia um ou outro decote, poucas casacas, algumas
|
||
sobrecasacas e muitos fraques. Por entre as cortinas de uma janela,
|
||
Ricardo pôde ver a rua. A calçada defronte estava cheia. A casa era
|
||
alta e tinha jardim; só de lá os curiosos, os “serenos”, podiam ver
|
||
alguma coisa da festa. Lalá, no vão de uma sacada, conversava com o
|
||
Tenente Fontes. O general contemplou-os e abençoou-os com um olhar
|
||
aprovador...
|
||
A moça, a famosa filha do Lemos, dispôs-se a cantar. Foi ao piano,
|
||
colocou a partitura e começou. Era uma romanza italiana que ela
|
||
cantou com a perfeição e o mau gosto de uma moça bem-educada.
|
||
Acabou. Palmas gerais, mas frias, soaram.
|
||
O doutor Florêncio que ficara atrás do general, comentou:
|
||
- Tem uma bela voz esta moça. Quem é?
|
||
- É a filha do Lemos, o doutor Lemos da Higiene, respondeu o
|
||
general.
|
||
- Canta muito bem.
|
||
- Está no último ano do conservatório, observou ainda Albernaz.
|
||
Chegou a vez de Ricardo. Ele ocupou um canto da sala, agarrou o
|
||
violão, afinou-o, correu a escala; em seguida, tomou o ar trágico de
|
||
quem vai representar o Édipo-Rei e falou com voz grossa:
|
||
“Senhoritas, senhores e senhoras”. Concertou a voz e continuou: “Vou
|
||
cantar ‘Os teus braços’, modinha de minha composição, música e
|
||
versos. É uma composição terna, decente e de uma poesia exaltada”.
|
||
Seus olhos, por aí, quase lhe saíam das órbitas. Emendou: “Espero
|
||
que nenhum ruído se ouça, porque senão a inspiração se evola. É o
|
||
violão instrumento muito... mui... to ‘dê-li-cádo’. Bem”.
|
||
A atenção era geral. Deu começo. Principiou brando, gemebundo, macio
|
||
e longo, como um soluço de onda; depois, houve uma parte rápida,
|
||
saltitante, em que o violão estalava. Alternando um andamento e
|
||
outro, a modinha acabou.
|
||
Aquilo tinha ido ao fundo de todos, tinha acudido ao sonho das moças
|
||
e aos desejos dos homens. As palmas foram ininterruptas. O general
|
||
abraçou-o, Genelicio levantou-se e deu-lhe a mão, Quinota, no seu
|
||
imaculado vestido de noiva, também.
|
||
Para fugir aos cumprimentos, Ricardo correu à sala de jantar. No
|
||
corredor chamavam-no: “Senhor Ricardo, Senhor Ricardo!” Voltou-se.
|
||
“Que ordena minha senhora?” Era uma moça que lhe pedia uma cópia da
|
||
modinha.
|
||
- Não se esqueça, dizia ela com meiguice, não se esqueça. Gosto
|
||
tanto das suas modinhas... São tão ternas, tão delicadas... Olhe: dê
|
||
aqui a Ismênia para me entregar.
|
||
A noiva de Cavalcânti aproximava-se e, ouvindo falar em seu nome,
|
||
perguntou:
|
||
- Que é, Dulce?
|
||
A outra explicou-lhe. Ela aceitou a incumbência e, por sua vez,
|
||
perguntou a Ricardo com a sua voz dolente:
|
||
- “Seu” Ricardo, quando é que o senhor pretende estar com Dona
|
||
Adelaide?
|
||
- Depois de amanhã, espero eu.
|
||
- Vai lá?
|
||
- Vou.
|
||
- Pois então diga-lhe que me escreva. Eu queria tanto receber uma
|
||
carta...
|
||
E limpou os olhos furtivamente, com o seu pequenino lenço rendado.
|
||
III
|
||
GOLIAS
|
||
No sábado da semana seguinte àquela em que a filha do general
|
||
recebera como marido o grave e giboso Genelício, glória e orgulho do
|
||
nosso funcionalismo público, Olga casara-se. A cerimônia correra com
|
||
a pompa e a riqueza acostumada em pessoas de sua camada. Houve uns
|
||
arremedos parisienses de corbeille de noiva e outros pequenos
|
||
detalhes chics, que não a aborreceram, mas que não a encheram lá de
|
||
satisfação maior que as noivas comuns. Talvez nem mesmo essa ela
|
||
tivesse.
|
||
Não foi para a igreja em virtude de uma determinação certa de sua
|
||
vontade. Continuava a não encontrar dentro de si motivo para aquele
|
||
ato, mas, aparentemente, nenhuma vontade estranha à sua influíra
|
||
para isso. O marido é que estava contente. Não seria muito com a
|
||
noiva, mas com a volta que a sua vida ia tomar. Ficando rico e sendo
|
||
médico, cheio de talento nas notas e recompensas escolares, via
|
||
diante de si uma larga estrada de triunfos nas posições e na
|
||
indústria clínica. Não tinha fortuna alguma, mas julgava o seu banal
|
||
título um foral de nobreza, equivalente àqueles com que os
|
||
autênticos fidalgos da Europa brunem o nascimento das filhas dos
|
||
salchicheiros yankees. Apesar de ser seu pai um importante
|
||
fazendeiro por aí, em algum lugar deste Brasil, o sogro lhe dera
|
||
tudo e tudo ele aceitara sem pejo, com o desprezo de um duque, duque
|
||
de plenamentes e medalhas, a receber homenagens de um vilão que não
|
||
roçou os bancos de uma “academia”.
|
||
Julgava que a noiva o aceitara pelo seu maravilhoso título, o
|
||
pergaminho; é verdade que foi, não tanto pelo título, mas pela sua
|
||
simulação de inteligência, de amor à ciência, de desmedidos sonhos
|
||
de sábio. Tal imagem que dele fizera, durara instantes em Olga;
|
||
depois foi a inércia da sociedade, a sua tirania e a timidez natural
|
||
da moça em romper que a levaram ao casamento. Tanto mais que ela, de
|
||
si para si, pensava que se não fosse este, seria outro a ele igual,
|
||
e o melhor era não adiar.
|
||
Era por isso que ela não ia para a igreja, em virtude de uma
|
||
determinação certa de sua vontade, embora sem perceber o
|
||
constrangimento de um comando fora dela.
|
||
Apesar da pompa, esteve longe de ser uma noiva majestosa. Não
|
||
obstante as origens puramente européias, era pequena, muito mesmo,
|
||
ao lado do noivo, alto, ereto, com uma fisionomia irradiante de
|
||
felicidade; e, desse modo, ela desaparecia dentro do vestido, dos
|
||
véus e daqueles atavios obsoletos com que se arreiam as moças que se
|
||
vão casar. De resto, a sua beleza não era a grande beleza - aquela
|
||
que nós exigimos das noivas ricas, segundo o modelo das estampas
|
||
clássicas.
|
||
No seu rosto, nada de grego, desse grego autêntico ou de pacotilha,
|
||
ou também dessa majestade de ópera lírica. Havia nos seus traços
|
||
muita irregularidade, mas a sua fisionomia era profunda e própria.
|
||
Não só a luz dos seus grandes olhos negros, que quase cobriam toda a
|
||
cavidade orbitária, fazia fulgurar o seu rosto móbil, como a sua
|
||
pequena boca, de um desenho fino, exprimia bondade, malícia e o seu
|
||
ar geral era de reflexão e curiosidade.
|
||
Ao contrário do costume, não saíram da cidade e foram morar em casa
|
||
do antigo empreiteiro.
|
||
Quaresma não fora à festa, mandara o leitão e o peru da tradição e
|
||
escrevera uma longa carta. O sítio empolgara-o, o calor ia passar,
|
||
vinha a época das chuvas, das semeaduras, e não queria afastar-se de
|
||
suas terras. A viagem seria breve, mas mesmo assim, perdendo um dia
|
||
ou dois, era como se começasse a desertar da batalha.
|
||
O pomar estava todo limpo e já estavam preparados os canteiros da
|
||
horta. A visita de Ricardo veio distraí-lo um pouco, sem desviá-lo
|
||
contudo, dos seus afazeres agrícolas.
|
||
Passou um mês com o major, e foi um triunfo. A fama do seu nome
|
||
precedia-o, de forma que todo o município o disputava e festejava.
|
||
O seu primeiro trabalho foi ir à vila. Ficava a quatro quilômetros
|
||
adiante da casa de Quaresma e a estrada de ferro tinha uma estação
|
||
lá. Ricardo dispensou a estrada e foi a pé, pela estrada de rodagem,
|
||
se assim se pode chamar um trilho, cheio de caldeirões, que subia e
|
||
descia morros, cortava planícies e rios em toscas pontes. A vila!...
|
||
Tinha duas ruas principais: a antiga, determinada pelo velho caminho
|
||
de tropas, e a nova, cuja origem veio da ligação da velha com a
|
||
estrada de ferro. Elas se encontravam em T, sendo o braço vertical o
|
||
caminho da estação. As outras partiam delas, as casas juntavam-se
|
||
urbanamente no começo, depois iam espaçando, espaçando, até acabar
|
||
em mato, em campo. A antiga chamava-se Marechal Deodoro,
|
||
ex-Imperador; e a nova, Marechal Floriano, ex-Imperatriz. De uma das
|
||
extremidades da Rua Marechal Deodoro, partia a da Matriz, que ia ter
|
||
à igreja, ao alto de uma colina, feia e pobre no seu estilo
|
||
jesuítico. À esquerda da estação, num campo, a Praça da República, a
|
||
que ia dar uma rua mal esboçada por espaçadas casas, ficava a Câmara
|
||
Municipal.
|
||
Era um grande paralelepípedo de tijolo, cimalha, janela com sacadas
|
||
de grade de ferro, puro estilo mestre-de-obras. Compungia essa
|
||
pobreza de gosto a quem se lembrasse dos edifícios da mesma natureza
|
||
das pequenas comunas francesas e belgas da Idade Média.
|
||
Ricardo entrou num barbeiro da Rua Marechal Deodoro, Salão Rio de
|
||
Janeiro, e fez a barba. O fígaro deu-lhe informações sobre a vila e
|
||
ele se deu a conhecer. Havia certos circunstantes, um deles tomou-o
|
||
a seu cargo e daí em pouco estava relacionado.
|
||
Quando voltou para a casa do major já tinha convite para o baile do
|
||
doutor Campos, presidente da Câmara, festa que teria lugar na
|
||
quarta- feira próxima.
|
||
Chegara sábado e fora passear à vila domingo.
|
||
Tinha havido missa e o trovador assistiu a saída. A concorrência
|
||
nunca é grande na roça, mas Ricardo pôde ver algumas daquelas moças
|
||
do interior, linfáticas e tristes, ataviadinhas, cheias de laços,
|
||
descendo silenciosas a colina em que se erguia a igreja,
|
||
espalhando-se pela rua e logo entrando para as casas, onde iriam
|
||
passar uma semana de reclusão e tédio. Foi na saída da missa que lhe
|
||
apresentaram o doutor Campos.
|
||
Era o médico do lugar, morava, porém, fora, na sua fazenda, e viera
|
||
de “aranha”” com a sua filha, Nair, assistir o ofício religioso.
|
||
O trovador e o médico estiveram um instante conversando, enquanto a
|
||
filha, muito magra, pálida, com uns longos braços descarnados,
|
||
olhava com um vexame fingido o solo poeirento da rua. Quando eles
|
||
partiram, ainda Ricardo considerou um pouco aquele rebento dos ares
|
||
livres do Brasil.
|
||
À festa do doutor Campos, seguiram-se outras a que Ricardo deu a
|
||
honra de sua presença e alegria da sua voz. Quaresma não o
|
||
acompanhava, mas gozava a sua vitória. Se bem que o major tivesse
|
||
abandonado o violão, ainda continuava a prezar aquele instrumento
|
||
essencialmente nacional. As conseqüências desastrosas do seu
|
||
requerimento em nada tinham abalado as suas convicções patrióticas.
|
||
Continuavam as suas idéias profundamente arraigadas, tão-somente ele
|
||
as escondia, para não sofrer com a incompreensão e maldade dos
|
||
homens.
|
||
Gozava, portanto a fulminante vitória de Ricardo, que indicava bem
|
||
naquela população a existência de um resíduo forte da nossa
|
||
nacionalidade a resistir às invasões das modas e gostos
|
||
estrangeiros.
|
||
Ricardo recebia todas as honras, todos os favores, por parte de
|
||
todos os partidos. O doutor Campos, presidente da Câmara, era quem
|
||
mais o cumulava de homenagens. Naquela manhã até esperava um dos
|
||
cavalos do edil, para dar um passeio ao Carico; e, esperando, foi
|
||
dizendo a Quaresma, que ainda não tinha partido para o eito:
|
||
- Major, foi uma boa idéia vir para a roça. Vive-se bem e pode-se
|
||
subir...
|
||
- Não tenho nenhum desejo disso. Você sabe como me são estranhas
|
||
todas essas coisas.
|
||
- Sei... É... Não digo que se peça, mas, quando nos oferecem, não
|
||
devemos rejeitar, não acha?
|
||
- Conforme, meu caro Ricardo. Eu não podia aceitar encargo de
|
||
comandar uma esquadra.
|
||
- Até aí não vou. Olhe, major: eu gosto muito de violão, mesmo
|
||
dedico a minha vida ao seu levantamento moral e intelectual,
|
||
entretanto, se amanhã o presidente dissesse: “Seu Ricardo, você vai
|
||
ser deputado”, o senhor pensa que eu não aceitava, sabendo
|
||
perfeitamente que não podia mais desferir os trenos do instrumento?
|
||
Ora se não! Não se deve perder vaza, major.
|
||
- Cada um tem as suas teorias.
|
||
- Decerto. Outra coisa, major: conhece o doutor Campos?
|
||
- De nome.
|
||
- Sabe que ele é presidente da Câmara?
|
||
Quaresma olhou um instante para Ricardo com uma ligeira
|
||
desconfiança. O menestrel não notou o gesto do amigo e emendou:
|
||
- Mora daqui a uma légua. Já lhe toquei em casa e hoje vou a cavalo
|
||
passear com ele.
|
||
- Fazes bem.
|
||
- Ele quer conhecê-lo. Posso trazê-lo aqui?
|
||
- Podes.
|
||
Um camarada do doutor Campos, neste instante, entrava pela porteira
|
||
trazendo o cavalo prometido. Ricardo montou e Quaresma seguiu para a
|
||
roça ao encontro dos seus dois empregados. Eram agora dois, pois,
|
||
além do Anastácio, que não era bem um empregado, mas agregado,
|
||
admitira o Felizardo.
|
||
Era manhã de verão, mas as chuvas continuadas dos dias anteriores
|
||
tinham atenuado a temperatura.
|
||
Havia uma grande profusão de luz e os ares estavam doces. Quaresma
|
||
foi caminhando por entre aquele rumor de vida, rumor que vinha do
|
||
farfalhar do mato e do piar das aves e pássaros. Esvoaçavam tiês
|
||
vermelhos, bandos de coleiros; anuns voavam e punham pequenas
|
||
manchas negras no verdor das árvores. Até as flores, essas tristes
|
||
flores dos nossos campos, no momento, parece que tinham saído à luz,
|
||
não somente para a fecundação vegetal mas também para a beleza.
|
||
Quaresma e seus empregados trabalhavam agora longe, faziam um
|
||
roçado, e fora para auxiliar esse serviço que contratou o Felizardo.
|
||
Era este um camarada magro, alto, de longos braços, longas pernas,
|
||
como um símio. Tinha a face cor de cobre, a barba rala e, sob uma
|
||
aparência de fraqueza muscular, não havia ninguém mais valente que
|
||
ele a roçar. Com isto era um tagarela incansável. De manhã, quando
|
||
chegava, aí pelas seis horas, já sabia todas as intriguinhas do
|
||
município.
|
||
O roçado tinha por fim ganhar terreno ao mato, no lado do norte do
|
||
sítio, que o capão invadira. Obtido ele, o major plantaria obra de
|
||
meio alqueire ou pouco mais de milho, e nos intervalos batatas
|
||
inglesas, cultura nova em que depositava grandes esperanças. Já se
|
||
fizera a derrubada e o aceiro estava aberto; Quaresma, porém, não
|
||
lhe quisera atear fogo. Evitava assim calcinar o terreno, eliminando
|
||
dele os princípios voláteis ao fogo. Agora o seu trabalho era
|
||
separar os paus mais grossos, para aproveitar como lenha; os galhos
|
||
miúdos e folhas, ele removia para longe, onde então queimaria em
|
||
coivaras pequenas.
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||
Isso levava tempo, custava tombos ao seu corpo mal habituado aos
|
||
cipós e tocos; mas prometia dar um rendimento maior ao plantio.
|
||
Durante o trabalho, Felizardo ia contando as suas novidades para se
|
||
distrair. Há quem cante, ele falava e pouco se incomodava que lhe
|
||
dessem ou não atenção.
|
||
- Essa gente anda acesa por aí, disse Felizardo logo que o major
|
||
chegou.
|
||
Certas vezes Quaresma fazia-lhe perguntas, atendia-lhe a conversa,
|
||
raras não. Anastácio era silencioso e grave. Nada dizia: trabalhava
|
||
e, de quando em quando, parava, considerava, numa postura hierática
|
||
de uma pintura mural tebana. O major perguntou ao Felizardo:
|
||
- Que é que há, Felizardo?
|
||
O camarada descansou o grosso tronco de camará no monte, limpou o
|
||
suor com os dedos e respondeu com a sua fala branda e chiante:
|
||
- Negócio de política... “Seu” Tenente Antonino quase briga ontem
|
||
com “Seu dotô Campo”.
|
||
- Onde?
|
||
- Na estação.
|
||
- Por quê?
|
||
- Negócio de partido. Pelo que ouvi: “Seu” Tenente Antonino é pelo
|
||
“governadô” e “Seu dotô Campo” é pelo “senadô”... Um “sarcero”,
|
||
patrão!
|
||
- E você, por quem é?
|
||
Felizardo não respondeu logo. Apanhou a foice e acabou de cortar um
|
||
galho que enleava o tronco a remover. Anastácio estava de pé e
|
||
considerou um instante a figura do companheiro palrador. Respondeu
|
||
afinal:
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||
- Eu! Sei lá... Urubu pelado não se mete no meio dos coroados. Isso
|
||
é bom pro “sinhô”.
|
||
- Eu sou como você, Felizardo.
|
||
- Quem me dera, meu “sinhô”. Inda “trasantonte” ouvi “dizê” que o
|
||
patrão é amigo do “marechá”.
|
||
Afastou-se com o pau; e, quando voltou Quaresma indagou assustado:
|
||
- Quem disse?
|
||
- Não sei, não “sinhô”. Ouvi a modo de “dizê” lá na venda do
|
||
espanhol, tanto assim que “dotô Campo tá” inchado que nem sapo com a
|
||
sua amizade.
|
||
- Mas é falso, Felizardo. Eu não sou amigo coisa alguma...
|
||
Conheci-o... E nunca disse isso aqui a ninguém... Qual amigo!
|
||
- “Quá!” fez Felizardo com um riso largo e duro. O patrão “tá” é
|
||
varrendo a testada.
|
||
Apesar de todo o esforço de Quaresma, não houve meio de tirar
|
||
daquela cabeça infantil a idéia de que ele fosse amigo do Marechal
|
||
Floriano. “Conheci-o no meu emprego” - dizia o major; Felizardo
|
||
sorria grosso e por uma vez dizia: “ ‘Quá!’ o patrão é fino que nem cobra”.
|
||
Tal teimosia não deixou de impressionar Quaresma. Que queria dizer
|
||
aquilo? Demais, as palavras de Ricardo, as suas insinuações pela
|
||
manhã... Ele tinha o trovador em conta de homem leal e amigo fiel,
|
||
incapaz de lhe estar armando laços para passar maus momentos; os
|
||
entusiasmos dele, entretanto, junto à vontade de ser bom amigo,
|
||
podiam iludi-lo e fazê-lo instrumento de algum perverso. Quaresma
|
||
ficou um instante pensativo, deixando de remover os galhos cortados;
|
||
em breve, porém, esqueceu-se e a preocupação dissipou-se. À tarde,
|
||
quando foi jantar, já nem mais se lembrava da conversa e a refeição
|
||
correu natural, nem muito alegre, nem muito triste, mas sem sombra
|
||
alguma de cogitações por parte dele.
|
||
Dona Adelaide, sempre com a sua matinée creme e saia preta,
|
||
sentava-se à cabeceira; Quaresma à direita e à esquerda, Ricardo.
|
||
Era a velha quem sempre puxava a língua do trovador.
|
||
- Gostou muito do passeio, Senhor Ricardo?
|
||
Não havia meio dela dizer “seu”. A sua educação de “senhora” de
|
||
outros tempos, não lhe permitia usar esse plebeísmo generalizado.
|
||
Vira os pais, gente ainda fortemente portugueses, dizerem “senhor” e
|
||
continuava a dizer, sem fingimento, naturalmente.
|
||
- Muito. Que lugar! Uma catadupa... Que maravilha! Aqui, na roça, é
|
||
que se tem inspiração.
|
||
E ele tomava aquela atitude de arroubo: uma fisionomia de máscara de
|
||
trágico grego e uma voz cavernosa que rolava como uma trovoada
|
||
abafada.
|
||
- Tens composto muito, Ricardo? indagou Quaresma.
|
||
- Hoje acabei uma modinha.
|
||
- Como se chama? indagou Dona Adelaide.
|
||
- “Os Lábios da Carola”.
|
||
- Bonito! Já fez a música?
|
||
Era ainda a irmã de Quaresma a perguntar, Ricardo levava agora o
|
||
garfo à boca; deixou-o suspenso entre os lábios e o prato e
|
||
respondeu com toda a convicção:
|
||
- A música, minha senhora, é a primeira coisa que faço.
|
||
- Hás de no-la cantar logo.
|
||
- Pois não, major.
|
||
Após o jantar, Quaresma e Coração dos Outros saíram a passear no
|
||
sítio. Fora essa a única concessão que ao amigo fizera Policarpo, no
|
||
tocante ao regime de seus trabalhos agrícolas. Levava sempre o
|
||
pedaço de pão, que esfarelava em migalhas no galinheiro, para ver a
|
||
atroz disputa entre as aves. Acabando, ficava um instante a
|
||
considerar aquelas vidas, criadas, mantidas e protegidas para
|
||
sustento da sua. Sorria para os frangos, agarrava os pintinhos,
|
||
ainda implumes, muito vivos e ávidos, e demorava- se a apreciar a
|
||
estupidez do peru, imponente, fazendo roda, a dar estouros
|
||
presunçosos. Em seguida ia ao chiqueiro; assistia Anastácio dar a
|
||
ração, despejando-a nos cochos. O enorme cevado de grandes orelhas
|
||
pendentes levantava-se dificilmente, e solenemente vinha mergulhar a
|
||
cabeça na caldeira; noutro compartimento os bacorinhos grunhiam e
|
||
grunhindo vinham com a mãe chafurdar-se na comida.
|
||
A avidez daqueles animais era deveras repugnante, mas os seus olhos
|
||
tinham uma longa doçura bem humana que os fazia simpáticos.
|
||
Ricardo apreciava pouco aquelas formas inferiores de vida, mas
|
||
Quaresma ficava minutos esquecido a contemplá-las numa demorada
|
||
interrogação muda. Sentavam-se a um tronco de árvore, e Quaresma
|
||
olhava o céu alto, enquanto Coração dos Outros contava qualquer
|
||
ia.
|
||
A tarde ia adiantada. A terra já começava a amolecer, pelo fim
|
||
daquele beijo ardente e demorado do sol. Os bambus suspiravam; as
|
||
cigarras ciciavam; as rolas gemiam amorosamente. Ouvindo passos, o
|
||
major voltou-se. Padrinho! Olga!
|
||
Mal se viram, abraçaram-se, e quando se separaram ficaram ainda a
|
||
olhar um para o outro, com as mãos presas. E vieram aquelas
|
||
estúpidas e tocantes frases dos encontros satisfeitos: Quando
|
||
chegaste? Não esperava... É longe... Ricardo olhava embevecido com a
|
||
ternura dos dois; Anastácio tirara o chapéu e olhava a “sinhazinha”,
|
||
com o seu terno e vazio olhar de africano.
|
||
Passada a emoção, a moça se debruçou sobre o chiqueiro, depois
|
||
passou a vista pelos quatro pontos e Quaresma perguntou:
|
||
- Quedê teu marido?
|
||
- O doutor?... Está lá dentro.
|
||
O marido tinha resistido muito em acompanhá-la até ali. Não lhe
|
||
parecia bem aquela intimidade com um sujeito sem título, sem posição
|
||
brilhante e sem fortuna. Ele não compreendia como o seu sogro,
|
||
apesar de tudo um homem rico, de outra esfera, tinha podido manter e
|
||
estreitar relações com um pequeno empregado de uma repartição
|
||
secundária, e até fazê- lo seu compadre! Que o contrário se desse,
|
||
era justo; mas como estava a coisa parecia que abalava toda a
|
||
hierarquia da sociedade nacional. Mas, em definitivo, quando Dona
|
||
Adelaide o recebeu cheia de um imenso respeito, de uma particular
|
||
consideração, ele ficou desarmado e todas as suas pequenas vaidades
|
||
foram tocadas e satisfeitas.
|
||
Dona Adelaide, mulher velha, do tempo em que o Império armava essa
|
||
nobreza escolar, possuía em si uma particular reverência, um culto
|
||
pelo doutorado; e não lhe foi, pois, difícil demonstrá-lo quando se
|
||
viu diante do doutor Armando Borges, de cujas notas e prêmios ela
|
||
tinha exata notícia.
|
||
Quaresma mesmo recebeu-o com as maiores marcas de admiração e o
|
||
doutor, gozando aquele seu sobre-humano prestígio, ia conversando
|
||
pausadamente, sentenciosamente, dogmaticamente; e, à proporção que
|
||
conversava, talvez para que o efeito não se dissipasse, virava com a
|
||
mão direita o grande anelão “simbólico”, o talismã, que cobria a
|
||
falange do dedo indicador esquerdo, ao jeito de marquise.
|
||
Conversaram muito. O jovem par contou a agitação política do Rio, a
|
||
revolta da fortaleza de Santa Cruz; Dona Adelaide a epopéia da
|
||
mudança, móveis quebrados, objetos partidos. Pela meia-noite todos
|
||
foram dormir com uma alegria particular, enquanto os sapos
|
||
levantavam no riacho defronte o seu grave hino à transcendente
|
||
beleza do céu negro, profundo e estrelado.
|
||
Acordaram cedo. Quaresma não foi logo para o trabalho. Tomou café e
|
||
esteve conversando com o doutor. O correio chegou e trouxe-lhe um
|
||
jornal. Rasgou a cinta e leu o título. Era o O Município, órgão
|
||
local, hebdomadário, filiado ao partido situacionista. O doutor se
|
||
havia afastado; ele aproveitou a ocasião para ler o jornaleco. Pôs o
|
||
pince-nez, recostouse na cadeira de balanço e desdobrou o jornal.
|
||
Estava na varanda; o terral soprava nos bambus que se inclinavam
|
||
molemente. Começou a leitura. O artigo de fundo intitulava-se
|
||
“Intrusos” e consistia em uma tremenda descompostura aos não ascidos
|
||
no lugar que moravam nele - “verdadeiros estrangeiros que se vinham
|
||
intrometer na vida particular e política da família curuzuense,
|
||
perturbando-lhe a paz e a tranqüilidade”.
|
||
Que diabo queria dizer aquilo? Ia deitar fora o jornaleco, quando
|
||
lhe pareceu ler seu nome entre versos. Procurou o lugar e deu com
|
||
estas quadrinhas:
|
||
POLÍTICA DE CURUZU
|
||
Quaresma, meu bem, Quaresma!
|
||
Quaresma do coração!
|
||
Deixa as batatas em paz,
|
||
Deixa em paz o feijão.
|
||
Jeito não tens para isso
|
||
Quaresma, meu cocumbi!
|
||
Volta à mania antiga
|
||
De redigir em tupi.
|
||
OLHO VIVO.
|
||
O major ficou estuporado. Que vinha ser aquilo? Por quê? Quem era?
|
||
Não atinava, não achava o motivo e o fundo de semelhante ataque. A
|
||
irmã aproximara-se acompanhada da afilhada. Quaresma estendeu-lhe o
|
||
jornal com o braço tremendo: “Lê isto, Adelaide”.
|
||
A velha senhora viu logo a perturbação do irmão e leu com pressa e
|
||
solicitude. Ela tinha aquela ampla maternidade das solteironas; pois
|
||
parece que a falta de filhos reforça e alarga o interesse da mulher
|
||
pelas dores dos outros. Enquanto ela lia, Quaresma dizia: mas que
|
||
fiz eu? que tenho com política? E coçava os cabelos já bastante
|
||
encanecidos.
|
||
Dona Adelaide disse então docemente:
|
||
- Sossega, Policarpo. Por isso só?... Ora!
|
||
A afilhada leu também os versos e perguntou ao padrinho:
|
||
- O senhor se meteu algum dia nessa política daqui?
|
||
- Eu nunca!... Vou até declarar que...
|
||
- Está doido! exclamaram as duas mulheres a um tempo, ajuntando a
|
||
irmã:
|
||
- Isto seria uma covardia... Uma satisfação... Nunca!
|
||
O doutor e Ricardo chegavam de fora e encontraram os três nessas
|
||
considerações. Notaram a alteração de Quaresma. Estava pálido, tinha
|
||
os olhos úmidos e coçava sucessivamente a cabeça.
|
||
- Que há, major? indagou o troveiro.
|
||
As senhoras explicaram o caso e deram-lhe as quadrinhas a ler.
|
||
Ricardo depois contou o que ouvira na vila. Acreditavam todos que o
|
||
major viera para ali no intuito de fazer política, tanto assim que
|
||
dava esmolas, deixava o povo fazer lenha no seu mato, distribuía
|
||
remédios homeopáticos... O Antonino afirmara que havia de
|
||
desmascarar semelhante tartufo.
|
||
- E não desmentiste? perguntou Quaresma.
|
||
Ricardo afirmou que sim, mas o escrivão não quisera acreditar nele e
|
||
reiterara os seus propósitos de ataque.
|
||
O major ficou profundamente impressionado com tudo; mas, de acordo
|
||
com seu gênio, incubou nos primeiros tempos a impressão, e, enquanto
|
||
estiveram com ele os seus amigos, não demonstrou preocupação.
|
||
Olga e o marido passaram no “Sossego” cerca de quinze dias. O
|
||
marido, ao fim de uma semana, já parecia cansado. Os passeios não
|
||
eram muitos. Em geral, os nossos lugarejos são de uma grande pobreza
|
||
do pitoresco; há um ou dois lugares célebres, assim como na Europa
|
||
cada aldeia tem a sua curiosidade histórica.
|
||
Em Curuzu, o passeio afamado era o Carico, uma cachoeira distante
|
||
duas léguas da casa de Quaresma, para as bandas das montanhas que
|
||
lhe barravam o horizonte fronteiro. O doutor Campos já travara
|
||
relações com o major e, graças a ele, houve cavalos e silhão que
|
||
também permitissem à moça ir à cachoeira.
|
||
Foram de manhã, o presidente da Câmara, o doutor, sua mulher e a
|
||
filha de Campos. O lugar não era feio. Uma pequena cachoeira, de uns
|
||
quinze metros de altura, despenhava-se em três partes, pelo flanco
|
||
da montanha abaixo. A água estremecia na queda, como que se
|
||
enrodilhava e vinha pulverizar-se numa grande bacia de pedra,
|
||
mugindo e roncando. Havia muita verdura e como que toda a cascata
|
||
vivia sob uma abóbada de árvores. O sol coava-se dificilmente e
|
||
vinha faiscar sobre a água ou sobre as pedras em pequenas manchas,
|
||
redondas ou oblongas. Os periquitos, de um verde mais claro,
|
||
pousados nos galhos eram como as incrustações daquele salão
|
||
fantástico.
|
||
Olga pôde ver tudo isso bem à vontade, andando de um para outro
|
||
lado, porque a filha do presidente era de um silêncio de túmulo e o
|
||
pai desta tomava com o seu marido informações sobre novidades
|
||
medicinais: Como se cura hoje erisipela? Ainda se usa muito o
|
||
tártaro emético?
|
||
O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de
|
||
cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre.
|
||
Educada na cidade, ela tinha dos roceiros idéia de que eram felizes,
|
||
saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, por que as
|
||
casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquele
|
||
sapê sinistro e aquele “sopapo” que deixava ver a trama de varas,
|
||
como o esqueleto de um doente. Por que, ao redor dessas casas, não
|
||
havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho
|
||
de horas? E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma
|
||
cabra, um carneiro. Por quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não
|
||
era mais animador. Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente
|
||
e a horta suculenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ela
|
||
não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. Não podia ser
|
||
preguiça só ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o
|
||
homem tem sempre energia para trabalhar. As populações mais acusadas
|
||
de preguiça, trabalham relativamente. Na África, na Índia, na
|
||
Cochinchina, em toda parte, os casais, as famílias, as tribos,
|
||
plantam um pouco, algumas coisas para eles. Seria a terra? Que
|
||
seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu
|
||
desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles
|
||
párias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome,
|
||
sorumbáticos!...
|
||
Pensou em ser homem. Se o fosse passaria ali e em outras localidades
|
||
meses e anos, indagaria, observaria e com certeza havia de encontrar
|
||
o motivo e o remédio. Aquilo era uma situação do camponês da Idade
|
||
Média e começo da nossa: era o famoso animal de La Bruyère que tinha
|
||
face humana e voz articulada...
|
||
Como no dia seguinte fosse passear ao roçado do padrinho, aproveitou
|
||
a ocasião para interrogar a respeito o tagarela Felizardo. A faina
|
||
do roçado ia quase no fim; o grande trato da terra estava quase
|
||
inteiramente limpo e subia um pouco em ladeira a colina que formava
|
||
a lombada do sítio.
|
||
Olga encontrou o camarada cá embaixo, cortando a machado as madeiras
|
||
mais grossas; Anastácio estava no alto, na orla do mato, juntando, a
|
||
ancinho, as folhas caídas. Ela lhe falou.
|
||
- Bons dias, “sá dona”.
|
||
- Então trabalha-se muito, Felizardo?
|
||
- O que se pode.
|
||
- Estive ontem no Carico, bonito lugar... Onde é que você mora,
|
||
Felizardo?
|
||
- É doutra banda, na estrada da vila.
|
||
- É grande o sítio de você?
|
||
- Tem alguma terra, sim senhora, “sá dona”.
|
||
- Você por que não planta para você?
|
||
- “Quá sá dona!” O que é que a gente come?
|
||
- O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.
|
||
- “Sá dona tá” pensando uma coisa e a coisa é outra. Enquanto
|
||
planta cresce, e então? “Quá, sá dona”, não é assim.
|
||
Deu uma machadada; o tronco escapou: colocou-o melhor no picador e,
|
||
antes de desferir o machado, ainda disse:
|
||
- Terra não é nossa... E “frumiga”?... Nós não “tem” ferramenta...
|
||
isso é bom para italiano ou “alamão”, que governo dá tudo... Governo
|
||
não gosta de nós...
|
||
Desferiu o machado, firme, seguro; e o rugoso tronco se abriu em
|
||
duas partes, quase iguais, de um claro amarelado, onde o cerne
|
||
escuro começava a aparecer.
|
||
Ela voltou querendo afastar do espírito aquele desacordo que o
|
||
camarada indicara, mas não pôde. Era certo. Pela primeira vez notava
|
||
que o self-help do Governo era só para os nacionais; para os outros
|
||
todos os auxílios e facilidades, não contando com a sua anterior
|
||
educação e apoio dos patrícios.
|
||
E a terra não era dele? Mas de quem era então, tanta terra
|
||
abandonada que se encontrava por aí? Ela vira até fazendas fechadas,
|
||
com as casas em ruínas... Por que esse acaparamento, esses
|
||
latifúndios inúteis e improdutivos?
|
||
A fraqueza de atenção não lhe permitiu pensar mais no problema. Foi
|
||
vindo para casa, tanto mais que era hora de jantar e a fome lhe
|
||
chegava.
|
||
Encontrou o marido e o padrinho a conversar. Aquele perdera um pouco
|
||
da sua morgue, havia mesmo ocasião em que era até natural. Quando
|
||
ela chegou, o padrinho exclamava:
|
||
- Adubos! É lá possível que um brasileiro tenha tal idéia! Pois se
|
||
temos as terras mais férteis do mundo!
|
||
- Mas se esgotam, major, observou o doutor.
|
||
Dona Adelaide, calada, seguia com atenção o crochet que estava
|
||
fazendo; Ricardo ouvia, com os olhos arregalados; e Olga
|
||
intrometeu-se na conversa:
|
||
- Que zanga é essa, padrinho?
|
||
- É teu marido que quer convencer-me que as nossas terras precisam
|
||
de adubos... Isto é até uma injúria!
|
||
- Pois fique certo, major, se eu fosse o senhor, aduziu o doutor,
|
||
ensaiava uns fosfatos...
|
||
- Decerto, major, obtemperou Ricardo. Eu, quando comecei a tocar
|
||
violão, não queria aprender música... Qual música! Qual nada! A
|
||
inspiração basta!... Hoje vejo que é preciso... É assim, resumia
|
||
ele.
|
||
Todos se entreolharam, exceto Quaresma que logo disse com toda a
|
||
força d’alma:
|
||
- Senhor doutor, o Brasil é o país mais fértil do mundo, é o mais
|
||
bem dotado e as suas terras não precisam “empréstimos” para dar
|
||
sustento ao homem. Fique certo!
|
||
- Há mais férteis, avançou o doutor.
|
||
- Onde?
|
||
- Na Europa.
|
||
- Na Europa!
|
||
- Sim, na Europa. As terras negras da Rússia, por exemplo.
|
||
O major considerou o rapaz durante algum tempo e exclamou
|
||
triunfante:
|
||
- O senhor não é patriota! Esses moços...
|
||
O jantar correu mais calmo. Ricardo fez ainda algumas considerações
|
||
sobre o violão. À noite, o menestrel cantou a sua última produção:
|
||
“Os Lábios da Carola”. Suspeitava-se que Carola fosse uma criada do
|
||
doutor Campos; mas ninguém aludiu a isso, Ouviram-no com interesse e
|
||
ele foi muito aclamado. Olga tocou no velho piano de Dona Adelaide;
|
||
e, antes das onze horas, estavam todos recolhidos.
|
||
Quaresma chegou a seu quarto, despiu-se, enfiou a camisa de dormir
|
||
e, deitado, pôs-se a ler um velho elogio das riquezas e opulências
|
||
do Brasil.
|
||
A casa estava em silêncio; do lado de fora, não havia a mínima
|
||
bulha. Os sapos tinham suspendido um instante a sua orquestra
|
||
noturna. Quaresma lia; e lembrava-se que Darwin escutava com prazer
|
||
esse concerto dos charcos. Tudo na nossa terra é extraordinário!
|
||
pensou. Da despensa, que ficava junto a seu aposento, vinha um ruído
|
||
estranho. Apurou o ouvido e prestou atenção. Os sapos recomeçaram o
|
||
seu hino. Havia vozes baixas, outras mais altas e estridentes; uma
|
||
se seguia à outra, num dado instante todas se juntaram num unisono
|
||
sustentado. Suspenderam um instante a música. O major apurou o
|
||
ouvido; o ruído continuava, Que era? Eram uns estalos tênues;
|
||
parecia que quebravam gravetos, que deixavam outros cair no chão...
|
||
Os sapos recomeçaram; o regente deu uma martelada e logo vieram os
|
||
baixos e os tenores. Demoraram muito; Quaresma pôde ler umas cinco
|
||
páginas. Os batráquios pararam; a bulha continuava. O major
|
||
levantou-se, agarrou o castiçal e foi à dependência da casa donde
|
||
partia o ruído, assim mesmo como estava, em camisa de dormir.
|
||
Abriu a porta; nada viu. la procurar nos cantos, quando sentiu uma
|
||
ferroada no peito do pé. Quase gritou. Abaixou a vela para ver
|
||
melhor e deu com uma enorme saúva agarrada com toda a fúria à sua
|
||
pele magra. Descobriu a origem da bulha. Eram formigas que, por um
|
||
buraco no assoalho, lhe tinham invadido a despensa e carregavam as
|
||
suas reservas de milho e feijão, cujos recipientes tinham sido
|
||
deixados abertos por inadvertência. O chão estava negro, e
|
||
carregadas com os grãos, elas, em pelotões cerrados, mergulhavam no
|
||
solo em busca da sua cidade subterrânea.
|
||
Quis afugentá-las. Matou uma, duas, dez, vinte, cem; mas eram
|
||
milhares e cada vez mais o exército aumentava. Veio uma, mordeu-o,
|
||
depois outra, e o foram mordendo pelas pernas, pelos pés, subindo
|
||
pelo seu corpo. Não pôde agüentar, gritou, sapateou e deixou a vela
|
||
cair.
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||
Estava no escuro. Debatia-se para encontrar a porta; achou e correu
|
||
daquele ínfimo inimigo que, talvez, nem mesmo à luz radiante do sol
|
||
o visse distintamente...
|
||
IV
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“PEÇO ENERGIA, SIGO JÁ”
|
||
Dona Adelaide, a irmã de Quaresma, tinha uns quatro anos mais que
|
||
ele. Era uma bela velha, com um corpo médio, uma tez que começava a
|
||
adquirir aquela pátina da grande velhice, uma espessa cabeleira já
|
||
inteiramente amarelada e um olhar tranqüilo, calmo e doce. Fria, sem
|
||
imaginação, de inteligência lúcida e positiva, em tudo formava um
|
||
grande contraste com o irmão; contudo, nunca houve entre eles uma
|
||
separação profunda nem tampouco uma penetração perfeita. Ela não
|
||
entendia nem procurava entender a substância do irmão, e sobre ele
|
||
em nada reagia aquele ser metódico, ordenado e organizado, de idéias
|
||
simples, médias e claras.
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||
Ela já atingira aos cinqüenta e ele para lá marchava; mas ambos
|
||
tinham ar saudável, poucos achaques, e prometiam ainda muita vida. A
|
||
existência calma, doce e regrada que tinham levado até ali,
|
||
concorrera muito para a boa saúde de ambos. Quaresma incubou as suas
|
||
manias até depois dos quarenta e ela nunca tivera qualquer.
|
||
Para Dona Adelaide, a vida era coisa simples, era viver, isto é, ter
|
||
uma casa, jantar e almoço, vestuário, tudo modesto, médio. Não tinha
|
||
ambições, paixões, desejos. Moça, não sonhara príncipes, belezas,
|
||
triunfos, nem mesmo um marido. Se não casou foi porque não sentiu
|
||
necessidade disso; o sexo não lhe pesava e de alma e corpo ela
|
||
sempre se sentiu completa.
|
||
O seu aspecto tranqüilo e o sossego dos seus olhos verdes, de um
|
||
brilho lunar de esmeralda, emolduravam e realçavam naquele interior
|
||
familiar a agitação e a inquietude, o alanceado do irmão.
|
||
Não se vá supor que Quaresma andasse transtornado como um doido.
|
||
Felizmente não. Na aparência até poder-se-ia imaginar que nada
|
||
conturbava sua alma; porém, se mais vagarosamente se examinassem os
|
||
seus hábitos, gestos e atitudes, logo se havia de ver que o sossego
|
||
e a placidez não moravam no seu pensamento.
|
||
Ocasiões havia em que ficava a olhar, durante minutos seguidos, ao
|
||
longe o horizonte, perdido em cisma; outras, isso quando no trabalho
|
||
da roça, em que suspendia todos os movimentos, fincava o olhar rio
|
||
chão, demorava-se assim um instante, coçando uma mão com a outra,
|
||
dava depois um muxoxo, continuava o trabalho; e mesmo momentos
|
||
surgiam em que não reprimia uma exclamação ou uma frase.
|
||
Anastácio em tais instantes, olhava por baixo dos olhos o patrão. O
|
||
antigo escravo não os sabia mais fixar, e nada dizia; Felizardo
|
||
continuava a contar a fuga da filha do Custódio com o Manduca da
|
||
venda; e o trabalho marchava.
|
||
Inútil dizer que a irmã não fazia reparo nisso, mesmo porque, a não
|
||
ser no jantar e nas primeiras horas do dia, eles viviam separados.
|
||
Quaresma na roça, nas plantações, e ela superintendendo o serviço
|
||
doméstico.
|
||
As outras pessoas de suas relações não podiam também notar as
|
||
preocupações absorventes do major, pelo simples motivo de que
|
||
estavam longe.
|
||
Ricardo havia seis meses que não lhe visitava e da afilhada e do
|
||
compadre as últimas cartas que recebera datavam de uma semana, não
|
||
vendo aquela há tanto tempo, quanto ao trovador, e aquele desde
|
||
quase um ano, isto é, o tempo em que estava no “Sossego”.
|
||
Durante esse tempo, Quaresma não cessou de se interessar pelo
|
||
aproveitamento de suas terras. Os seus hábitos não foram mudados e a
|
||
sua atividade continuava sempre a mesma. É verdade que deixara de
|
||
parte os instrumentos de meteorologia.
|
||
O higrômetro, o barômetro e os outros companheiros não eram mais
|
||
consultados e as observações registradas num caderno. Dera-se mal
|
||
com eles. Fosse inexperiência e ignorância das bases teóricas deles,
|
||
fosse porque fosse, o certo é que toda a previsão que Quaresma fazia
|
||
baseado em combinações dos seus dados, saíam erradas. Se esperava
|
||
tempo seguro, lá vinha chuva; se esperava chuva, lá vinha seca.
|
||
Assim perdeu muita semente e Felizardo mesmo sorria dos seus
|
||
aparelhos, com aquele grosso e cavernoso sorriso de troglodita:
|
||
- “Quá” patrão! Isso de chuva vem quando Deus “qué”.
|
||
O barômetro aneróide continuava a um canto a dançar o seu ponteiro
|
||
sem ser percebido; o termômetro de máxima e mínima, legítimo
|
||
Casella, jazia dependurado na varanda sem receber um olhar amigo; a
|
||
caçamba do pluviômetro estava no galinheiro e servia de bebedouro às
|
||
aves; só o anemômetro continuava teimosamente a rodar, a rodar, já
|
||
sem fio, no alto do mastro, como se protestasse contra aquele
|
||
desprezo pela ciência que Quaresma representava.
|
||
Quaresma vivia assim, sentindo que a campanha que lhe tinham movido,
|
||
embora tendo deixado de ser pública, lavrava ocultamente. Havia no
|
||
seu espírito e no seu caráter uma vontade de acabá-la de vez, mas
|
||
como? Se não o acusavam, se não articulavam nada contra ele
|
||
diretamente? Era um combate com sombras, com aparências, que seria
|
||
ridículo aceitar.
|
||
De resto, a situação geral que o cercava, aquela miséria da
|
||
população campestre que nunca suspeitara, aquele abandono de terras
|
||
à improdutividade, encaminhavam sua alma de patriota meditativo a
|
||
preocupações angustiosas.
|
||
Via o major com tristeza não existir naquela gente humilde
|
||
sentimento de solidariedade, de apoio mútuo. Não se associavam para
|
||
coisa alguma e viviam separados, isolados, em famílias geralmente
|
||
irregulares, sem sentir a necessidade de união para o trabalho da
|
||
terra. Entretanto, tinham bem perto o exemplo dos portugueses que,
|
||
unidos aos seis e mais, conseguiam em sociedade cultivar a arado
|
||
roças de certa importância, lucrar e viver. Mesmo o velho costume do
|
||
“moitirão” já se havia apagado.
|
||
Como remediar isso?
|
||
Quaresma desesperava...
|
||
A tal afirmação de falta de braços pareceu-lhe uma afirmação de
|
||
má-fé ou estúpida, e estúpido ou de má-fé era o Governo que os
|
||
andava importando aos milhares, sem se preocupar com os que já
|
||
existiam. Era como se no campo em que pastavam mal meia dúzia de
|
||
cabeças de gado, fossem introduzidas mais três, para aumentar o
|
||
estrume!...
|
||
Pelo seu caso, ele via bem as dificuldades, os óbices de toda sorte
|
||
que havia para fazer a terra produtiva e remunerada. Um fato veio
|
||
mostrar-lhe com eloqüência um dos aspectos da questão. Vencendo a
|
||
erva-de-passarinho, os maus-tratos e o abandono de tantos anos, os
|
||
abacateiros de suas terras conseguiram frutificar, fracamente é
|
||
verdade, mas de forma superior às necessidades de sua casa.
|
||
A sua alegria foi grande. Pela primeira vez, ia passar-lhe pelas
|
||
mãos dinheiro que lhe dava a terra, sempre mãe e sempre virgem.
|
||
Tratou de vender, mas como? a quem? No lugar havia um ou outro que
|
||
os queria comprar por preços ínfimos. Com decisão foi ao Rio
|
||
procurar comprador. Andou de porta em porta. Não queriam, eram
|
||
muitos. Ensinaram-lhe que procurasse um tal Senhor Azevedo no
|
||
Mercado, o rei das frutas. Lá foi.
|
||
- Abacates! Ora! Tenho muitos... Estão muito baratos!
|
||
- Entretanto, disse Quaresma, ainda hoje indaguei em uma
|
||
confeitaria e pediram-me pela dúzia cinco mil-réis.
|
||
- Em porção, o senhor sabe que... É isso... Enfim, se quer mande-os...
|
||
Depois, tilintou a pesada corrente de ouro, pôs uma das mãos na cava
|
||
do colete e quase de costas para o major:
|
||
- É preciso vê-los... O tamanho influi...
|
||
Quaresma os mandou e, quando lhe veio o dinheiro, teve a satisfação
|
||
orgulhosa de quem acaba de ganhar uma grande batalha imortal. Aca-
|
||
riciou uma por uma aquelas notas encardidas, leu-lhes bem o número e
|
||
a estampa, arrumou-as todas uma ao lado da outra sobre uma mesa e
|
||
muito tempo levou sem ânimo de trocá-las.
|
||
Para avaliar o lucro, descontou o frete, de estrada de ferro e
|
||
carroça, o custo dos caixões, o salário dos auxiliares e, após esse
|
||
cálculo que não era laborioso, teve a evidência de que ganhara mil e
|
||
quinhentos réis, nem mais nem menos. O Senhor Azevedo tinha-lhe pago
|
||
pelo cento a quantia com que se compra uma dúzia.
|
||
Assim mesmo o seu orgulho não diminuiu e ele viu naquele ridículo
|
||
lucro objeto para maior contentamento do que se recebesse um
|
||
avultado ordenado.
|
||
Foi, portanto, com redobrada atividade que se pôs ao trabalho. Para
|
||
o ano, o lucro seria maior. Tratava-se agora de limpar as fruteiras.
|
||
Anastácio e Felizardo continuavam ocupados nas grandes plantações;
|
||
contratou um outro empregado para ajudá-lo no tratamento das velhas
|
||
árvores frutíferas.
|
||
Foi, pois, com o Mané Candeeiro que ele se pôs a serrar os galhos
|
||
das árvores, os galhos mortos e aqueles em que a erva daninha
|
||
segurava as suas raízes. Era árduo e difícil o trabalho. Tinham às
|
||
vezes que subir às grimpas para a extirpação do galho atingido; os
|
||
espinhos rasgavam as roupas e feriam as carnes; e em muitas ocasiões
|
||
estiveram em risco de vir ao chão serrote e Quaresma ou o camarada.
|
||
Mané Candeeiro falava pouco, a não ser que se tratasse de coisas de
|
||
caça; mas cantava que nem passarinho. Estava a serrar, estava a
|
||
cantar trovas roceiras, ingênuas, onde com surpresa o major não via
|
||
entrar a fauna, a flora locais, os costumes das profissões roceiras.
|
||
Eram vaporosamente sensuais e muito ternas, melosas até; por acaso
|
||
lá vinha uma em que um pássaro local entrava; então o major
|
||
escutava:
|
||
Eu vou dar a despedida
|
||
Como deu o bacurau,
|
||
Uma perna no caminho
|
||
Outra no galho de pau.
|
||
Este bacurau que entrava aí satisfazia particularmente às aspirações
|
||
de Quaresma. A observação popular já começava a interessar-se pelo
|
||
espetáculo ambiente, já se emocionava com ele e a nossa raça
|
||
deitava, portanto, raízes na grande terra que habitava. Ele a copiou
|
||
e mandou ao velho poeta de São Cristóvão. Felizardo dizia que Mané
|
||
Candeeiro era um mentiroso, pois todas aquelas caçadas de caitetus,
|
||
jacus, onças eram patranhas; mas, respeitava o seu talento poético,
|
||
principalmente no desafio: o moleque é bom!
|
||
Ele era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e
|
||
fortes, um tanto amolecidas pelo sangue africano.
|
||
Quaresma procurou descobrir nele aquela odiosa catadura que Darwin
|
||
achou nos mestiços; mas, sinceramente, não a encontrou.
|
||
Com auxílio de Mané Candeeiro, foi que Quaresma conseguiu acabar de
|
||
limpar as fruteiras daquele velho sítio abandonado há quase dez
|
||
anos. Quando o serviço ficou pronto, ele viu com tristeza aquelas
|
||
velhas árvores amputadas, mutiladas, com folhas aqui e sem folhas
|
||
ali... Pareciam sofrer e ele se lembrou das mãos que as tinham
|
||
plantado há vinte ou trinta anos, escravos, talvez, banzeiros e
|
||
desesperançados!...
|
||
Mas não tardou que os botões rebentassem e tudo reverdecesse, e o
|
||
renascimento das árvores como que trouxe o contentamento das aves e
|
||
do passaredo solto. De manhã, esvoaçavam os tiês vermelhos, com o
|
||
seu pio pobre, espécie de ave tão inútil e tão bela de plumas que
|
||
parece ter nascido para os chapéus das damas; as rolas pardas e
|
||
caboclas em bando, mariscando, no chão capinado; pelo correr do dia,
|
||
eram os sanhaçus a cantar nos galhos altos, os papa-capins, as
|
||
nuvens de coleiros; e de tarde como que todos eles se reuniam,
|
||
piando, cantando, chilreando, pelas altas mangueiras, pelos
|
||
cajueiros, pelos abacateiros, entoando louvores ao trabalho tenaz e
|
||
fecundo do velho Major Quaresma.
|
||
Não durou muito essa alegria. Um inimigo apareceu inopinadamente,
|
||
com a rapidez ousadíssima de um general consumado. Até ali ele se
|
||
mostrara tímido, parecia que somente mandava esclarecedores.
|
||
Desde aquele ataque às provisões de Quaresma, logo afugentadas, não
|
||
mais as formigas reapareceram; mas, naquela manhã, quando contemplou
|
||
o seu milharal, foi como se lhe tirassem a alma, e ficou sem ação e
|
||
as lágrimas lhe vieram aos olhos.
|
||
O milho que já tinha repontado, muito verde, pequenino, com uma
|
||
timidez de criança, crescera cerca de meio palmo acima da terra; o
|
||
major até mandara buscar o sulfato de cobre para a solução em que ia
|
||
lavar a batata inglesa a plantar nos intervalos dos pés.
|
||
Toda a manhã, ele ia lá e já via o milharal crescido com o seu
|
||
pendão branco e as espigas de coma cor de vinho, oscilando ao vento;
|
||
naquela, ele não viu nada mais, Até os tenros colmos tinham sido
|
||
cortados e levados para longe! “A modo que é obra de gente” disse
|
||
Felizardo; entretanto, tinham sido as saúvas, os terríveis
|
||
himenópteros, piratas ínfimos que lhe caíam em cima do trabalho com
|
||
uma rapacidade turca... Era preciso combatê-los. Quaresma pôs-se
|
||
logo em campo, descobriu as aberturas principais do formigueiro e em
|
||
cada uma queimou o formicida mortal. Passaramse dias; os inimigos
|
||
pareciam derrotados; mas, certa noite, indo ao pomar para melhor
|
||
apreciar a noite estrelada, Quaresma ouviu uma bulha esquisita, como
|
||
se alguém esmagasse as folhas mortas das árvores... Um estalido... E
|
||
era perto... Acendeu um fósforo e o que viu, meu Deus! Quase todas
|
||
as laranjeiras estavam negras de imensas saúvas. Havia delas às
|
||
centenas, pelos troncos e pelos galhos acima e agitavam-se,
|
||
moviam-se, andavam como em ruas transitadas e vigiadas a população
|
||
de uma grande cidade: umas subiam, outras desciam; nada de
|
||
atropelos, de confusão, de desordem. O trabalho como que era
|
||
regulado a toques de corneta. Lá em cima umas cortavam as folhas
|
||
pelo pecíolo; cá embaixo, outras serravam-nas em pedaços e afinal
|
||
eram carregadas por terceiras, levantando-as acima da descomunal
|
||
cabeça, em longas fileiras pelo trilho limpo, aberto entre a erva
|
||
rasteira.
|
||
Houve um instante de desânimo na alma do major. Não tinha contado
|
||
com aquele obstáculo nem o supusera tão forte. Agora via bem que era
|
||
a uma sociedade inteligente, organizada, ousada e tenaz com quem se
|
||
tinha de haver. Veio-lhe então à lembrança aquela frase de
|
||
Saint-Hilaire. se nós não expulsássemos as formigas, elas nos
|
||
expulsariam.
|
||
O major não estava lembrado ao certo se eram essas as palavras, mas
|
||
o sentido era, e ficou admirado que só agora ela lhe ocorresse.
|
||
No dia seguinte, tinha recobrado o ânimo. Comprou ingredientes e
|
||
ei-lo mais o Mané Candeeiro, a abrir picadas, a fazer esforços de
|
||
sagacidade, para descobrir os redutos centrais, as “panelas” dos
|
||
insetos terríveis. Então era como se os bombardeassem; o sulfeto
|
||
queimava, estourava em tiros seguidos, mortíferos, letais!
|
||
E daí em diante, foi uma batalha sem tréguas. Se aparecia uma
|
||
abertura, um “olho”, logo se lhe aplicava o formicida, pois do
|
||
contrário, nenhuma plantação era possível, tanto mais que extintos
|
||
os das suas terras, não tardariam os formigueiros das vizinhanças ou
|
||
dos logradouros públicos a deitar canículos para o seu terreno.
|
||
Era um suplício, um castigo, uma espécie de vigilância a dique
|
||
holandês e Quaresma viu bem que só uma autoridade central, um
|
||
governo qualquer, ou um acordo entre os cultivadores, podia levar a
|
||
efeito a extinção daquele flagelo, pior que a saraiva, que a geada,
|
||
que a seca, sempre presente, inverno ou verão, outono ou primavera.
|
||
Não obstante essa luta diária, o major não desanimou e pôde colher
|
||
alguns produtos das plantações que tinha feito. Se por ocasião das
|
||
frutas, a sua alegria foi grande, mais expressiva e mais profunda
|
||
ela foi, quando viu partir para a estação em sucessivas carretas, as
|
||
abóboras, os aipins, as batatas-doces, em cestos cobertos com sacos
|
||
cosidos. Os frutos, em parte, eram de outras mãos; as árvores não
|
||
tinham sido plantadas por ele; mas aquilo não, vinha do seu suor, da
|
||
sua iniciativa, do seu trabalho!
|
||
Ele ainda foi ver aqueles cestos na estação, com a ternura de um pai
|
||
que vê partir seu filho para a glória e para a vitória. Recebeu o
|
||
dinheiro dias depois, contou-o e esteve deduzindo os lucros.
|
||
Não foi à roça nesse dia; o trabalho de guarda-livros roubou o de
|
||
cultivador. A sua atenção, já um tanto gasta, não lhe favorecia a
|
||
tarefa das cifras, e só pelo meio-dia pôde dizer à irmã:
|
||
- Sabes qual foi o lucro, Adelaide?
|
||
- Não. Menor do que o dos abacates?
|
||
- Um pouco mais.
|
||
- Então... Quanto?
|
||
- Dois mil quinhentos e setenta réis, respondeu Quaresma,
|
||
destacando sílaba por sílaba.
|
||
- O quê?
|
||
- Foi isso. Só de frete paguei cento e quarenta e dois mil e
|
||
quinhentos.
|
||
Dona Adelaide esteve algum tempo com os olhos baixos, seguindo a
|
||
costura que fazia, depois, levantando o olhar:
|
||
- Homem, Policarpo, o melhor é deixares isso... Tens gasto muito
|
||
dinheiro... Só com as formigas!
|
||
- Ora, Adelaide! Pensas que quero fazer fortuna? Faço isso para dar
|
||
exemplo, levantar a agricultura, aproveitar as nossas terras
|
||
feracíssimas...
|
||
- É isto... Queres sempre ser a abelha-mestra... Já viste os
|
||
grandes fazerem esses sacrifícios?... Vê lá se fazem! Histórias...
|
||
Metem-se no café que tem todas as proteções...
|
||
- Mas, faço eu.
|
||
A irmã prestou mais atenção à costura, Policarpo levantou-se, foi
|
||
até à janela que dava para o galinheiro. Fazia um dia fosco e
|
||
irritante. Ele concertou o pince-nez, esteve olhando e de lá falou:
|
||
- Oh! Adelaide! Aquilo não é uma galinha morta?
|
||
A velha senhora ergueu-se com a costura, foi até à janela e
|
||
verificou com a vista:
|
||
- É... É já a segunda que morre hoje.
|
||
Após esta leve conversa, Quaresma voltou à sua sala de estudos.
|
||
Meditava grandes reformas agrícolas. Mandara buscar catálogos e ia
|
||
examiná-los. Tinha já em mente uma charrua dupla, um capinador
|
||
mecânico, um semeador, um destocador, grades, tudo americano, de
|
||
aço, dando o rendimento efetivo de vinte homens. Até então, não
|
||
quisera essas inovações; as terras mais ricas do mundo, não
|
||
precisavam desses processos que lhe pareciam artificiais, para
|
||
produzir; estava, porém, agora disposto a empregá-los como
|
||
experiência. Aos adubos, no entanto, o seu espírito resistia. Terra
|
||
virada, dizia Felizardo, terra estrumada; parecia a Quaresma uma
|
||
profanação estar a empregar nitratos, fosfatos ou mesmo estrume
|
||
comum, numa terra brasileira... Uma injúria!
|
||
Quando se convencesse de que eram necessários, parecia-lhe que todo
|
||
o seu sistema de idéias ia por terra e os móveis de sua vida
|
||
desapareceriam. Estava assim a escolher arados e outros “Planets”,
|
||
“Bajacs” e “Brabants” de vários feitios, quando o seu pequeno
|
||
copeiro lhe anunciou a visita do doutor Campos.
|
||
O edil entrou com a sua jovialidade, a sua mansidão e o seu grande
|
||
corpo. Era alto e gordo, pançudo um pouco, tinha os olhos castanhos,
|
||
quase à flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz, malfeito. Um
|
||
tanto trigueiro, cabelos corridos e já grisalhos, era o que se chama
|
||
por ai um caboclo, embora o seu bigode fosse crespo. Não nascera em
|
||
Curuzu, era da Bahia ou de Sergipe, habitava, porém, o lugar há mais
|
||
de vinte anos, onde casara e prosperara, graças ao dote da mulher e
|
||
à sua atividade clínica. Com esta, não gastava grande energia
|
||
mental: tendo de cor uma meia dúzia de receitas, ele, desde muito,
|
||
conseguira enquadrar as moléstias locais no seu reduzido formulário.
|
||
Presidente da Câmara, era das pessoas mais consideráveis de Curuzu,
|
||
e Quaresma o estimava particularmente pela sua familiaridade, pela
|
||
sua afabilidade e simplicidade.
|
||
- Ora viva, major! Como vai isto por aí? Muita formiga? Lá em casa
|
||
já não há mais.
|
||
Quaresma respondeu com menos entusiasmo e jovialidade, mas contente
|
||
com a alegria comunicativa do doutor. Ele continuava a falar com
|
||
desembaraço e naturalidade.
|
||
- Sabe o que me traz aqui, major? Não sabe, não é? Preciso de um
|
||
pequeno obséquio seu.
|
||
O major não se espantou; simpatizava com o homem e abriu-se em
|
||
oferecimentos.
|
||
- Como o major sabe...
|
||
Agora a sua voz era doce, flexível, sutil; as palavras caíam-lhe da
|
||
boca adocicadas, dobravam-se, coleavam-se:
|
||
- Como o major sabe, as eleições se devem realizar por estes dias.
|
||
A vitória é “nossa”. Todas as mesas estão conosco, exceto uma... Aí
|
||
mesmo, se o major quiser...
|
||
- Mas, como? se eu não sou eleitor, não me meto, nem quero meter-me
|
||
em política? perguntou Quaresma ingenuamente.
|
||
- Exatamente por isso, disse o doutor com voz forte; e em seguida
|
||
brandamente: a seção funciona na sua vizinhança, é ali, na escola, se...
|
||
- E dai?
|
||
- Tenho aqui uma carta do Neves, dirigida ao senhor. Se o major
|
||
quer responder (é melhor já) que não houve eleição... Quer?
|
||
Quaresma olhou o doutor com firmeza, coçou um instante o cavanhaque
|
||
e respondeu claramente, firmemente:
|
||
- Absolutamente não.
|
||
O doutor não se zangou. Pôs mais unção e maciez na voz, aduziu
|
||
argumentos: que era para o partido, o único que pugnava pelo
|
||
levantamento da lavoura. Quaresma foi inflexível; disse que não, que
|
||
lhe eram absolutamente antipáticas tais disputas, que não tinha
|
||
partido e mesmo que tivesse não iria afirmar uma coisa que ele não
|
||
sabia ainda se era mentira ou verdade.
|
||
Campos não deu mostras de aborrecimento, conversou um pouco sobre
|
||
coisas banais e despediu-se com o ar amável, com a jovialidade mais
|
||
sua que era possível.
|
||
Isto se passou na terça-feira, naquele dia de luz fosca e irritante.
|
||
À tarde houve trovoada, choveu muito, O tempo só levantou na
|
||
quinta-feira, dia em que o major foi surpreendido com a visita de um
|
||
sujeito com um uniforme velho e lamentável, portador de um papel
|
||
oficial para ele, proprietário do “Sossego”, conforme mesmo disse o
|
||
tal homem fardado.
|
||
Em virtude das posturas e leis municipais, rezava o papel, o Senhor
|
||
Policarpo Quaresma, proprietário do sítio “Sossego” era intimado,
|
||
sob as penas das mesmas posturas e leis, a roçar e capinar as
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||
testadas do referido sítio que confrontavam com as vias públicas.
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||
O major ficou um tempo pensando. Julgava impossível uma tal
|
||
intimação. Seria mesmo? Brincadeira... Leu de novo o papel, viu a
|
||
assinatura do doutor Campos. Era certo... Mas que absurda intimação
|
||
esta de capinar e limpar estradas na extensão de mil e duzentos
|
||
metros, pois seu sítio dava de frente para um caminho e de um dos
|
||
lados acompanhava outro na extensão de oitocentos metros - era
|
||
possível!?
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||
A antiga corvéia!... Um absurdo! Antes confiscassem-lhe o sítio.
|
||
Consultando a irmã, ela lhe aconselhou que falasse ao doutor Campos.
|
||
Contou-lhe então Quaresma a conversa que tivera com ele dias antes.
|
||
- Mas és tolo, Policarpo. Foi ele mesmo...
|
||
A luz se lhe fez no pensamento... Aquela rede de leis, de posturas,
|
||
de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais
|
||
caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de
|
||
suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações,
|
||
crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e
|
||
desmoralizando-as.
|
||
Pelos seus olhos passaram num instante aquelas faces amareladas e
|
||
chupadas que se encostavam nos portais das vendas preguiçosamente;
|
||
viu também aquelas crianças maltrapilhas e sujas, d’olhos baixos, a
|
||
esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquelas terras
|
||
abandonadas, improdutivas, entregues às ervas e insetos daninhos;
|
||
viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador,
|
||
sem ânimo de plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o
|
||
dinheiro que lhe passava pelas mãos - este quadro passou-lhe pelos
|
||
olhos com a rapidez e o brilho sinistro do relâmpago; e só se apagou
|
||
de todo, quando teve que ler a carta que a sua afilhada lhe mandara.
|
||
Vinha viva e alegre. Contava pequenas histórias de sua vida, a
|
||
viagem próxima do papai, à Europa, o desespero do marido no dia em
|
||
que saiu sem anel, pedia notícias do padrinho, de Dona Adelaide e,
|
||
sem desrespeito, recomendava à irmã de Quaresma que tivesse muito
|
||
cuidado com o manto de arminho da “Duquesa”.
|
||
A “Duquesa” era uma grande pata branca, de penas alvas e macias ao
|
||
olhar, que, pela lentidão e majestade do andar, com o pescoço alto e
|
||
o passo firme, merecera de Olga esse apelido nobre. O animal tinha
|
||
morrido havia dias. E que morte! Uma peste que lhe levava duas
|
||
dúzias de patos, levara “Duquesa” também. Era uma espécie de
|
||
paralisia que tomava as pernas, depois o resto do corpo. Três dias
|
||
levou a agonizar. Deitada sobre o peito, com o bico colado ao chão,
|
||
atacada pelas formigas, o animal só dava sinal de vida por uma lenta
|
||
oscilação do pescoço em torno do bico, espantando as moscas que a
|
||
importunavam na sua última hora.
|
||
Era de ver como aquela vida tão estranha à nossa, naquele instante
|
||
penetrava em nós e sentíamos-lhe o sofrimento, a agonia e a dor.
|
||
O galinheiro ficou como uma aldeia devastada; a peste atacou
|
||
galinhas, perus, patos; ora sobre uma forma, ora sobre outra, foi
|
||
ceifando, matando, até reduzir a sua população a menos de metade.
|
||
E não havia quem soubesse curar. Numa terra, cujo governo tinha
|
||
tantas escolas que produziam tantos sábios, não havia um só homem
|
||
que pudesse reduzir, com as suas drogas ou receitas, aquele
|
||
considerável prejuízo.
|
||
Esses contratempos, essas contrariedades abateram muito o cultivador
|
||
entusiástico dos primeiros meses; entretanto não passara pela mente
|
||
de Quaresma abandonar os seus propósitos. Adquiriu compêndios de
|
||
veterinária e até já tratava de comprar as máquinas agrícolas
|
||
descritas nos catálogos.
|
||
Uma tarde, porém, estava à espera da junta de bois que encomendara
|
||
para o trabalho do arado, quando lhe apareceu à porta um soldado de
|
||
polícia com um papel oficial. Ele se lembrou da intimação municipal.
|
||
Estava disposto a resistir, não se incomodou muito.
|
||
Recebeu o papel e leu. Não vinha mais da municipalidade, mas da
|
||
coletoria, cujo escrivão, Antonino Dutra, conforme estava no papel,
|
||
intimava o Senhor Policarpo Quaresma a pagar quinhentos mil-réis de
|
||
multa, por ter enviado produtos de sua lavoura sem pagamento dos
|
||
respectivos impostos.
|
||
Viu bem o que havia nisso de vingança mesquinha; mas o seu
|
||
pensamento voou logo para as coisas gerais, levado pelo seu
|
||
patriotismo profundo.
|
||
A quarenta quilômetros do Rio, pagavam-se impostos para se mandar ao
|
||
mercado umas batatas? Depois de Turgot, da Revolução, ainda havia
|
||
alfândegas interiores?
|
||
Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas
|
||
barreiras e impostos? Se ao monopólio dos atravessadores do Rio se
|
||
juntavam as exações do Estado, como era possível tirar da terra a
|
||
remuneração consoladora?
|
||
E o quadro que já lhe passara pelos olhos, quando recebeu a
|
||
intimação da municipalidade, voltou-lhe de novo, mais tétrico, mais
|
||
sombrio, mais lúgubres; e anteviu a época em que aquela gente teria
|
||
de comer sapo, cobras, animais mortos, como em França os camponeses,
|
||
em tempos de grandes reis.
|
||
Quaresma veio a recordar-se do seu tupi, do seu folk-lore, das
|
||
modinhas, das suas tentativas agrícolas - tudo isso lhe pareceu
|
||
insignificante, pueril, infantil.
|
||
Era preciso trabalhos maiores, mais profundos; tornava-se necessário
|
||
refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado,
|
||
inteligente, removendo todos esses óbices, esses entraves, Sully e
|
||
Henrique IV, espalhando sábias leis agrárias, levantando o
|
||
cultivador... Então sim! o celeiro surgiria e a pátria seria feliz.
|
||
Felizardo entregou-lhe o jornal que toda manhã mandava comprar à
|
||
estação, e lhe disse:
|
||
- Seu patrão, amanhã não venho “trabaiá”.
|
||
- Por certo; é dia feriado... A Independência.
|
||
- Não é por isso.
|
||
- Por que então?
|
||
- Há “baruio” na Corte e dizem que vão “arrecrutá”. Vou pro mato...
|
||
Nada!
|
||
- Que barulho?
|
||
- “Tá” nas “foias”, sim “sinhô”.
|
||
Abriu o jornal e logo deu com a notícia de que os navios da esquadra
|
||
se haviam insurgido e intimado ao presidente a sair do poder.
|
||
Lembrou-se das suas reflexões de instantes atrás; um governo forte,
|
||
até à tirania... Medidas agrárias... Sully e Henrique IV...
|
||
Os seus olhos brilhavam de esperança. Despediu o empregado. Foi ao
|
||
interior da casa, nada disse à irmã, tomou o chapéu, e dirigiu-se à
|
||
estação.
|
||
Chegou ao telégrafo e escreveu:
|
||
“Marechal Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já. - Quaresma”.
|
||
V
|
||
O TROVADOR
|
||
- Decerto, Albernaz, não é possível continuar assim... Então
|
||
mete-se um sujeito num navio, assesta os canhões pra terra e diz:
|
||
sai daí “seu” presidente; e o homem vai saindo?... Não! É preciso um
|
||
exemplo...
|
||
- Eu penso também da mesma maneira, Caldas. A República precisa
|
||
ficar forte, consolidada... Esta terra necessita de governo que se
|
||
faça respeitar... É incrível! Um país como este, tão rico, talvez o
|
||
mais rico do mundo, é, no entanto, pobre, deve a todo mundo... Por
|
||
quê? Por causa dos governos que temos tido que não têm prestígio,
|
||
força... É por isso.
|
||
Vinham andando, à sombra das grandes e majestosas árvores do parque
|
||
abandonado; ambos fardados e de espada. Albernaz, depois de um curto
|
||
intervalo, continuou:
|
||
- Você viu o imperador, o Pedro II... Não havia jornaleco, pasquim
|
||
por aí, que o não chamasse de “banana” e outras coisas... Saia no
|
||
carnaval... Um desrespeito sem nome! Que aconteceu? Foi-se como um
|
||
intruso.
|
||
- E era um bom homem, observou o almirante. Amava o seu país...
|
||
Deodoro nunca soube o que fez.
|
||
Continuavam a andar. O almirante coçou um dos favoritos e Albernaz
|
||
olhou um instante para todos os lados, acendeu o cigarro de palha e
|
||
retomou a conversa:
|
||
- Morreu arrependido... Nem com a farda quis ir para a cova!...
|
||
Aqui para nós que ninguém nos ouve: foi um ingrato; o imperador
|
||
tinha feito tanto por toda a família, não acha?
|
||
- Não há dúvida nenhuma!... Albernaz, você quer saber de uma coisa:
|
||
estávamos melhor naquele tempo, digam lá o que disserem...
|
||
- Quem diz o contrário? Havia mais moralidade... Onde está um
|
||
Caxias? um Rio Branco?
|
||
- E mais justiça mesmo, disse com firmeza o almirante. O que eu
|
||
sofri, não foi por causa do “velho”, foi a canalha... Demais, tudo
|
||
barato...
|
||
- Eu não sei, disse Albernaz com particular acento, como há ainda
|
||
quem se case... Anda tudo pela hora da morte!
|
||
Eles olharam um instante as velhas árvores da Quinta Imperial, por
|
||
onde vinham atravessando. Nunca as tinham contemplado; e agora
|
||
parecia- lhes que jamais tinham pousado os olhos sobre árvores tão
|
||
soberbas, tão belas, tão tranqüilas e seguras de si, como aquelas
|
||
que espalhavam sob os seus grandes ramos uma vasta sombra, deliciosa
|
||
e macia. Pareciam que medravam sentindo-se em terra própria, delas,
|
||
da qual nunca sairiam desalojadas a machado, para edificação de
|
||
casebres; e esse sentimento lhes havia dado muita força de vegetar e
|
||
uma ampla vontade de se expandirem. O solo sobre o qual cresciam,
|
||
era delas e agradeciam à terra estendendo muito os seus ramos,
|
||
cerrando e tecendo a folhagem, para dar à boa mãe, frescura e
|
||
proteção contra a inclemência do sol.
|
||
As mangueiras eram as mais gratas; os ramos longos e cheios de
|
||
folhas, quase beijavam o chão. As jaqueiras se espreguiçavam; os
|
||
bambus se inclinavam, de um lado e outro da aléia, e cobriam a terra
|
||
com uma ogiva verde...
|
||
O velho edifício imperial se erguia sobre a pequena colina, Eles lhe
|
||
viam o fundo, aquela parte de construção mais antiga, joanina, com a
|
||
torre do relógio um pouco afastada e separada do corpo do edifício.
|
||
Não era belo o palácio, não tinha mesmo nenhum traço de beleza, era
|
||
até pobre e monótono. As janelas acanhadas daquela fachada velha, os
|
||
andares de pequena altura impressionavam mal; todo ele, porém, tinha
|
||
uma tal ou qual segurança de si, um ar de confiança pouco comum nas
|
||
nossas habitações, uma certa dignidade, alguma coisa de quem se
|
||
sente viver, não para um instante, mas para anos, para séculos... As
|
||
palmeiras cercavam-no, eretas, firmes, com os seus grandes penachos
|
||
verdes, muito altos, alongados para o céu...
|
||
Eram como que a guarda da antiga moradia imperial, guarda orgulhosa
|
||
do seu mister e função.
|
||
Albernaz interrompeu o silêncio:
|
||
- Em que dará isto tudo, Caldas?
|
||
- Sei lá.
|
||
- O “homem” deve estar atrapalhado... Já tinha o Rio Grande, agora
|
||
o Custódio... hum!
|
||
- O poder é o poder, Albernaz.
|
||
Vinham andando em demanda à estação de São Cristóvão. Atravessaram o
|
||
velho parque imperial transversalmente, desde o portão da Cancela
|
||
até à linha da estrada de ferro. Era de manhã, e o dia estava
|
||
límpido e fresco.
|
||
Caminhavam com pequenos passos seguros, mas sem pressa. Pouco antes
|
||
de saírem da quinta, deram com um soldado a dormir numa moita.
|
||
Albernaz teve vontade de acordá-lo: camarada! camarada! O soldado
|
||
levantou-se estremunhado; e, dando com aqueles dois oficiais
|
||
superiores, concertou-se rapidamente, fez a continência que lhes era
|
||
devida e ficou com a mão no boné, um instante firme, mas logo
|
||
bambeou.
|
||
- Abaixe a mão, fez o general. Que faz você aqui?
|
||
Albernaz falou em tom ríspido e de comando. A praça, falando a medo,
|
||
explicou que tinha estado de ronda ao litoral toda a noite. A força
|
||
se recolhera aos quartéis; ele obtivera licença para ir em casa mas
|
||
o sono fora muito e descansava ali um pouco.
|
||
- Então como vão as coisas? perguntou o general.
|
||
- Não sei, não “sinhô”.
|
||
- Os “homens” desistem ou não?
|
||
O general esteve um instante examinando o soldado. Era branco e
|
||
tinha os cabelos alourados, de um louro sujo e degradado; as feições
|
||
eram feias: malares salientes, testa óssea e todo ele anguloso e
|
||
desconjuntado.
|
||
- Donde você é? perguntou-lhe ainda Albernaz.
|
||
- Do Piauí, sim “sinhô”.
|
||
- Da capital?
|
||
- Do sertão, de Paranaguá, sim “sinhô”.
|
||
O almirante até ali não interrogara o soldado que continuava
|
||
amedrontado, respondendo tropegamente. Caldas, para acalmá-lo,
|
||
resolveu falar-lhe com doçura.
|
||
- Você não sabe, camarada, quais são os navios que “eles” têm?
|
||
- O “Aquidabã”... A “Luci”.
|
||
- A “Luci” não é navio.
|
||
- É verdade, sim “sinhô”. O “Aquidabã”... Um “bandão” deles, sim,
|
||
“sinhô”.
|
||
O general interveio então, Falou-lhe com brandura, quase paternal,
|
||
mudando o tratamento de você para tu, que parece mais doce e íntimo
|
||
quando se fala aos inferiores:
|
||
- Bem, descansa, meu filho. É melhor ires para casa... Podem
|
||
furtar-te o sabre e estás na “inácia”.
|
||
Os dois generais continuaram o seu caminho e, em breve, estavam na
|
||
plataforma da estação. A pequena estação tinha um razoável
|
||
movimento. Um grande número de oficiais, ativos, reformados,
|
||
honorários moravam-lhe nas cercanias e os editais chamavam todos a
|
||
se apresentar às autoridades competentes. Albernaz e Caldas
|
||
atravessaram a plataforma no meio de continências. O general era
|
||
mais conhecido, em virtude de seu emprego; o almirante, não. Quando
|
||
passavam, ouviam perguntar: “Quem é este almirante?” Caldas ficava
|
||
contente e orgulhava-se um pouco do seu posto e do seu incógnito.
|
||
Havia uma única mulher na estação, uma moça. Albernaz olhou-a e
|
||
lembrou-se um instante de sua filha Ismênia... Coitada!... Ficaria
|
||
boa?
|
||
Aquelas manias? Onde iria parar? Vieram-lhe as lágrimas, mas ele as
|
||
reteve com força.
|
||
Já a levara a uma meia dúzia de médicos e nenhum fazia parar aquele
|
||
escapamento do juízo que parecia fugir aos poucos do cérebro da
|
||
moça.
|
||
A bulha de um expresso, chocalhando ferragens com estrépido,
|
||
apitando com fúria e deixando fumaça pesada pelos ares que rompia,
|
||
afastou-o de pensar na filha. Passou o monstro, pejado de soldados,
|
||
de uniformes e os trilhos, depois de ter passado, ainda estremeciam.
|
||
Bustamante apareceu; morava nos arredores e vinha tomar o trem, para
|
||
apresentar-se. Trazia o seu velho uniforme do Paraguai, talhado
|
||
segundo os moldes dos guerreiros da Criméia. A barretina era um
|
||
tronco de cone que avançava para a frente; e, com aquela banda roxa
|
||
e casaquinha curta, parecia ter saído, fugido, saltado de uma tela
|
||
de Vítor Meireles”.
|
||
- Então por aqui?... Que é isto? indagou o honorário.
|
||
- Viemos pela quinta, disse o almirante.
|
||
- Nada, meus amigos, esses bondes andam muito perto do mar... Não
|
||
me importa morrer, mas quero morrer combatendo; isso de morrer por
|
||
ai, à toa, sem saber como, não vai comigo...
|
||
O general falara um pouco alto e os jovens oficiais que estavam
|
||
próximo, olharam-no com mal disfarçada censura. Albernaz percebeu e
|
||
ajuntou imediatamente:
|
||
- Conheço bem esse negócio de balas... Já vi muito fogo... Você
|
||
sabe, Bustamante, que, em Curuzu...
|
||
- A coisa foi terrível, acrescentou Bustamante.
|
||
O trem atracava na estação. Veio chegando manso, vagaroso; a
|
||
locomotiva, muito negra, bufando, suando gordurosamente, com a sua
|
||
grande lanterna na frente, um olho de ciclope, avançava que nem uma
|
||
aparição sobrenatural. Foi chegando; o comboio estremeceu todo e
|
||
parou por fim.
|
||
Estava repleto, muitas fardas de oficiais; a avaliar por ali o Rio
|
||
devia ter uma guarnição de cem mil homens. Os militares palravam
|
||
alegres, e os civis vinham calados e abatidos, e mesmo apavorados.
|
||
Se falavam, era cochichando, olhando com precaução para os bancos de
|
||
trás.
|
||
A cidade andava inçada de secretas, “familiares” do Santo Ofício
|
||
Republicano, e as delações eram moedas com que se obtinham postos e
|
||
recompensas.
|
||
Bastava a mínima critica, para se perder o emprego, a liberdade, -
|
||
quem sabe? - a vida também. Ainda estávamos no começo da revolta,
|
||
mas o regime já publicara o seu prólogo e todos estavam avisados. O
|
||
chefe de polícia organizara a lista dos suspeitos. Não havia
|
||
distinção de posição e talentos. Mereciam as mesmas perseguições do
|
||
governo um pobre contínuo e um influente senador; um lente e um
|
||
simples empregado de escritório. Demais surgiam as vinganças
|
||
mesquinhas, o revide de pequenas implicâncias... Todos mandavam; a
|
||
autoridade estava em todas as mãos.
|
||
Em nome do Marechal Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão,
|
||
sem função pública alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá
|
||
ficava esquecido, sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação
|
||
dominicana. Os funcionários disputavam-se em bajulação, em
|
||
servilismo... Era um terror, um terror baço, sem coragem, sangrento,
|
||
às ocultas, sem grandeza, sem desculpa, sem razão e sem
|
||
responsabilidades... Houve execuções; mas não houve nunca um
|
||
Fouquier-Tinville.
|
||
Os militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os
|
||
alferes, os tenentes e os capitães. Para a maioria a satisfação
|
||
vinha da convicção de que iam estender a sua autoridade sobre o
|
||
pelotão e a companhia, a todo esse rebanho de civis; mas, em outros
|
||
muitos havia sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade. Eram
|
||
os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo
|
||
tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências,
|
||
todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da
|
||
ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao
|
||
advento do regime normal, a religião da humanidade, a adoração do
|
||
grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos
|
||
detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escritura fonética e
|
||
eleitos calçados com sapatos de sola de borracha!...
|
||
Os positivistas discutiam e citavam teoremas de mecânica para
|
||
justificar as suas idéias de governo, em tudo semelhantes aos
|
||
canatos e emirados orientais.
|
||
A matemática do positivismo foi sempre um puro falatório que,
|
||
naqueles tempos, amedrontava toda gente. Havia mesmo quem estivesse
|
||
convencido que a matemática tinha sido feita e criada para o
|
||
positivismo, como se a Bíblia tivesse sido criada unicamente para a
|
||
Igreja Católica e não também para a Anglicana. O prestígio dele era,
|
||
portanto, enorme.
|
||
O trem correu, parou inda em uma estação e foi ter à Praça da
|
||
República. O almirante, cosido com as paredes, seguiu para o Arsenal
|
||
de Marinha; Albernaz e Bustamante entraram no Quartel-General.
|
||
Penetraram no grande casarão, no meio do retinir de espadas, de
|
||
toques de cornetas; o grande pátio estava cheio de soldados,
|
||
bandeiras, canhões, feixes de armas ensarilhadas, baionetas
|
||
reluzindo ao sol oblíquo...
|
||
No sobrado, nas proximidades do gabinete do ministro, havia um
|
||
vaivém de fardas, dourados, fazendas multicores, uniformes de várias
|
||
corporações e milícias, no meio dos quais os trajes escuros dos
|
||
civis eram importunos como moscas. Misturavam-se oficiais da guarda
|
||
nacional, da polícia, da armada, do exército, de bombeiros e de
|
||
batalhões patrióticos que começavam a surgir.
|
||
Apresentaram-se e, depois de tê-lo feito ao ajudante general e
|
||
ministro da Guerra, a um só tempo, ficaram a conversar nos
|
||
corredores, com bastante prazer, pois que tinham encontrado o
|
||
Tenente Fontes e ambos gostavam de ouvi-lo.
|
||
O general porque já era noivo de sua filha Lalá, e Bustamante porque
|
||
aprendia com ele alguma coisa de nomenclatura dos armamentos
|
||
modernos.
|
||
Fontes estava indignado, todo ele era horror, maldição contra os
|
||
insurretos, e propunha os piores castigos.
|
||
- Hão de ver o resultado... Piratas! Bandidos! Eu, no caso do
|
||
marechal, se os pegasse... ai deles!
|
||
O tenente não era feroz nem mau, antes bom e até generoso, mas era
|
||
positivista e tinha da sua República uma idéia religiosa e
|
||
transcendente. Fazia repousar nela toda a felicidade humana e não
|
||
admitia que a quisessem de outra forma que não aquela que imaginava
|
||
boa. Fora daí não havia boa-fé, sinceridade; eram heréticos
|
||
interesseiros, e, dominicano do seu barrete frígio, raivoso por não
|
||
poder queimá-los em autos-de-fé, congesto, via passar por seus olhos
|
||
uma série enorme de réus confitentes, relapsos, contumazes, falsos,
|
||
simulados, fictos e confictos, sem samarra, soltos por aí...
|
||
Albernaz não tinha tanta fúria contra os adversários, No fundo
|
||
d’alma, ele os queria até, tinha amigos lá, e essas divergências
|
||
nada significavam para a sua idade e experiência,
|
||
Depositava, entretanto, uma certa esperança na ação do marechal.
|
||
Estando em apuros financeiros, não lhe dando o bastante a sua
|
||
reforma e a gratificação de organizador do arquivo do Largo do
|
||
Moura, esperava obter uma outra comissão, que lhe permitisse mais
|
||
folgadamente adquirir o enxoval de Lalá.
|
||
O almirante, também, tinha grande confiança nos talentos guerreiros
|
||
e de estadista de Floriano. A sua causa não ia lá muito bem.
|
||
Perdera-a em primeira instância, estava gastando muito dinheiro... O
|
||
governo precisava de oficiais de Marinha, quase todos estavam na
|
||
revolta; talvez lhe dessem uma esquadra a comandar... É verdade
|
||
que... Mas, que diabo! Se fosse um navio, então sim: mas uma
|
||
esquadra a coisa não era difícil: bastava coragem para combater.
|
||
Bustamante cria com força na capacidade do General Peixoto, tanto
|
||
assim que, para apoiá-lo e defender o seu governo, imaginava
|
||
organizar um batalhão patriótico, de que já tinha o nome “Cruzeiro
|
||
do Sul” e naturalmente seria o seu comandante, com todas as
|
||
vantagens do posto de coronel.
|
||
Genelício, cuja atividade nada tinha de guerreira, esperava muito da
|
||
energia e da decisão do governo de Floriano: esperava ser subdiretor
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e não podia um governo sério, honesto e enérgico, fazer outra coisa,
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desde que quisesse pôr ordem na sua seção.
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Essas secretas esperanças eram mais gerais do que se pode supor. Nós
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vivemos do governo e a revolta representava uma confusão nos
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empregos, nas honrarias e nas posições que o Estado espalha. Os
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suspeitos abririam vagas e as dedicações supririam os títulos e
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habilitações para ocupálas; além disso, o governo, precisando de
|
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simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar,
|
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inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e
|
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gratificações.
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||
O próprio doutor Armando Borges, o marido de Olga e sábio sereno e
|
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dedicado quando estudante, colocava na revolta a realização de
|
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risonhos anelos.
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||
Médico e rico, pela fortuna da mulher, ele não andava satisfeito. A
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ambição de dinheiro e o desejo de nomeada esporeavam-no. Já era
|
||
médico do Hospital Sírio, onde ia três vezes por semana e, em meia
|
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hora, via trinta e mais doentes. Chegava, o enfermeiro dava-lhe
|
||
informações, o doutor ia, de cama em cama, perguntando: “Como vai?”
|
||
“Vou melhor, seu doutor”, respondia o sírio com voz gutural. Na
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seguinte, indagava: “Já está melhor?” E assim passava a visita;
|
||
chegando ao gabinete, receitava: “Doente n. I, repita a receita;
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||
doente 5... quem é?”... “É aquele barbado”... “Ahn!” E receitava.
|
||
Mas médico de um hospital particular não dá fama a ninguém: o
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||
indispensável é ser do governo, senão ele não passava de um simples
|
||
prático. Queria ter um cargo oficial, médico, diretor ou mesmo lente
|
||
da faculdade.
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||
E isso não era difícil, desde que arranjasse boas recomendações,
|
||
pois já tinha certo nome, graças à sua atividade e fertilidade de
|
||
recursos.
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||
De quando em quando, publicava um folheto O Cobreiro, Etiologia,
|
||
Profilaxia e Tratamento ou Contribuição para o Estudo da Sarna no
|
||
Brasil; e mandava o folheto, quarenta e sessenta páginas, aos
|
||
jornais que se ocupavam dele duas ou três vezes por ano; o “operoso
|
||
doutor Armando Borges, o ilustre clínico, o proficiente médico dos
|
||
nossos hospitais”, etc., etc.
|
||
Obtinha isso graças à precaução que tomara em estudante de se
|
||
relacionar com os rapazes da imprensa.
|
||
Não contente com isso escrevia artigos, estiradas compilações, em
|
||
que não havia nada de próprio, mas ricos de citações em francês,
|
||
inglês e alemão.
|
||
O lugar de lente é que o tentava mais; o concurso porém, metia-lhe
|
||
medo. Tinha elementos, estava bem relacionado e cotado na
|
||
congregação, mas aquela história de argüição apavorava-o.
|
||
Não havia dia em que não comprasse livros, em francês, inglês e
|
||
italiano, tomara até um professor de alemão, para entrar na ciência
|
||
germânica; mas faltava-lhe energia para o estudo prolongado e a sua
|
||
felicidade pessoal fizera evolar-se a pequena que tivera quando
|
||
estudante.
|
||
A sala da frente do alto porão tinha sido transformada em
|
||
biblioteca. As paredes estavam forradas de estantes que gemiam ao
|
||
peso dos grandes tratados. À noite, ele abria as janelas das
|
||
venezianas, acendia todos os bicos-de-gás e se punha à mesa, todo de
|
||
branco com um livro aberto sob os olhos.
|
||
O sono não tardava a vir ao fim da quinta página... Isso era o
|
||
diabo! Deu em procurar os livros da mulher. Eram romances franceses,
|
||
Goncourt, Anatole France, Daudet, Maupassant, que o faziam dormir da
|
||
mesma maneira que os tratados. Ele não compreendia a grandeza
|
||
daquelas análises, daquelas descrições, o interesse e o valor delas,
|
||
revelando a todos, à sociedade, a vida, os sentimentos, as dores
|
||
daqueles personagens, um mundo! O seu pedantismo, a sua falsa
|
||
ciência e a pobreza de sua instrução geral faziam-no ver, naquilo
|
||
tudo, brinquedos, passatempos, falatórios, tanto mais que ele dormia
|
||
à leitura de tais livros.
|
||
Precisava, porém, iludir-se, a si mesmo e à mulher, De resto, da
|
||
rua, viam-no e se dessem com ele a dormir sobre os livros?!...
|
||
Tratou de encomendar algumas novelas de Paulo de Kock em lombadas
|
||
com títulos trocados e afastou o sono.
|
||
A sua clínica, entretanto, prosperava. De comandita com o tutor,
|
||
chegou a ganhar uns seis contos, tratando de um febrão de uma órfã
|
||
rica.
|
||
Desde muito que a mulher lhe entrara na sua simulação de
|
||
inteligência, mas aquela manobra indecorosa, indignou-a. Que
|
||
necessidade tinha ele disso? Não era já rico? Não era moço? Não
|
||
tinha o privilégio de um título universitário? Tal ato pareceu à
|
||
moça mais vil, mais baixo, que a usura de um judeu, que o aluguel de
|
||
uma pena...
|
||
Não foi desprezo, nojo que ela teve pelo marido; foi um sentimento
|
||
mais calmo, menos ativo; desinteressou-se dele, destacou-se de sua
|
||
pessoa. Ela sentiu que tinham cortado todos os laços de afeição, de
|
||
simpatia, que prendiam ambos, toda a ligação moral, enfim.
|
||
Mesmo quando noiva, verificara que aquelas coisas de amor ao estudo,
|
||
de interesse pela ciência, de ambições de descobertas, nele, eram
|
||
superficiais, estavam à flor da pele; mas desculpou. Muitas vezes
|
||
nós nos enganamos sobre as nossas próprias forças e capacidades;
|
||
sonhamos ser Shakespeare e saímos Mal das Vinhas, Era perdoável, mas
|
||
charlatão? Era demais!
|
||
Passou-lhe um pensamento mau, mas de que valeria essa quase
|
||
indignidade?... Todos os homens deviam ser iguais; era inútil mudar
|
||
deste para aquele...
|
||
Quando chegou a esta conclusão, sentiu um grande alívio, e a sua
|
||
fisionomia se iluminou de novo como se já estivesse de todo passada
|
||
a nuvem que empanava o sol dos seus olhos.
|
||
Naquela carreira atropelada para o nome fácil, ele não deu pelas
|
||
modificações da mulher. Ela dissimulava os seus sentimentos, mais
|
||
por dignidade e delicadeza, que mesmo por qualquer outro motivo; e a
|
||
ele faltavam a sagacidade e finura necessárias para descobri-los sob
|
||
o seu esconderijo.
|
||
Continuavam a viver como se nada houvesse, mas quanto estavam longe
|
||
um do outro! ...
|
||
A revolta veio encontrá-los assim; e o doutor, desde três dias, pois
|
||
há tanto ela rebentara, meditava a sua ascensão social e monetária,
|
||
O sogro suspendera a viagem à Europa, e, naquela manhã, após o
|
||
almoço, conforme o seu hábito, lia recostado numa cadeira de viagem
|
||
os jornais do dia. O genro vestia-se e a filha ocupava-se com sua
|
||
correspondência, escrevendo à cabeceira da mesa de jantar. Ela tinha
|
||
um gabinete, com todo o luxo, livros, secretária, estantes, mas
|
||
gostava pela manhã, de escrever ali, ao lado do pai. A sala lhe
|
||
parecia mais clara, a vista para a montanha, feia e esmagadora, dava
|
||
mais seriedade ao pensamento e a vastidão da sala mais liberdade no
|
||
escrever.
|
||
Ela escrevia e o pai lia; num dado momento ele disse:
|
||
- Sabes quem vem ai, minha filha?
|
||
- Quem é?
|
||
- Teu padrinho. Telegrafou ao Floriano, dizendo que vinha... Está
|
||
aqui, n’O País.
|
||
A moça adivinhou logo o motivo, o modo de agir e reagir do fato
|
||
sobre as idéias e sentimentos de Quaresma. Quis desaprovar,
|
||
censurar; sentiu-o, porém, tão coerente com ele mesmo, tão de acordo
|
||
com a substância da vida que ele mesmo fabricara, que se limitou a
|
||
sorrir complacente:
|
||
- O padrinho...
|
||
- Está doido, disse Coleoni. Per la madonna! Pois um homem que está
|
||
quieto, sossegado, vem meter-se nesta barafunda, neste inferno...
|
||
O doutor voltara já inteiramente vestido, com a sobrecasaca fúnebre
|
||
e a cartola reluzente na mão. Vinha irradiante e o seu rosto redondo
|
||
reluzia, exceto onde o grande bigode punha sombras. Ainda ouviu as
|
||
últimas palavras do sogro, pronunciadas com aquele seu português
|
||
rouco:
|
||
- Que há? perguntou ele.
|
||
Coleoni explicou e repetiu os comentários que já fizera:
|
||
- Mas não há tal, disse o doutor. É o dever de todo patriota... Que
|
||
tem a idade? Quarenta e poucos anos, não é lá velho... Pode ainda
|
||
bater-se pela República...
|
||
- Mas não tem interesse nisso, objetou o velho.
|
||
- E há de ser só quem tem interesse que se deve bater pela
|
||
República? interrogou o doutor.
|
||
A moça que acabava de ler a carta que tinha escrito, mesmo sem
|
||
levantar a cabeça, disse:
|
||
- Decerto.
|
||
- E vem você com as suas teorias, filhinha. O patriotismo não está
|
||
na barriga...
|
||
E sorriu com um falso sorriso que o brilho morto dos seus dentes
|
||
postiços mais falsificava.
|
||
- Mas vocês só falam em patriotismo? E os outros? É monopólio de
|
||
vocês o patriotismo? fez Olga.
|
||
- Decerto. Se eles fossem patriotas não estariam a despejar balas
|
||
para a cidade, a entorpecer, a desmoralizar a ação da autoridade
|
||
constituída.
|
||
- Deviam continuar a presenciar as prisões, as deportações, os
|
||
fuzilamentos, toda a série de violências que se vêm cometendo, aqui
|
||
e no Sul?
|
||
- Você, no fundo, é uma revoltosa, disse o doutor, fechando a
|
||
discussão.
|
||
Ela não deixava de ser. A simpatia dos desinteressados, da população
|
||
inteira era pelos insurgentes. Não só isso sempre acontece em toda
|
||
parte, como particularmente, no Brasil, devido a múltiplos fatores,
|
||
há de ser assim normalmente.
|
||
Os governos, com os seus inevitáveis processos de violência e
|
||
hipocrisias, ficam alheados da simpatia dos que acreditam nele; e
|
||
demais, esquecidos de sua vital impotência e inutilidade, levam a
|
||
prometer o que não podem fazer, de forma a criar desesperados, que
|
||
pedem sempre mudanças e mudanças.
|
||
Não era, pois, de admirar que a moça tendesse para os revoltosos; e
|
||
Coleoni, estrangeiro e conhecendo, graças à sua vida, as nossas
|
||
autoridades, calasse as suas simpatias num mutismo prudente.
|
||
- Não me vá comprometer, hein Olga?
|
||
Ela se tinha levantado para acompanhar o marido. Parou um pouco,
|
||
deitou-lhe o seu grande olhar luminoso, e com os finos lábios um
|
||
pouco franzidos:
|
||
- Você sabe bem que eu não te comprometo.
|
||
O doutor desceu a escada da varanda, atravessou o jardim e ainda do
|
||
portão disse adeus à mulher, que lhe seguia a saída, debruçada na
|
||
varanda, conforme o ritual dos bem ou mal casados.
|
||
Por esse tempo, Coração dos Outros sonhava desligado das
|
||
contingências terrenas.
|
||
Ricardo vivia ainda na sua casa de cômodos dos subúrbios, cuja vista
|
||
ia de Todos os Santos à Piedade, abrangendo um grande trato de área
|
||
edificada, um panorama de casas e árvores.
|
||
Já não se falava mais no seu rival e a sua mágoa tinha assentado.
|
||
Por esses dias o seu triunfo desfilava sem contestação. Toda a
|
||
cidade o tinha na consideração devida e ele quase se julgava ao
|
||
termo da sua carreira. Faltava o assentimento de Botafogo, mas
|
||
estava certo de obter.
|
||
Já publicara mais de um volume de canções; e agora pensava em
|
||
publicar mais outro.
|
||
Há dias vivia em casa, pouco saindo, organizando o seu livro.
|
||
Passava confinado no seu quarto, almoçando café, que ele mesmo
|
||
fazia, e pão, indo à tarde jantar a uma tasca próxima à estação.
|
||
Notara que sempre que chegava, os carroceiros e trabalhadores, que
|
||
jantavam nas mesas sujas, abaixavam a voz e olhavam-no desconfiados;
|
||
mas não deu importância...
|
||
Apesar de popular no lugar, não encontrara pessoa alguma conhecida
|
||
durante os três últimos dias; ele mesmo evitava falar e, em sua
|
||
casa, limitava-se ao “bom dia” e à “boa tarde” trocados com os
|
||
vizinhos.
|
||
Gostava de passar assim dias, metido em si mesmo e ouvindo o seu
|
||
coração. Não lia jornais para não distrair a atenção do seu
|
||
trabalho. Vivia a pensar nas suas modinhas e no seu livro que havia
|
||
de ser mais uma vitória para ele e para o violão estremecido.
|
||
Naquela tarde estava sentado à mesa, corrigindo um dos seus
|
||
trabalhos, um dos últimos, aquele que compusera no sítio de Quaresma
|
||
- “Os Lábios de Carola”.
|
||
Primeiro, leu toda a produção, cantarolando; voltou a lê-la, agarrou
|
||
o violão para melhor apanhar o efeito e empacou nestes:
|
||
É mais bela que Helena e Margarida,
|
||
Quando sorri meneando a ventarola.
|
||
Só se encontra a ilusão que adoça a vida
|
||
Nos lábios de Carola.
|
||
Nisto ouviu um tiro, depois outro, outro... Que diabo? pensou. Hão
|
||
de ser salvas a algum navio estrangeiro. Repinicou o violão e
|
||
continuou a cantar os lábios de Carola, onde encontrava a ilusão que
|
||
adoça a vida...
|
||
TERCEIRA PARTE
|
||
I
|
||
PATRIOTAS
|
||
Havia mais de uma hora que ele estava ali, num grande salão do
|
||
palácio, vendo o marechal, mas sem lhe poder falar. Quase não se
|
||
encontravam dificuldades para se chegar à sua presença, mas
|
||
falar-lhe, a coisa não era tão fácil.
|
||
O palácio tinha um ar de intimidade, de quase relaxamento,
|
||
representativo e eloqüente. Não era raro ver-se pelos divãs, em
|
||
outras salas, ajudantes-de-ordens, ordenanças, contínuos,
|
||
cochilando, meio deitados e desabotoados. Tudo nele era desleixo e
|
||
moleza. Os cantos dos tetos tinham teias de aranha; dos tapetes,
|
||
quando pisados com mais força, subia uma poeira de rua mal varrida.
|
||
Quaresma não pudera vir logo, como anunciara no telegrama. Fora
|
||
preciso pôr em ordem os seus negócios, arranjar quem fizesse
|
||
companhia à irmã. Fizera Dona Adelaide mil objeções à sua partida;
|
||
mostrara-lhe os riscos da luta, da guerra, incompatíveis com a sua
|
||
idade e superiores à sua força; ele, porém, não se deixara abater,
|
||
fizera pé firme, pois sentia, indispensável, necessário que toda a
|
||
sua vontade, que toda a sua inteligência, que tudo o que ele tinha
|
||
de vida e atividade fosse posto à disposição do governo, para
|
||
então!... oh!
|
||
Aproveitara os dias até para redigir um memorial que ia entregar a
|
||
Floriano. Nele expunham-se as medidas necessárias para o
|
||
levantamento da agricultura e mostravam-se todos os entraves,
|
||
oriundos da grande propriedade, das exações fiscais, da carestia de
|
||
fretes, da estreiteza dos mercados e das violências políticas.
|
||
O major apertava o manuscrito na mão e lembrava-se da sua casa, lá
|
||
longe, no canto daquela planície feia, olhando, no poente, as
|
||
montanhas que se alongavam, se afilavam nos dias claros e
|
||
transparentes; lembrava-se de sua irmã, dos seus olhos verdes e
|
||
plácidos que o viram partir com uma impassibilidade que não era
|
||
natural; mas do que se lembrava mais, naquele momento, era do
|
||
Anastácio, o seu preto velho, o seu longo olhar, não mais com aquela
|
||
ternura passiva de animal doméstico, mas cheio de assombro, de
|
||
espanto e piedade, rolando muito nas órbitas as escleróticas muito
|
||
brancas, quando o viu penetrar no vagão da estrada de ferro, Parecia
|
||
que farejava desgraça... Não lhe era comum tal atitude e como que a
|
||
tomava por ter descoberto nas coisas sinais de dolorosos
|
||
acontecimentos a vir... Ora!...
|
||
Ficara Quaresma a um canto vendo entrar um e outro, à espera que o
|
||
presidente o chamasse. Era cedo, pouco devia faltar para o meio-dia,
|
||
e Floriano tinha ainda, como sinal do almoço, o palito na boca.
|
||
Falou em primeiro lugar a uma comissão de senhoras que vinham
|
||
oferecer o seu braço e o seu sangue em defesa das instituições e da
|
||
pátria. A oradora era uma mulher baixa, de busto curto, gorda, com
|
||
grandes seios altos e falava agitando o leque fechado na mão
|
||
direita.
|
||
Não se podia dizer bem qual a sua cor, sua raça, ao menos: andavam
|
||
tantas nela que uma escondia a outra, furtando toda ela a uma
|
||
classificação honesta.
|
||
Enquanto falava, a mulherzinha deitava sobre o marechal os grandes
|
||
olhos que despediam chispas. Floriano parecia incomodado com aquele
|
||
chamejar; era como se temesse derreter-se ao calor daquele olhar que
|
||
queimava mais sedução que patriotismo, Fingia encará-la, abaixava o
|
||
rosto como um adolescente, batia com os dedos na mesa...
|
||
Quando lhe chegou a vez de falar, levantou um pouco o rosto, mas sem
|
||
encarar a mulher, e, com um grosso e difícil sorriso de roceiro,
|
||
declinou da oferta, visto a República ainda dispor de bastante força
|
||
para vencer.
|
||
A última frase, ele a disse com mais vagar e quase ironicamente. As
|
||
damas despediram-se; o marechal girou olhar em torno do salão e deu
|
||
com Quaresma.
|
||
- Então, Quaresma? fez ele familiarmente.
|
||
O major ia aproximar-se, mas logo estacou no lugar em que estava.
|
||
Uma chusma de oficiais subalternos e cadetes cercou o ditador e a
|
||
sua atenção convergiu para eles. Não se ouvia o que diziam. Falavam
|
||
ao ouvido de Floriano, cochichavam, batiam-lhe nas espáduas. O
|
||
marechal quase não falava: movia com a cabeça ou pronunciava um
|
||
monossílabo, coisa que Quaresma percebia pela articulação dos
|
||
lábios.
|
||
Começaram a sair. Apertavam a mão do ditador e, um deles, mais
|
||
jovial, mais familiar, ao despedir-se, apertou-lhe com força a mão
|
||
mole, bateu-lhe no ombro com intimidade, e disse alto e com ênfase:
|
||
- Energia, marechal!
|
||
Aquilo tudo parecia tão natural, normal, tendo entrado no novo
|
||
cerimonial da República, que ninguém, nem o próprio Floriano, teve a
|
||
mínima surpresa, ao contrário alguns até sorriram alegres por ver o
|
||
califa, o cã, o emir, transmitir um pouco do que tinha de sagrado ao
|
||
subalterno desabusado. Não se foram todos imediatamente. Um deles
|
||
demorou-se mais a segredar coisas à suprema autoridade do país. Era
|
||
um cadete da Escola Militar, com a sua farda azul-turquesa, talim e
|
||
sabre de praça de pré.
|
||
Os cadetes da Escola Militar formavam a falange sagrada.
|
||
Tinham todos os privilégios e todos os direitos; precediam ministros
|
||
nas entrevistas com o ditador e abusavam dessa situação de esteio do
|
||
Sila, para oprimir e vexar a cidade inteira.
|
||
Uns trapos de positivismo se tinham colado naquelas inteligências e
|
||
uma religiosidade especial brotara-lhes no sentimento, transformando
|
||
a autoridade, especialmente Floriano e vagamente a República, em
|
||
artigo de fé, em feitiço, em ídolo mexicano, em cujo altar todas as
|
||
violências e crimes eram oblatas dignas e oferendas úteis para a sua
|
||
satisfação e eternidade.
|
||
O cadete lá estava...
|
||
Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia enfeixar
|
||
em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de
|
||
Imperador Romano, pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar
|
||
obstáculo algum aos seus caprichos, às suas fraquezas e vontades,
|
||
nem nas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana.
|
||
Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e
|
||
mole a que se agarrava uma grande “mosca”, os traços flácidos e
|
||
grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse
|
||
próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço,
|
||
redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era
|
||
individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso -
|
||
parecia não ter nervos.
|
||
Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o
|
||
caráter, a inteligência e o temperamento. Essas coisas não vogam,
|
||
disse ele de si para si.
|
||
O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e
|
||
desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e
|
||
supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do pais, manhoso
|
||
talvez um pouco, uma espécie de Luís XI forrado de um Bismarck.
|
||
Entretanto, não era assim. Com uma ausência total de qualidades
|
||
intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade
|
||
predominante: tibieza de ânimo, e no seu temperamento, muita
|
||
preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma
|
||
preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa,
|
||
provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo.
|
||
Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e
|
||
desamor às obrigações dos seus cargos.
|
||
Quando diretor do arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para
|
||
assinar o expediente respectivo; e durante o tempo em que foi
|
||
ministro da Guerra, passava meses e meses sem lá ir, deixando tudo
|
||
por assinar, pelo que “legou” ao seu substituto um trabalho
|
||
avultadíssimo.
|
||
Quem conhece a atividade papeleira de um Colbert, de um Napoleão, de
|
||
um Filipe II, de um Guilherme I, da Alemanha, em geral de todos os
|
||
grandes homens de Estado, não compreende o descaso florianesco pela
|
||
expedição de ordens, explicações aos subalternos,de suas vontades,
|
||
de suas vistas. Certamente necessárias deviam ser tais transmissões
|
||
para que o seu senso superior se fizesse sentir e influísse na
|
||
marcha das coisas governamentais e administrativas.
|
||
Dessa sua preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus
|
||
misteriosos monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos, as
|
||
famosas “encruzilhadas dos talvezes”, que tanto reagiram sobre a
|
||
inteligência e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes
|
||
homens.
|
||
Essa doentia preguiça fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele
|
||
aspecto de calma superior, calma de grande homem de Estado ou de
|
||
guerreiro extraordinário.
|
||
Toda a gente ainda se lembra como foram os seus primeiros meses de
|
||
governo. A braços com o levante de presos, praças e inferiores da
|
||
fortaleza de Santa Cruz, tendo mandado fazer um inquérito, abafou-o
|
||
com medo que as pessoas indicadas como instigadoras não fizessem
|
||
outra sedição, e, não contente com isto, deu a essas pessoas as
|
||
melhores e mais altas recompensas.
|
||
Demais, ninguém pode admitir um homem forte, um César, um Napoleão,
|
||
que permita aos subalternos aquelas intimidades deprimentes e tenha
|
||
com eles as condescendências que ele tinha, consentindo que o seu
|
||
nome servisse de lábaro para uma vasta série de crimes de toda
|
||
espécie.
|
||
Uma recordação basta. Sabe-se bem sob que atmosfera de má vontade
|
||
Napoleão assumiu o comando do exército da Itália. Augereau que o
|
||
chamava “general de rua”, disse a alguém, após lhe ter falado: “O
|
||
homem meteu-me medo”, e o corso estava senhor do exército, sem
|
||
batidelas no ombro, sem delegar tácita ou explicitamente a sua
|
||
autoridade a subalternos irresponsáveis.
|
||
De resto, a lentidão com que sufocou a revolta de 6 de setembro
|
||
mostra bem a incerteza, a vacilação de vontade de um homem que
|
||
dispunha daqueles extraordinários recursos que estavam às suas
|
||
ordens.
|
||
Há uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus
|
||
movimentos, atos e gestos. Era o seu amor à família, um amor
|
||
entranhado, alguma coisa de patriarcal, de antigo que já se vai
|
||
esvaindo com a marcha da civilização.
|
||
Em virtude de insucessos na exploração agrícola de duas das suas
|
||
propriedades, a sua situação particular era precária, e não queria
|
||
morrer sem deixar à família as suas propriedades agrícolas
|
||
desoneradas do peso das dívidas.
|
||
Honesto e probo como era, a única esperança que lhe restava,
|
||
repousava nas economias sobre os seus ordenados. Daí lhe veio essa
|
||
dubiedade, esse jogo com pau de dois bicos, jogo indispensável para
|
||
conservar os rendosos lugares que teve e o fez atarraxar-se
|
||
tenazmente à presidência da República. A hipoteca do “Brejão” e do
|
||
“Duarte” foi o seu nariz de Cleópatra...
|
||
A sua preguiça, a sua tibieza de ânimo e o seu amor fervoroso pelo
|
||
lar deram em resultado esse “homem-talvez” que, refratado nas
|
||
necessidades mentais e sociais dos homens do tempo, foi transformado
|
||
em estadista, em Richelieu e pôde resistir a uma séria revolta com
|
||
mais teimosia que vigor, obtendo vidas, dinheiro e despertando até
|
||
entusiasmo e fanatismo.
|
||
Esse entusiasmo e esse fanatismo, que o ampararam, que o animaram,
|
||
que o sustentaram, só teriam sido possíveis, depois de ter ele sido
|
||
ajudante general do Império, senador, ministro, isto é, após se ter
|
||
“fabricado” à vista de todos e cristalizado a lenda na mente de todos.
|
||
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia,
|
||
nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se
|
||
mal, castiga-se. Levada a coisa ao grande o portar-se mal era
|
||
fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas e o castigo não
|
||
eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte. Não há dinheiro no
|
||
Tesouro; ponham-se as notas recolhidas em circulação, assim como se
|
||
faz em casa quando chegam visitas e a sopa é pouca: põe-se mais água.
|
||
Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura deram mais
|
||
realce a essa concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto
|
||
por ele em si, pela sua perversidade natural, pelo seu desprezo pela
|
||
vida humana, mas pela fraqueza com que acobertou e não reprimiu a
|
||
ferocidade dos seus auxiliares e asseclas.
|
||
Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; ele com muitos homens
|
||
honestos e sinceros do tempo, foram tomados pelo entusiasmo
|
||
contagioso que Floriano conseguira despertar. Pensava na grande obra
|
||
que o Destino reservava àquela figura plácida e triste; na reforma
|
||
radical que ele ia levar ao organismo aniquilado da pátria, que o
|
||
major se habituara a crer a mais rica do mundo, embora, de uns
|
||
tempos para cá, já tivesse dúvidas a certos respeitos.
|
||
Decerto, ele não negaria tais esperanças e a sua ação poderosa havia
|
||
de se fazer sentir pelos oito milhões de quilômetros quadrados do
|
||
Brasil, levando-lhes estradas, segurança, proteção aos fracos,
|
||
assegurando o trabalho e promovendo a riqueza.
|
||
Não se demorou muito nessa ordem de pensamentos. Um seu nheiro
|
||
de espera, desde que o marechal lhe falou familiarmente, começou a
|
||
considerar aquele homem pequenino, taciturno, de pince-nez e foi-se
|
||
chegando, se aproximando e, quando já perto, disse a Quaresma, quase
|
||
como um terrível segredo.
|
||
- Eles vão ver o “caboclo”... O major há muito que o conhece?
|
||
Respondeu-lhe o major e o outro ainda lhe fez uma outra pergunta; o
|
||
presidente, porém, ficara só e Quaresma avançou.
|
||
- Então, Quaresma? fez Floriano.
|
||
- Venho oferecer a Vossa Excelência os meus fracos préstimos.
|
||
O presidente considerou um instante aquela pequenez de homem, sorriu
|
||
com dificuldade, mas, levemente, com um pouco de satisfação. Sentiu
|
||
por aí a força de sua popularidade e senão a razão boa de sua causa.
|
||
- Agradeço-te muito... Onde tens andado? Sei que deixaste o
|
||
arsenal.
|
||
Floriano tinha essa capacidade de guardar fisionomias, nomes,
|
||
empregos, situações dos subalternos com quem lidava. Tinha alguma
|
||
coisa de asiático; era cruel e paternal ao mesmo tempo.
|
||
Quaresma explicou-lhe a sua vida e aproveitou a ocasião para lhe
|
||
falar em leis agrárias, medidas tendentes a desafogar e dar novas
|
||
bases à nossa vida agrícola. O marechal ouviu-o distraído, com uma
|
||
dobra de aborrecimento no canto dos lábios.
|
||
- Trazia a Vossa Excelência até este memorial...
|
||
O presidente teve um gesto de mau humor, um quase “não me amole” e
|
||
disse com preguiça a Quaresma:
|
||
- Deixa aí...
|
||
Depositou o manuscrito sobre a mesa e logo o ditador dirigiu-se ao
|
||
interlocutor de ainda agora:
|
||
- Que há, Bustamante? E o batalhão, vai?
|
||
O homem aproximou-se mais, um tanto amedrontado:
|
||
- Vai bem, marechal. Precisamos de um quartel!... Se Vossa
|
||
Excelência desse ordem...
|
||
- É exato. Fala ao Rufino em meu nome que ele pode arranjar... Ou
|
||
antes: leva-lhe este bilhete.
|
||
Rasgou um pedaço de uma das primeiras páginas do manuscrito de
|
||
Quaresma, e assim mesmo, sobre aquela ponta de papel, a lápis azul,
|
||
escreveu algumas palavras ao seu ministro da Guerra. Ao acabar é que
|
||
deu com a desconsideração:
|
||
- Ora! Quaresma! rasguei o teu escrito... Não faz mal... Era a
|
||
parte de cima, não tinha nada escrito.
|
||
O major confirmou e o presidente, em seguida, voltando-se para
|
||
Bustamante:
|
||
- Aproveita Quaresma no teu batalhão. Que posto queres?
|
||
- Eu! fez Quaresma estupidamente.
|
||
- Bem. Vocês lá se entendem.
|
||
Os dois se despediram do presidente e desceram vagarosamente as
|
||
escadas do Itamarati. Até à rua nada disseram um ao outro. Quaresma
|
||
vinha um pouco frio, O dia estava claro e quente; o movimento da
|
||
cidade parecia não ter sofrido alteração apreciável. Havia a mesma
|
||
agitação de bondes, carros e carroças; mas nas fisionomias, um
|
||
terror, um espanto, alguma coisa de tremendo ameaçava todos e
|
||
parecia estar suspenso no ar.
|
||
Bustamante deu-se a conhecer. Era o Major Bustamante, agora
|
||
tenente-coronel, velho amigo do marechal, seu companheiro do
|
||
Paraguai.
|
||
- Mas nós nos conhecemos! exclamou ele.
|
||
Quaresma esteve olhando aquele velho mulato escuro, com uma grande
|
||
barba mosaica e olhos espertos, mas não se lembrou de tê-lo já
|
||
encontrado algum dia.
|
||
- Não me recordo... Donde?
|
||
- Da casa do General Albernaz... Não se lembra?
|
||
Policarpo então teve uma vaga recordação e o outro explicou-lhe a
|
||
formação do seu batalhão patriótico “Cruzeiro do Sul”.
|
||
- O senhor quer fazer parte?
|
||
- Pois não, fez Quaresma.
|
||
- Estamos em dificuldades... Fardamento, calçado para as praças...
|
||
Nas primeiras despesas devemos auxiliar o governo... Não convém
|
||
sangrar o Tesouro, não acha?
|
||
- Certamente, disse com entusiasmo Quaresma.
|
||
- Folgo muito que o senhor concorde comigo... Vejo que é um
|
||
patriota...” Resolvi por isso fazer um rateio pelos oficiais, em
|
||
proporção ao posto: um alferes concorre com cem mil-réis, um tenente
|
||
com duzentos... O senhor que patente quer? Ah! É verdade! O senhor é
|
||
major, não é?
|
||
Quaresma então explicou por que o tratavam por major. Um amigo,
|
||
influência no Ministério do Interior, lhe tinha metido o nome numa
|
||
lista de guardas-nacionais, com esse posto. Nunca tendo pago os
|
||
emolumentos, viu-se, entretanto, sempre tratado major, e a coisa
|
||
pegou. A princípio, protestou, mas como teimassem deixou.
|
||
- Bem, fez Bustamante. O senhor fica mesmo sendo major.
|
||
- Qual é a minha quota?
|
||
- Quatrocentos mil-réis. Um pouco forte, mas... O senhor sabe; é um
|
||
posto importante... Aceita?
|
||
- Pois não.
|
||
Bustamante tirou a carteira, tomou nota com uma pontinha de lápis e
|
||
despediu-se jovialmente:
|
||
- Então, major, às seis, no quartel provisório.
|
||
A conversa se havia passado na esquina da Rua Larga com o Campo de
|
||
Sant’Ana. Quaresma pretendia tomar um bonde que o levasse ao centro
|
||
da cidade. Tencionava visitar o compadre em Botafogo, fazendo,
|
||
assim, horas para a sua iniciação militar.
|
||
A praça estava pouco transitada; os bondes passavam ao chouto
|
||
compassado das mulas; de quando em quando ouvia-se um toque de
|
||
corneta, rufos de tambor, e do portão central do quartel-general
|
||
saía uma força, armas ao ombro, baionetas caladas, dançando nos
|
||
ombros dos recrutas, faiscando com um brilho duro e mau.
|
||
Ia tomar o bonde, quando se ouviram alguns disparos de artilharia e
|
||
o seco espoucar dos fuzis. Não durou muito; antes que o bonde
|
||
atingisse à Rua da Constituição, todos os rumores guerreiros tinham
|
||
cessado, e quem não estivesse avisado havia de supor-se em tempos
|
||
normais.
|
||
Quaresma chegou-se para o centro do banco e ia ler o jornal que
|
||
comprara. Desdobrou-o vagarosamente, mas foi logo interrompido;
|
||
bateram- lhe no ombro. Voltou-se.
|
||
- Oh! general!
|
||
O encontro foi cordial. O General Albernaz gostava dessas cerimônias
|
||
e tinha mesmo um prazer, uma deliciosa emoção em reatar
|
||
conhecimentos que se tinham enfraquecido por uma separação qualquer.
|
||
Estava fardado, com aquele seu uniforme maltratado; não trazia
|
||
espada e o pince- nez continuava preso por um trancelim de ouro que
|
||
lhe passava por detrás da orelha esquerda.
|
||
- Então veio ver a coisa?
|
||
- Vim. Já me apresentei ao marechal,
|
||
- “Eles” vão ver com quem se meteram. Pensam que tratam com o
|
||
Deodoro, enganam-se!... A República, graças a Deus, tem agora um
|
||
homem na sua frente... O “caboclo” é de ferro”... No Paraguai...
|
||
- O senhor conheceu-o lá, não, general?
|
||
- Isto é... Não chegamos a nos encontrar, mas o Camisão... É duro,
|
||
o homem. Estou como encarregado das munições... É fino o “caboclo”:
|
||
não me quis no litoral. Sabe muito bem quem sou e que munição que
|
||
saia das minhas mãos, é munição... Lá, no depósito, não me sai um
|
||
caixote que eu não examine... É necessário... No Paraguai, houve
|
||
muita desordem e comilança: mandou-se muita cal por pólvora - não
|
||
- Não.
|
||
- Pois foi. O meu gosto era ir para as praias, para o combate; mas
|
||
o “homem” quer que eu fique com as munições... Capitão manda,
|
||
marinheiro faz... Ele sabe lá...
|
||
Deu de ombros, concertou o trancelim que já caía da orelha e esteve
|
||
calado um instante. Quaresma perguntou:
|
||
- Como vai a família?
|
||
- Bem. Sabe que Quinota casou-se?
|
||
- Sabia, o Ricardo me disse. E Dona Ismênia, como vai?
|
||
A fisionomia do general toldou-se e respondeu como a contragosto:
|
||
- Vai no mesmo.
|
||
O pudor de pai tinha-o impedido de dizer toda a verdade. A filha
|
||
enlouquecera de uma loucura mansa e infantil. Passava dias inteiros
|
||
calada, a um canto, olhando estupidamente tudo, com um olhar morto
|
||
de estátua, numa atonia de inanimado, como que caíra em
|
||
imbecilidade; mas vinha uma hora, porém, em que se penteava toda,
|
||
enfeitava-se e corria à mãe, dizendo: “Apronta-me, mamãe. O meu
|
||
noivo não deve tardar... é hoje o meu casamento.” Outras vezes
|
||
recortava papel, em forma de participações, e escrevia: Ismênia de
|
||
Albernaz e Fulano (variava) participam o seu casamento.
|
||
O general já consultara uma dúzia de médicos, o espiritismo e agora
|
||
andava às voltas com um feiticeiro milagroso; a filha, porém, não
|
||
sarava, não perdia a mania e cada vez mais se embrenhava o seu
|
||
espírito naquela obsessão de casamento, alvo que fizeram ser da sua
|
||
vida, a que não atingira, aniquilando-se, porém, o seu espírito e a
|
||
sua mocidade em pleno verdor.
|
||
Entristecia o seu estado aquela casa outrora tão alegre, tão
|
||
festiva. Os bailes tinham diminuído; e, quando eram obrigados a dar
|
||
um, nas datas principais, a moça, com todos os cuidados, à custa de
|
||
todas as promessas, era levada para a casa da irmã casada, e lá
|
||
ficava, enquanto as outras dançavam, um instante esquecidas da irmã que
|
||
|
||
Albernaz não quis revelar aquela dor de sua velhice; reprimiu a
|
||
emoção e continuou no tom mais natural, naquele seu tom familiar e
|
||
íntimo que usava com todos:
|
||
- Isto é uma infâmia, Senhor Quaresma. Que atraso para o país! E os
|
||
prejuízos? Um porto destes fechado ao comércio nacional, quantos
|
||
anos de retardamento não representa!
|
||
O major concordou e mostrou a necessidade de prestigiar o Governo,
|
||
de forma a tornar impossível a reprodução de levantes e
|
||
insurreições.
|
||
- Decerto, aduziu o general. Assim não progredimos, não nos
|
||
adiantamos. E no estrangeiro que mau efeito!
|
||
O bonde chegara ao Largo de São Francisco e os dois se separaram.
|
||
Quaresma foi direitinho ao Largo da Carioca e Albernaz seguiu para a
|
||
Rua do Rosário.
|
||
Olga viu entrar seu padrinho sem aquela alegria expansiva de sempre.
|
||
Não foi indiferença que sentiu, foi espanto, assombro, quase medo,
|
||
embora soubesse perfeitamente que ele estava a chegar. Entretanto,
|
||
não havia mudança na fisionomia de Quaresma, no seu corpo, em todo
|
||
ele. Era o mesmo homem baixo, pálido, com aquele cavanhaque apontado
|
||
e o olhar agudo por detrás do pince-nez... Nem mesmo estava mais
|
||
queimado e o jeito de apertar os lábios era o mesmo que ela conhecia
|
||
há tantos anos. Mas, parecia-lhe mudado e ter entrado impelido,
|
||
empurrado por uma força estranha, por um turbilhão; bem examinando,
|
||
entretanto, verificou que ele entrara naturalmente, com o seu passo
|
||
miúdo e firme. Donde lhe vinha então essa coisa que a acanhava, que
|
||
lhe tirara a sua alegria de ver pessoa tão amada? Não atinou. Estava
|
||
lendo na sala de jantar e Quaresma não se fazia anunciar; ia
|
||
entrando conforme o velho hábito. Respondeu ao padrinho ainda sob a
|
||
dolorosa impressão da sua entrada.
|
||
- Papai saiu; e o Armando está lá embaixo escrevendo.
|
||
De fato, ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia
|
||
para o “clássico” um grande artigo sobre “Ferimentos por arma de
|
||
fogo”. O seu último truc intelectual era este do clássico. Buscava
|
||
nisto uma distinção, uma separação intelectual desses meninos por aí
|
||
que escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e
|
||
sobretudo, um doutor, não podia escrever da mesma forma que eles. A
|
||
sua sabedoria superior e o seu título “acadêmico” não podia usar da
|
||
mesma língua, dos mesmos modismos, da mesma sintaxe que esses
|
||
poetastros e literatecos. Veio-lhe então a idéia do clássico. O
|
||
processo era simples: escrevia do modo comum, com as palavras e o
|
||
jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com
|
||
vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor,
|
||
isto por esto, quão grande ou tão grande por quamanho, sarapintava
|
||
tudo de ao invés, empós, e assim obtinha o seu estilo clássico que
|
||
começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral.
|
||
Gostava muito da expressão - às rebatinhas; usava-a a todo momento
|
||
e, quando a punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu
|
||
estilo uma força e um brilho pascalianos e às suas idéias uma
|
||
suficiência transcendente. De noite, lia o padre Vieira, mas logo às
|
||
primeiras linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se “físico”,
|
||
tratado de mestre, em pleno Seiscentos, prescrevendo sangria e água
|
||
quente, tal e qual o doutor Sangrado.
|
||
A sua tradução estava quase no fim, já estava bastante prático, pois
|
||
com o tempo adquirira um vocabulário suficiente e a versão era feita
|
||
mentalmente, em quase metade, logo na primeira escrita. Recebeu o
|
||
recado da mulher, anunciando-lhe a visita, com um pequeno
|
||
aborrecimento, mas, como teimasse em não encontrar um equivalente
|
||
clássico para “orifício”, julgou útil a interrupção. Queria pôr
|
||
“buraco”, mas era plebeu; “orifício”, se bem que muito usado, era,
|
||
entretanto, mais digno. Na volta talvez encontrasse, pensou; e subiu
|
||
à sala de jantar. Ele entrou prazenteiro, com o seu grande bigode
|
||
esfarelado, o seu rosto redondo e encontrou padrinho e afilhada
|
||
empenhados em uma discussão sobre autoridade.
|
||
Dizia ela:
|
||
- Eu não posso compreender esse tom divino com que os senhores
|
||
falam da autoridade. Não se governa mais em nome de Deus, por que
|
||
então esse respeito, essa veneração de que querem cercar os
|
||
governantes?
|
||
O doutor, que ouvira toda a frase, não pôde deixar de objetar:
|
||
- Mas é preciso, indispensável... Nós sabemos bem que eles são
|
||
homens como nós, mas, se não for assim tudo vai por água abaixo.
|
||
Quaresma acrescentou:
|
||
- É em virtude das próprias necessidades internas e externas da
|
||
nossa sociedade que ela existe... Nas formigas, nas abelhas...
|
||
- Admito. Mas há revoltas entre as abelhas e formigas, e a
|
||
autoridade se mantém lá à custa de assassínios, exações e
|
||
violências?
|
||
- Não se sabe... Quem sabe? Talvez... fez evasivamente Quaresma.
|
||
O doutor não teve dúvidas e foi logo dizendo:
|
||
- Que temos nós com as abelhas? Então nós, os homens, o pináculo da
|
||
escala zoológica, iremos buscar normas de vida entre insetos?
|
||
- Não é isso, meu caro doutor; buscamos nos exemplos deles a
|
||
certeza da generalidade do fenômeno, da sua imanência, por assim
|
||
dizer, disse Quaresma com doçura.
|
||
Ele não tinha acabado a explicação e já Olga refletia:
|
||
- Ainda se essa tal autoridade trouxesse felicidade - vá; mas não;
|
||
de que vale?
|
||
- Há de trazer, afirmou categoricamente Quaresma. A questão é
|
||
consolidá-la.
|
||
Conversaram ainda muito tempo. O major contou a sua visita a
|
||
Floriano, a sua próxima incorporação ao batalhão “Cruzeiro do Sul”.
|
||
O doutor teve uma ponta de inveja, quando ele se referiu ao modo
|
||
familiar por que Floriano o tratara. Fizeram um pequeno lunch e
|
||
Quaresma saiu.
|
||
Sentia necessidade de rever aquelas ruas estreitas, com as suas
|
||
lojas profundas e escuras, onde os empregados se moviam como em um
|
||
subterrâneo. A tortuosa Rua dos Ourives, a esburacada Rua da
|
||
Assembléia, a casquilha Rua do Ouvidor davam-lhe saudades.
|
||
A vida continuava a mesma. Havia grupos parados e moças a passeio;
|
||
no Café do Rio, uma multidão. Eram os avançados, os “jacobinos”, a
|
||
guarda abnegada da República, os intransigentes, a cujos olhos, a
|
||
moderação, a tolerância e o respeito pela liberdade e a vida alheias
|
||
eram crimes de lesa-pátria, sintomas de monarquismo criminoso e
|
||
abdicação desonesta diante do estrangeiro. O estrangeiro era
|
||
sobretudo o português, o que não impedia de haver jornais
|
||
“jacobiníssimos” redigidos por portugueses da mais bela água.
|
||
A não ser esse grupo gesticulante e apaixonado, a Rua do Ouvidor era
|
||
a mesma. Os namoros se faziam e as moças iam e vinham. Se uma bala
|
||
zunia no alto céu azul, luminoso, as moças davam gritinhos de gata,
|
||
corriam para dentro das lojas, esperavam um pouco e logo voltavam
|
||
sorridentes, o sangue a subir às faces pouco e pouco, depois da
|
||
palidez do medo.
|
||
Quaresma jantou num restaurant e dirigiu-se ao quartel, que
|
||
funcionava provisoriamente num velho cortiço condenado pela higiene,
|
||
lá pelos lados da Cidade Nova. Tinha o tal cortiço andar térreo e
|
||
sobrado, ambos divididos em cubículos do tamanho de camarotes de
|
||
navio. No sobrado, havia uma varanda de grade de pau e uma escada de
|
||
madeira levava até lá, escada tosca e oscilante, que gemia à menor
|
||
passada. A casa da ordem funcionava no primeiro quartinho do sobrado
|
||
e o pátio, já sem as cordas de secar ao sol a roupa, mas com as
|
||
pedras manchadas das barrelas e da água de sabão, servia para a
|
||
instrução dos recrutas. O instrutor era um sargento reformado, um
|
||
tanto coxo, e admitido no batalhão com o posto de alferes, que
|
||
gritava com uma demora majestosa: “om - brô”... armas!
|
||
O major entregou a sua quota ao coronel e este esteve a mostrar-lhe
|
||
o modelo do fardamento.
|
||
Era muito singular essa fantasia de seringueiro: o dólmã era
|
||
verdegarrafa e tinha uns vivos azul-ferrete, alamares dourados e
|
||
quatro estrelas prateadas, em cruz, na gola.
|
||
Uma gritaria fê-los vir até à varanda. Entre soldados entrava um
|
||
homem, a se debater, a chorar e a implorar, ao mesmo tempo, levando
|
||
de quando em quando uma reflada.
|
||
- É o Ricardo! exclamou Quaresma. O senhor não o conhece, coronel?
|
||
continuou ele com interesse e piedade.
|
||
Bustamante estava impassível na varanda e só respondeu depois de
|
||
algum tempo:
|
||
- Conheço... É um voluntário recalcitrante, um patriota rebelde.
|
||
Os soldados subiram com o “voluntário” e Ricardo logo que deu com o
|
||
major, suplicou-lhe:
|
||
- Salve-me major!
|
||
Quaresma chamou de parte o coronel, rogou-lhe e suplicou-lhe, mas
|
||
foi inútil... Há necessidade de gente... Enfim, fazia-o cabo.
|
||
Ricardo, de longe, seguia a conversa dos dois: adivinhou a recusa e
|
||
exclamou:
|
||
- Eu sirvo sim, sim, mas dêem-me o meu violão.
|
||
Bustamante perfilou-se e gritou aos soldados:
|
||
- Restituam o violão ao cabo Ricardo!
|
||
II
|
||
VOCÊ, QUARESMA, É UM VISIONÁRIO
|
||
Oito horas da manhã. A cerração ainda envolve tudo. Do lado da
|
||
terra, mal se enxergam as partes baixas dos edifícios próximos; para
|
||
o lado do mar, então, a vista é impotente contra aquela treva
|
||
esbranquiçada e flutuante, contra aquela muralha de flocos e opaca,
|
||
que se condensa ali e aqui em aparições, em semelhanças de coisas. O
|
||
mar está silencioso: há grandes intervalos entre o seu fraco
|
||
marulho. Vê-se da praia um pequeno trecho, sujo, coberto de algas, e
|
||
o odor da maresia parece mais forte com a neblina. Para a esquerda e
|
||
para a direita, é o desconhecido, o Mistério. Entretanto, aquela
|
||
pasta espessa, de uma claridade difusa, está povoada de ruídos. O
|
||
chiar das serras vizinhas, os apitos de fábricas e locomotivas, os
|
||
guinchos de guindastes dos navios enchem aquela manhã indecifrável e
|
||
taciturna; e ouve-se mesmo a bulha compassada de remos que ferem o
|
||
mar. Acredita-se, dentro daquele decoro, que é Caronte que traz a
|
||
sua barca para uma das margens do Estige...
|
||
Atenção! Todos perscrutam a cortina de névoa pastosa. Os rostos
|
||
estão alterados; parece que do seio da bruma vão surgir demônios...
|
||
Não se ouve mais a bulha: o escaler afastou-se. As fisionomias
|
||
respiram aliviadas...
|
||
Não é noite, não é dia; não é o dilúculo, não é o crepúsculo; é a
|
||
hora da angústia, é a luz da incerteza. No mar, não há estrelas nem
|
||
sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro às paredes
|
||
brancas das casas. A nossa miséria é mais completa e a falta
|
||
daqueles mudos marcos da nossa atividade dá mais forte percepção do
|
||
nosso isolamento no seio da natureza grandiosa.
|
||
Os ruídos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da
|
||
terra ou são alucinações auditivas, A realidade só nos vem do pedaço
|
||
de mar que se avista, marulhando com grandes intervalos, fracamente,
|
||
tenuemente, a medo, de encontro à areia da praia, suja de bodelhas,
|
||
algas e sargaços.
|
||
Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela
|
||
relva que continua a praia. Alguns já cochilam; outros procuram com
|
||
os olhos o céu através do nevoeiro que lhes umedece o rosto.
|
||
O cabo Ricardo Corado dos Outros, de refle à cintura e gorro à
|
||
cabeça, sentado numa pedra, está de parte, sozinho, e olha aquela
|
||
manhã angustiosa.
|
||
Era a primeira vez que via a cerração assim perto do mar, onde ela
|
||
faz sentir toda a sua força de desesperar. Em geral, ele só tinha
|
||
olhos para as alvoradas claras e purpurinas, macias e fragrantes;
|
||
aquele amanhecer brumoso e feio, era uma novidade para ele.
|
||
Sob o fardamento de cabo, o menestrel não se aborrece. Aquela vida
|
||
solta da caserna vai-lhe bem n’alma; o violão está lá dentro e, em
|
||
horas de folga, ele o experimenta, cantarolando em voz baixa. É
|
||
preciso não enferrujar os dedos... O seu pequeno aborrecimento é não
|
||
poder, de quando em quando, soltar o peito.
|
||
O comandante do destacamento é Quaresma que talvez consentisse...
|
||
O major está no interior da casa que serve de quartel, lendo. O seu
|
||
estudo predileto é agora artilharia. Comprou compêndios; mas, como
|
||
sua instrução é insuficiente, da artilharia vai à balística, da
|
||
balística à mecânica, da mecânica ao cálculo e à geometria
|
||
analítica; desce mais a escada; vai à trigonometria, à geometria e à
|
||
álgebra e à aritmética. Ele percorre essa cadeia de ciências
|
||
entrelaçadas com uma fé de inventor. Aprende uma noção
|
||
elementaríssima após um rosário de consultas, de compêndio em
|
||
compêndio; e leva assim aqueles dias de ócio guerreiro enfronhado na
|
||
matemática, nessa matemática rebarbativa e hostil aos cérebros que
|
||
já não são mais moços.
|
||
Há no destacamento um canhão Krupp, mas ele nada tem a ver com o
|
||
mortífero aparelho; contudo, estuda artilharia. É encarregado dele o
|
||
Tenente Fontes, que não dá obediência alguma ao patriota major.
|
||
Quaresma não se incomoda com isso; vai aprendendo lentamente a
|
||
servir-se da boca de fogo e submete-se à arrogância do subalterno.
|
||
O comandante do “Cruzeiro do Sul”, o Bustamante da barba mosaica,
|
||
continua no quartel, superintendendo a vida do batalhão. A unidade
|
||
tem poucos oficiais e muito poucas praças; mas o Estado paga o pré
|
||
de quatrocentas. Há falta de capitães, o número de alferes está
|
||
justo, o de tenentes quase, mas já há um major, que é Quaresma, e o
|
||
comandante, Bustamante, que, por modéstia, se fez simplesmente
|
||
tenente-coronel.
|
||
Tem quarenta praças o destacamento que Quaresma comanda, três
|
||
alferes, dois tenentes; mas os oficiais pouco aparecem. Estão
|
||
doentes ou licenciados e só ele, o antigo agricultor do “Sossego”, e
|
||
um alferes, Polidoro, este mesmo só à noite, estão a postos. Um
|
||
soldado entrou:
|
||
- Senhor comandante, posso ir almoçar?
|
||
- Pode. Chama-me o cabo Ricardo.
|
||
A praça saiu capengando em cima de grandes botinas; o pobre homem
|
||
usava aquela peça protetora como um castigo. Assim que se viu no
|
||
mato, que levava à sua casa, tirou-as e sentiu pelo rosto o sopro da
|
||
liberdade.
|
||
O comandante chegou à janela. A cerração se ia dissipando. Já se via
|
||
o sol que brilhava como um disco de ouro fosco.
|
||
Ricardo Coração dos Outros apareceu. Estava engraçado dentro do seu
|
||
fardamento de caporal. A blusa era curtíssima, sungada; os punhos
|
||
lhe apareciam inteiramente; e as calças eram compridíssimas e
|
||
arrastavam no chão.
|
||
- Como vais, Ricardo?
|
||
- Bem. E o senhor major?
|
||
- Assim.
|
||
Quaresma deitou sobre o inferior e amigo, aquele seu olhar agudo e
|
||
demorado:
|
||
- Andas aborrecido, não é?
|
||
O trovador sentiu-se alegre com o interesse do comandante:
|
||
- Não... Para que dizer, major, que sim... Se a coisa for assim até
|
||
ao fim, não é mau... O diabo é quando há tiro... Uma coisa, major;
|
||
não se poderia, assim, aí pelas horas em que não há que fazer, ir
|
||
nas mangueiras, cantar um pouco...
|
||
O major coçou a cabeça, alisou o cavanhaque e disse:
|
||
- Eu, não sei... É...
|
||
- O senhor sabe que isto de cantar baixo é remar em seco... Dizem
|
||
que no Paraguai...
|
||
- Bem. Cante lá; mas não grite, hein?
|
||
Calaram-se um pouco; Ricardo ia partir quando o major recomendou:
|
||
- Manda-me trazer o almoço.
|
||
Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro também dormir.
|
||
As refeições eram-lhe fornecidas por um “frege” próximo e ele dormia
|
||
em um quarto daquela edificação imperial. Porque a casa em que se
|
||
acantonara o destacamento, era o pavilhão do imperador, situado na
|
||
antiga Quinta da Ponta do Caju. Ficavam nela também a estação da
|
||
estrada de ferro do Rio Douro e uma grande e bulhenta serraria.
|
||
Quaresma veio até à porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o
|
||
imperador a quisesse para banhos. A cerração se ia dissipando
|
||
inteiramente.
|
||
As formas das coisas saíam modeladas do seio daquela massa de névoa
|
||
pesada; e, satisfeitas, como se o pesadelo tivesse passado. Primeiro
|
||
surgiam as partes baixas, lentamente; e por fim, quase
|
||
repentinamente, as altas.
|
||
À direita, havia a Saúde, a Gamboa, os navios de comércio: galeras
|
||
de três mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos à vela - que
|
||
iam saindo da bruma, e, por instantes aquilo tudo tinha um ar de
|
||
paisagem holandesa; à esquerda, era o saco da Raposa, o Retiro
|
||
Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Órgãos azuis,
|
||
altos de tocar no céu; em frente, a ilha dos Ferreiros, com os seus
|
||
depósitos de carvão; e alongando a vista pelo mar sossegado,
|
||
Niterói, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céu azul, à luz
|
||
daquela manhã atrasada.
|
||
A neblina foi-se e um galo cantou. Era como se a alegria voltasse à
|
||
terra; era uma aleluia. Aqueles chiados, aqueles apitos, os guinchos
|
||
tinham um acento festivo de contentamento.
|
||
Chegou o almoço e o sargento veio dizer a Quaresma que havia duas
|
||
deserções.
|
||
- Mais duas? fez admirado o major.
|
||
- Sim, senhor. O cento e vinte e cinco e o trezentos e vinte não
|
||
responderam hoje a revista.
|
||
- Faça a parte.
|
||
Quaresma almoçava. O Tenente Fontes, o homem do canhão, chegou.
|
||
Quase nunca dormia ali; pernoitava em casa, e, durante o dia, vinha
|
||
ver as coisas como iam.
|
||
Uma madrugada, ele não estava. A treva ainda era profunda. O soldado
|
||
de vigia viu lá, ao longe, um vulto que se movia dentro da sombra,
|
||
resvalando sobre as águas do mar. Não trazia luz alguma: só o
|
||
movimento daquela mancha escura revelava uma embarcação, e também a
|
||
ligeira fosforescência das águas. O soldado deu rebate; o pequeno
|
||
destacamento pôs-se a postos e Quaresma apareceu.
|
||
- O canhão! Já! Avante! ordenou o comandante. E, em seguida,
|
||
nervoso, recomendou:
|
||
- Esperem um pouco.
|
||
Correu a casa e foi consultar os seus compêndios e tabelas.
|
||
Demorouse e a lancha avançava, os soldados estavam tontos e um deles
|
||
tomou a iniciativa: carregou a peça e disparou-a.
|
||
Quaresma reapareceu correndo, assustado e disse, entrecortado pelo
|
||
resfolegar:
|
||
- Viram bem... a distância... a alça... o ângulo... É preciso ter
|
||
sempre em vista a eficiência do fogo.
|
||
Fontes veio e sabendo do caso no dia seguinte riu-se muito:
|
||
- Ora, major, você pensa que está em um polígono, fazendo estudos
|
||
práticos... Fogo para diante!
|
||
E assim era. Quase todas as tardes havia bombardeio, do mar para as
|
||
fortalezas, e das fortalezas para o mar; e tanto os navios como os
|
||
fortes saiam incólumes de tão terríveis provas.
|
||
Lá vinha uma ocasião, porém, que acertavam, então os jornais
|
||
noticiavam: “Ontem, o forte Acadêmico fez um maravilhoso disparo.
|
||
Com o canhão tal, meteu uma bala no ‘Guanabara’.” No dia seguinte, o
|
||
mesmo jornal retificava, a pedido da bateria do cais Pharoux que era
|
||
a que tinha feito o disparo certeiro. Passavam-se dias e a coisa já
|
||
estava esquecida, quando aparecia uma carta de Niterói, reclamando
|
||
as honras do tiro para a fortaleza de Santa Cruz.
|
||
O Tenente Fontes chegou e esteve examinando o canhão com o faro de
|
||
entendedor. Havia uma trincheira de fardos de alfafa e a boca da
|
||
peça saía por entre os fiapos da palha, como as goelas de um animal
|
||
feroz oculto entre ervas.
|
||
Olhava o horizonte, depois de exame atento ao canhão, e considerava
|
||
a ilha das Cobras, quando ouviu o gemer do violão e uma voz que
|
||
dizia:
|
||
Prometo pelo Santíssimo Sacramento...
|
||
Dirigiu-se para o local donde partiam os sons e se lhe deparou este
|
||
lindíssimo quadro: à sombra de uma grande árvore, os soldados
|
||
deitados ou sentados em círculo, em torno de Ricardo Coração dos
|
||
Outros, que entoava endechas magoadas.
|
||
As praças tinham acabado de almoçar e beber a pinga, e estavam tão
|
||
embevecidas na canção de Ricardo que não deram pela chegada do jovem
|
||
oficial.
|
||
- Que é isto? disse ele severamente.
|
||
Os soldados levantaram-se todos, em continência; e Ricardo, com a
|
||
mão direita no gorro, perfilado, e a esquerda, segurando o violão,
|
||
que repousava no chão, desculpou-se:
|
||
- “Seu” tenente, foi o major quem permitiu. Vossa Senhoria sabe que
|
||
se nós não tivéssemos ordem, não iríamos brincar.
|
||
- Bem. Não quero mais isto, disse o oficial.
|
||
- Mas, objetou Ricardo, o Senhor Major Quaresma...
|
||
- Não temos aqui Major Quaresma. Não quero, já disse!
|
||
Os soldados debandaram e o Tenente Fontes seguiu para a velha casa
|
||
imperial, ao encontro do major do “Cruzeiro do Sul”. Quaresma
|
||
continuava no seu estudo, um rolar de Sísifo, mas voluntário, para a
|
||
grandeza da pátria. Fontes foi entrando e dizendo:
|
||
- Que é isto, “Seu” Quaresma! Então o senhor permite cantorias no
|
||
destacamento?
|
||
O major não se lembrava mais da coisa e ficou espantado com o ar
|
||
severo e ríspido do moço. Ele repetiu:
|
||
- Então o senhor permite que os inferiores cantem modinhas e toquem
|
||
violão, em pleno serviço?
|
||
- Mas que mal faz? Ouvi dizer que em campanha...
|
||
- E a disciplina? E o respeito?
|
||
- Bem, vou proibir, disse Quaresma.
|
||
- Não é preciso. Já proibi.
|
||
Quaresma não se deu por agastado, não percebeu motivo para
|
||
agastamento e disse com doçura:
|
||
- Fez bem.
|
||
Em seguida perguntou ao oficial o modo de extrair a raiz quadrada de
|
||
uma fração decimal; o rapaz ensinou-lhe e eles estiveram
|
||
cordialmente conversando sobre coisas vulgares. Fontes era noivo de
|
||
Lalá, a terceira filha do General Albernaz, e esperava acabar a
|
||
revolta para efetuar o casamento. Durante uma hora a conversa entre
|
||
os dois versou sobre este pequenino fato familiar a que estavam
|
||
ligados aqueles estrondos, aqueles tiros, aquela solene disputa
|
||
entre duas ambições. Subitamente, a corneta feriu o ar com a sua voz
|
||
metálica. Fontes assestou o ouvido; o major perguntou:
|
||
- Que toque é?
|
||
- Sentido.
|
||
Os dois saíram. Fontes perfeitamente fardado; e o major apertando o
|
||
talim, sem encontrar jeito, tropeçando na espada venerável que
|
||
teimava em se lhe meter entre as pernas curtas. Os soldados já
|
||
estavam nas trincheiras, armas à mão; o canhão tinha ao lado a
|
||
munição necessária. Uma lancha avançava lentamente, com a proa alta
|
||
assestada para o posto. De repente, saiu de sua borda um golfão de
|
||
fumaça espessa: Queimou! - gritou uma voz. Todos se abaixaram, a
|
||
bala passou alto, zunindo, cantando, inofensiva. A lancha continuava
|
||
a avançar impávida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a
|
||
assistir o tiroteio, e fora um destes que gritara: queimou!
|
||
E assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às
|
||
trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer,
|
||
chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá licença
|
||
que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o
|
||
homem fazia a pontaria e um tiro partia.
|
||
Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da
|
||
cidade... Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço
|
||
do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar,
|
||
no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís
|
||
de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o
|
||
céu.
|
||
Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes
|
||
como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de
|
||
teatro: “Queimou Santa Cruz! Agora é o ‘Aquidabã’! Lá vai”. E dessa
|
||
maneira a revolta ia correndo familiarmente, entrando nos hábitos e
|
||
nos costumes da cidade.
|
||
No cais Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jornais,
|
||
engraxates, quitandeiros ficavam atrás das portadas, dos urinários,
|
||
das árvores, a ver, a esperar a queda das balas; e quando acontecia
|
||
cair uma, corriam todos em bolo, a apanhá-la como se fosse uma moeda
|
||
ou guloseima,
|
||
As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de
|
||
relógio, lapiseiras, feitas com as pequenas balas de fuzis:
|
||
faziam-se também coleções das médias e com os seus estojos de metal,
|
||
areados, polidos, lixados, ornavam os consolos, os dunkerques das
|
||
casas médias; as grandes, os “melões” e as “abóboras”, como
|
||
chamavam, guarneciam os jardins, como vasos de faiança ou estátuas.
|
||
A lancha continuava a atirar. Fontes fez um disparo. O canhão
|
||
vomitou o projétil, recuou um pouco e logo foi posto em posição. A
|
||
embarcação respondeu e o rapazote gritou: queimou!
|
||
Eram sempre esses garotos que anunciavam os tiros do inimigo. Mal
|
||
viam o fuzilar breve e a fumaça, lá longe, no navio, jorrar devagar,
|
||
muito pesada, gritavam: - queimou!
|
||
Houve um em Niterói que teve o seu quarto de hora de celebridade.
|
||
Chamavam-no “Trinta-Réis”; os jornais do tempo ocuparam-se com ele,
|
||
fizeram-se subscrições a seu favor. Um herói! Passou a revolta e foi
|
||
esquecido, tanto ele como a “Luci”, uma bela lancha que chegou
|
||
fazer-se entidade na imaginação da urbs, a interessá-la, a criar
|
||
inimigos e admiradores.
|
||
A embarcação deixou de provocar a fúria do posto do Caju, e Fontes
|
||
deu instruções ao seu chefe da peça, e foi-se embora.
|
||
Quaresma recolheu-se no seu quarto e continuou os seus estudos
|
||
guerreiros. Os mais dias que passou naquele extremo da cidade não
|
||
eram diferentes deste. Os acontecimentos eram os mesmos e a guerra
|
||
caía na banalidade da repetição dos mesmos episódios.
|
||
A espaços, quando o aborrecimento lhe vinha, saía. Descia a cidade e
|
||
deixava o posto entregue a Polidoro ou a Fontes, se estava.
|
||
Raras vezes o fazia de dia, porque Polidoro, o mais assíduo,
|
||
marceneiro de profissão e em atividade numa fábrica de móveis, só
|
||
vinha à noite.
|
||
No centro da cidade, a noite era alegre e jovial. Havia muito
|
||
dinheiro, o governo pagava soldos dobrados, e, às vezes,
|
||
gratificações, além do que havia também a morte sempre presente; e
|
||
tudo isso estimulava o divertir-se. Os teatros eram freqüentados e
|
||
os restaurants noturnos também.
|
||
Quaresma, porém, não se metia naquele ruído de praça semi-sitiada.
|
||
Ia às vezes ao teatro, à paisana, e, logo acabado o espetáculo,
|
||
voltava para o quarto da cidade ou para o posto.
|
||
Em outras tardes, logo que Polidoro chegava, saía a pé, pelas ruas
|
||
dos arredores, pelas praias até ao Campo de São Cristóvão.
|
||
Ia vendo aquela sucessão de cemitérios, com as suas campas alvas que
|
||
sobem montanhas, como carneiros tosquiados e limpos a pastar;
|
||
aqueles ciprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe
|
||
representava que aquela parte da cidade era feudo e senhorio da
|
||
morte.
|
||
As casas tinham um aspecto fúnebre, recolhidas e concentradas; o mar
|
||
marulhava lugubremente na ribanceira lodosa; as palmeiras ciciavam
|
||
doridas; e até o tilintar da campainha dos bondes era triste e
|
||
lúgubre.
|
||
A paisagem se impregnava da Morte e o pensamento de quem passava ali
|
||
mais ainda, para fazer sentir nela tão forte aspecto funéreo.
|
||
Foi vindo até ao campo; aí deu-lhe vontade de ver a sua antiga casa
|
||
e afinal entrou na residência do General Albernaz. Devia-lhe aquela
|
||
visita e aproveitou o ensejo.
|
||
Acabavam de jantar e jantara com o general, além do Tenente Fontes e
|
||
o Almirante Caldas, o comandante de Quaresma, o Tenente-Coronel
|
||
Inocêncio Bustamante.
|
||
Bustamante era um comandante ativo, mas dentro do quartel, Não havia
|
||
quem como ele se interessasse pelos livros, pela boa caligrafia, com
|
||
que eram escritos os livros mestres, as relações de mostra, os mapas
|
||
de companhia e outros documentos. Com auxílio deles, a organização
|
||
do seu batalhão era irrepreensível; e, para não deixar de vigiar a
|
||
escrituração, aparecia de onde em onde nos destacamentos do seu
|
||
corpo.
|
||
Havia dez dias que Quaresma o não via. Após os cumprimentos, ele
|
||
logo perguntou ao major:
|
||
- Quantas deserções?
|
||
- Até hoje, nove, disse Quaresma.
|
||
Bustamante coçou a cabeça desesperado e refletiu:
|
||
- Eu não sei o que tem essa gente... é um desertar sem nome...
|
||
Falta-lhes patriotismo!
|
||
- Fazem muito bem... Ora! disse o almirante.
|
||
Caldas andava aborrecido, pessimista. O seu processo ia mal e até
|
||
agora o governo não lhe tinha dado coisa alguma. O seu patriotismo
|
||
se enfraquecia com o diluir-se da esperança de ser algum dia
|
||
vice-almirante. É verdade que o governo ainda não organizara a sua
|
||
esquadra; entretanto, pelo rumor que corria, ele não comandaria nem
|
||
uma divisão. Uma iniqüidade! Era velho um pouco, é verdade; mas, por
|
||
não ter nunca comandado, nessa matéria ele podia despender toda uma
|
||
energia moça.
|
||
- O almirante não deve falar assim... A pátria está logo abaixo da
|
||
humanidade.
|
||
- Meu caro tenente, o senhor é moço... Eu sei o que são essas
|
||
coisas...
|
||
- Não se deve desesperar... Não trabalhamos para nós, mas para os
|
||
outros e para os vindouros, continuou Fontes persuasivo.
|
||
- Que tenho eu com eles? fez agastado Caldas,
|
||
Bustamante, o general e Quaresma assistiam a pequena discussão
|
||
calados e os dois primeiros um tanto sorridentes com a fúria de
|
||
Caldas, que não se cansava de dançar a perna e alisar os longos
|
||
favoritos brancos. O tenente respondeu:
|
||
- Muito, almirante. Nós todos devemos trabalhar para que surjam
|
||
épocas melhores, de ordem, de felicidade e elevação moral.
|
||
- Nunca houve e nunca haverá! disse de um jato Caldas.
|
||
- Eu também penso assim, acrescentou Albernaz.
|
||
- Isto há de sempre ser o mesmo, aduziu ceticamente Bustamante.
|
||
O major nada disse; parecia desinteressado da conversa. Fontes, em
|
||
face daquelas contestações, ao contrário de seus congêneres de
|
||
seita, não se agastou. Ele era magro e chupado, moreno carregado e a
|
||
oval do seu rosto estava amassada aqui e ali.
|
||
Com a sua voz arrastada e nasal, agitando a mão direita no jeito
|
||
favorito dos sermonários, depois de ouvir todos, falou com unção:
|
||
- Houve já um esboço: a Idade Média.
|
||
Ninguém ali lhe podia contestar. Quaresma só sabia história do
|
||
Brasil e os outros nenhuma.
|
||
E a sua afirmação fez calar todos, embora no íntimo duvidosos. É uma
|
||
curiosa Idade Média, essa de elevação moral, que a gente não sabe
|
||
onde fica, em que ano? Se a gente diz: “No tempo de Clotário, ele
|
||
próprio, com suas mãos, atacou fogo na palhoça em que encerrava o
|
||
seu filho Crame mais a mulher deste e filhos” - o positivista
|
||
objeta: “Ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente da
|
||
igreja”. “São Luís”, diremos logo nós, “quis executar um senhor
|
||
feudal porque mandou enforcar três crianças que tinham morto um
|
||
coelho nas suas matas”. Objeta o fiel: “Você não sabe que a nossa
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Idade Média vai até o aparecimento da Divina Comédia? São Luís já
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era a decadência”... Citam-se as epidemias de moléstias nervosas, a
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miséria dos campônios, as ladroagens a mão armada dos barões, as
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alucinações do milênio, as cruéis matanças que Carlos Magno fez aos
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saxões; eles respondem: uma hora que ainda não estava perfeitamente
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estabelecido o ascendente moral da igreja; outra que ele já tinha
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desaparecido.
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Nada disso foi objetado ao positivista e a conversa resvalou para a
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revolta. O almirante criticava severamente o governo.
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Não tinha plano algum, levava a dar tiros à toa; na sua opinião, já
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devia ter feito todo o esforço para ocupar a ilha das Cobras, embora
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isso custasse rios de sangue. Bustamante não tinha opinião
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assentada; mas Quaresma e Fontes julgavam que não: seria uma
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aventura arriscada e de uma improficuidade patente. Albernaz ainda
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não tinha dado o seu aviso, e veio a fazê-lo assim:
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- Mas nós reconhecemos Humaitá, e por pouco!
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- Entretanto, não a tomaram, disse Fontes. As condições naturais
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eram outras e assim mesmo o reconhecimento foi perfeitamente
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inútil... O senhor sabe, esteve lá!
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- Isto é... Adoeci e vim um pouco antes para o Brasil, mas o
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Camisão disse-me que foi arriscado.
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Quaresma voltara ao silêncio. Ele procurava ver Ismênia. Fontes lhe
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tinha inteirado do seu estado e o major se sentia por qualquer coisa
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preso à moléstia da moça. Viu todos: Dona Maricota, sempre ativa e
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diligente; Lalá, a arrancar, com o olhar, o noivo da conversa
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interminável, e as outras que vinham, de quando em quando, da sala
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de visitas à sala de jantar onde ele estava. Por fim, não se
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conteve, perguntou. Soube que estava em casa da irmã casada e ia
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pior, cada vez mais abismada na sua mania, enfraquecendo-se de
|
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corpo. O general contou tudo com franqueza a Quaresma e quando
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acabou de narrar aquela sua desgraça íntima, disse com um longo
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suspiro:
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- Não sei, Quaresma... Não sei.
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||
Eram dez horas quando o major se despediu. Voltou de bonde para a
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Ponta do Caju. Saltou e recolheu-se logo a seu quarto. Vinha cheio
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da perturbação especial que põe em nós o luar que estava lindo,
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terno e leitoso, naquela noite. É uma emoção de desafogo do corpo,
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de delíquio; parece que nos tiram o envoltório material e ficamos só
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alma, envolvidos numa branda atmosfera de sonhos e quimeras. O major
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não colhia bem a sensação transcendente, mas sofria sem perceber o
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efeito da luz pálida e fria do luar. Deitou-se um pouco, vestido,
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não por sono, mas em virtude daquela doce embriaguez que o astro lhe
|
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tinha posto nos sentidos.
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Dentro em pouco Ricardo veio chamá-lo: o marechal estava aí. Era seu
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||
hábito sair à noite, às vezes, de madrugada, e ir de posto em posto.
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||
O fato se espalhou pelo público que o apreciava extraordinariamente,
|
||
e o presidente teve mais esse documento para firmar a sua fama de
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||
estadista consumado.
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||
Quaresma veio ao seu encontro. Floriano vestia chapéu de feltro
|
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mole, abas largas, e uma curta sobrecasaca surrada. Tinha um ar de
|
||
malfeitor ou de exemplar chefe de família em aventuras
|
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extraconjugais.
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O major cumprimentou-o e esteve a dar-lhe notícias do ataque que
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fora feito ao seu posto, há dias passados. O marechal respondia por
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monossílabos preguiçosos e olhava ao redor. Quase ao despedir-se,
|
||
falou mais, dizendo vagarosamente, lentamente:
|
||
- Hei de mandar pôr um holofote aqui.
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||
Quaresma veio acompanhá-lo até ao bonde. Atravessaram o velho sítio
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de recreio dos imperadores. Um pouco afastada da estação uma
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locomotiva, semi-acesa, resfolegava. Semelhava roncar, dormindo; os
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||
carros, pequenos, banhados pelo luar, muito quietos, sossegados como
|
||
que dormiam. As anosas mangueiras, com falta de galhos aqui e ali,
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||
pareciam polvilhadas preciosamente de prata. O luar estava
|
||
magnífico. Os dois andavam, o marechal perguntou:
|
||
- Quantos homens tem você?
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||
- Quarenta.
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||
O marechal mastigou um: “não é muito”; e voltou ao mutismo. Num dado
|
||
momento, Quaresma viu-lhe o rosto inundado pela luz da lua.
|
||
Pareceu-lhe mais simpática a fisionomia do ditador. Se lhe
|
||
falasse...
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||
Preparou a pergunta; mas não teve coragem de pronunciá-la.
|
||
Continuaram a andar. O major pensou; que é que tem? não há
|
||
desrespeito algum. Aproximaram-se do portão. Num dado momento como
|
||
que houve uma bulha atrás. Quaresma voltou-se, mas Floriano quase
|
||
não o fez.
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||
Os edifícios da serraria pareciam cobertos de neve, tanto era o
|
||
branco luar. O major continuou a mastigar a sua pergunta; urgia, era
|
||
indispensável; o portão estava a dois passos. Tomou coragem, ousou e
|
||
falou:
|
||
- Vossa Excelência já leu o meu memorial, marechal?
|
||
Floriano respondeu lentamente, quase sem levantar o lábio pendente:
|
||
- Li.
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||
Quaresma entusiasmou-se:
|
||
- Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este pais. Desde que se
|
||
cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que
|
||
Vossa Excelência teve a bondade de ler; desde que se corrijam os
|
||
erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do
|
||
país, Vossa Excelência verá que tudo isto muda, que, em vez de
|
||
tributários, ficaremos com a nossa independência feita... Se Vossa
|
||
Excelência quisesse...
|
||
À proporção que falava, mais Quaresma se entusiasmava. Ele não podia
|
||
ver bem a fisionomia do ditador, encoberto agora como lhe estava o
|
||
rosto pelas abas do chapéu de feltro; mas, se a visse, teria de
|
||
esfriar, pois havia na sua máscara sinais do aborrecimento mais
|
||
mortal. Aquele falatório de Quaresma, aquele apelo à legislação, a
|
||
medidas governamentais, iam mover-lhe o pensamento, por mais que não
|
||
quisesse. O presidente aborrecia-se. Num dado momento, disse:
|
||
- Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de
|
||
cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse...
|
||
Quaresma espantou-se, titubeou, mas retorquiu:
|
||
- Mas, não é isso, marechal. Vossa Excelência com o seu prestígio e
|
||
poder, está capaz de favorecer, com medidas enérgicas e adequadas, o
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||
aparecimento de iniciativas, de encaminhar o trabalho, de
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||
favorecê-lo e torná-lo remunerador... Bastava, por exemplo...
|
||
Atravessavam o portão da velha quinta de Pedro I. O luar continuava
|
||
lindo, plástico e opalescente. Um grande edifício inacabado que
|
||
havia na rua parecia terminado, com vidraças e portas feitas com a
|
||
luz da lua. Era um palácio de sonho.
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||
Floriano já ouvia Quaresma muito aborrecido. O bonde chegou; ele se
|
||
despediu do major, dizendo com aquela sua placidez de voz:
|
||
- Você, Quaresma, é um visionário...
|
||
O bonde partiu. A lua povoava os espaços, dava fisionomia às coisas,
|
||
fazia nascer sonhos em nossa alma, enchia a vida, enfim, com a sua
|
||
luz emprestada...
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||
III
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||
... E TORNARAM LOGO SILENCIOSOS...
|
||
- Eu tenho experimentado tudo, Quaresma, mas não sei... não há
|
||
meio!
|
||
- Já a levou a um médico especialista?
|
||
- Já. Tenho corrido médicos, espíritas, até feiticeiros, Quaresma!
|
||
E os olhos do velho se orvalharam por baixo do pince-nez. Os dois se
|
||
haviam encontrado na pagadoria da Guerra e vinham pelo campo de
|
||
Sant’Ana, a pé, andando a pequenos passos e conversando. O general
|
||
era mais alto que Quaresma, e enquanto este tinha a cabeça sobre um
|
||
pescoço alto, aquele a tinha metida entre os ombros proeminentes,
|
||
como cotos de asas. Albernaz reatou:
|
||
- E remédios! Cada médico receita uma coisa; os espíritas são os
|
||
melhores, dão homeopatia; os feiticeiros tisanas, rezas e
|
||
defumações... Eu não sei, Quaresma!
|
||
E levantou os olhos para o céu, que estava um tanto plúmbeo. Não se
|
||
demorou, porém, muito nessa postura; o pince-nez não permitia, ja
|
||
começava a cair.
|
||
Quaresma abaixou a cabeça e andou assim um pouco olhando as
|
||
granulações do granito do passeio. Levantou o olhar ao fim de algum
|
||
tempo, e disse:
|
||
- Por que não a recolhe a uma casa de saúde, general?
|
||
- Meu médico já me aconselhou isso... A mulher não quer e agora
|
||
mesmo, no estado em que a menina está, não vale a pena...
|
||
Falava da filha, da Ismênia, que, naqueles últimos meses, piorara
|
||
sensivelmente, não tanto da sua moléstia mental, mais da saúde
|
||
comum, vivendo de cama, sempre febril, enlanguescendo, definhando,
|
||
marchando a passos largos para o abraço frio da morte.
|
||
Albernaz dizia a verdade; para curá-la tanto de sua loucura como da
|
||
atual moléstia intercorrente, lançara mão de todos os recursos, de
|
||
todos os conselhos apontados por quem quer que fosse.
|
||
Era de fazer refletir ver aquele homem, general, marcado com um
|
||
curso governamental, procurar médiuns e feiticeiros, para sarar a
|
||
filha.
|
||
Às vezes até levava-os em casa. Os médiuns chegavam perto da moça,
|
||
davam um estremeção, ficavam com uns olhos desvairados, fixos,
|
||
gritavam: “Sai, irmão!” - e sacudiam as mãos, do peito para a moça,
|
||
de lá para cá, rapidamente, nervosamente, no intuito de descarregar
|
||
sobre ela os fluidos milagrosos.
|
||
Os feiticeiros tinham outros passes e as cerimônias para entrar no
|
||
conhecimento das forças ocultas que nos cercam eram demoradas,
|
||
lentas e acabadas. Em geral, eram pretos africanos. Chegavam,
|
||
acendiam um fogareiro no quarto, tiravam de um cesto um sapo
|
||
empalhado ou outra coisa esquisita, batiam com feixes de ervas,
|
||
ensaiavam passos de dança e pronunciavam palavras ininteligíveis. O
|
||
ritual era complicado e tinha a sua demora.
|
||
Na saída, a pobre Dona Maricota, um tanto já diminuída da sua
|
||
atividade e diligência, olhando ternamente aquele grande rosto negro
|
||
do mandingueiro, onde a barba branca punha mais veneração e certa
|
||
grandeza, perguntava:
|
||
- Então, titio?
|
||
O preto considerava um instante, como se estivesse recebendo as
|
||
últimas comunicações do que não se vê nem se percebe, e dizia com a
|
||
sua majestade de africano:
|
||
- Vô vê, nhãnhã... Tô crotando mandinga...
|
||
Ela e o general tinham assistido a cerimônia e o amor de pais e
|
||
também esse fundo de superstição que há em todos nós, levavam a
|
||
olhá-la com respeito, quase com fé.
|
||
- Então foi feitiço que fizeram à minha filha? perguntava a
|
||
senhora.
|
||
- Foi, sim, nhãnhã.
|
||
- Quem?
|
||
- Santo não qué dizê.
|
||
E o preto obscuro, velho escravo, arrancado há um meio século dos
|
||
confins da África, saía arrastando a sua velhice e deixando naqueles
|
||
dois corações uma esperança fugaz.
|
||
Era uma singular situação, a daquele preto africano, ainda
|
||
certamente pouco esquecido das dores do seu longo cativeiro,
|
||
lançando mão dos resíduos de suas ingênuas crenças tribais, resíduos
|
||
que tão a custo tinham resistido ao seu transplante forçado para
|
||
terras de outros deuses - e empregando-os na consolação dos seus
|
||
senhores de outro tempo. Como que os deuses de sua infância e de sua
|
||
raça, aqueles sanguinários manipansos da África indecifrável,
|
||
quisessem vingá-lo à legendária maneira do Cristo dos Evangelhos...
|
||
A doente assistia a tudo aquilo sem compreender e se interessar por
|
||
aqueles trejeitos e passes de tão poderosos homens que se
|
||
comunicavam, que tinham às suas ordens os seres imateriais, as
|
||
existências fora e acima da nossa.
|
||
Andando, ao lado de Quaresma, o general lembrava-se de tudo isso e
|
||
teve um pensamento amargo contra a ciência, contra os espíritos,
|
||
contra os feitiços, contra Deus que lhe ia tirando a filha aos
|
||
poucos, sem piedade e comiseração.
|
||
O major não sabia o que dizer diante daquela imensa dor de pai e
|
||
parecia-lhe toda e qualquer palavra de consolo parva e idiota.
|
||
Afinal disse:
|
||
- General, o senhor permite que eu a faça ver por um médico?
|
||
- Quem é?
|
||
- É o marido de minha afilhada... o senhor conhece... É moço, quem
|
||
sabe lá! Não acha? Pode ser, não é?
|
||
O general consentiu e a esperança de ver curada a filha lhe afagou
|
||
as faces enrugadas. Cada médico que consultava, cada espírita, cada
|
||
feiticeiro reanimava-o, pois de todos ele esperava o milagre. Nesse
|
||
mesmo dia, Quaresma foi procurar o doutor Armando.
|
||
A revolta já tinha mais de quatro meses de vida e as vantagens do
|
||
governo eram problemáticas. No Sul, a insurreição chegava às portas
|
||
de São Paulo, e só a Lapa resistia tenazmente, uma das poucas
|
||
páginas dignas e limpas de todo aquele enxurro de paixões. A pequena
|
||
cidade tinha dentro de suas trincheiras o Coronel Gomes Carneiro,
|
||
uma energia, uma vontade, verdadeiramente isso, porque era sereno,
|
||
confiante e justo. Não se desmanchou em violências de apavorado e
|
||
soube tornar verdade a gasta frase grandiloqüente: resistir até a
|
||
morte.
|
||
A ilha do Governador tinha sido ocupada e Majé tomado; os
|
||
revoltosos, porém, tinham a vasta baia e a barra apertada, por onde
|
||
saiam e entravam, sem temer o estorvo das fortalezas.
|
||
As violências, os crimes que tinham assinalado esses dois marcos de
|
||
atividade guerreira do governo, chegavam ao ouvido de Quaresma e ele
|
||
sofria.
|
||
Da ilha do Governador fez-se uma verdadeira mudança de móveis,
|
||
roupas e outros haveres. O que não podia ser transportado era
|
||
destruído pelo fogo e pelo machado.
|
||
A ocupação deixou lá a mais execranda memória e até hoje os seus
|
||
habitantes ainda se recordam dolorosamente de um capitão, patriótico
|
||
ou da guarda nacional, Ortiz, pela sua ferocidade e insofrido gosto
|
||
pelo saque e outras vexações. Passava um pescador, com uma tampa de
|
||
peixe, e o capitão chamava o pobre homem:
|
||
- Venha cá!
|
||
O homem aproximava-se amedrontado e Ortiz perguntava:
|
||
- Quanto quer por isso?
|
||
- Três mil-réis, capitão.
|
||
Ele sorria diabolicamente e familiarmente regateava:
|
||
- Você não deixa por menos?... Está caro... Isso é peixe
|
||
ordinário... Carapebas! Ora!
|
||
- Bem, capitão, vá lá por dois e quinhentos.
|
||
- Leve isso lá dentro.
|
||
Ele falava na porta de casa. O pescador voltava e ficava um tempo em
|
||
pé, demonstrando que esperava o dinheiro. Ortiz balançava a cabeça e
|
||
dizia escarninho:
|
||
- Dinheiro! hein? Vá cobrar ao Floriano.
|
||
Entretanto, Moreira César deixou boas recordações de si e ainda hoje
|
||
há lá quem se lembre dele, agradecido por este ou aquele benefício
|
||
que o famoso coronel lhe prestou.
|
||
As forças revoltosas pareciam não ter enfraquecido; tinham, porém,
|
||
perdido dois navios, sendo um destes o “Javari”, cuja reputação na
|
||
revolta era das mais altas e consideradas. As forças de terra
|
||
detestavam-no particularmente. Era um monitor, chato, raso com a
|
||
água, uma espécie de sáurio ou quelônio de ferro, de construção
|
||
francesa. A sua artilharia era temida; mas o que sobremodo
|
||
enraivecia os adversários era ele não ter quase borda acima d’água,
|
||
ficar quase ao nível do mar e fugir assim aos tiros incertos de
|
||
terra. As suas máquinas não funcionavam, e a grande tartaruga vinha
|
||
colocar-se em posição de combate com auxílio de um rebocador.
|
||
Um dia em que estava nas proximidades de Villegagnon, foi a pique.
|
||
Não se soube e até hoje não foi esclarecido por que foi. Os
|
||
legalistas afirmaram que foi uma bala de Gragoatá; mas os revoltosos
|
||
asseguraram que foi a abertura de uma válvula ou um outro acidente
|
||
qualquer.
|
||
Como o do seu irmão, o “Solimões”, que desapareceu nas costas do
|
||
cabo Polônio, o fim do “Javari” ainda está envolvido no mistério.
|
||
Quaresma permanecia de guarnição no Caju, e viera receber dinheiro.
|
||
Deixara lá Polidoro, pois os outros oficiais estavam doentes ou
|
||
licenciados, e Fontes, que, sendo uma espécie de inspetor geral, ao
|
||
contrário de seus hábitos, dormira aquela noite no pequeno pavilhão
|
||
imperial e ia ficar até à tarde.
|
||
Ricardo Coração dos Outros, desde o dia da proibição de tocar
|
||
violão, andava macambúzio. Tinham-lhe tirado o sangue, o motivo de
|
||
viver, e passava os dias taciturno, encostado a um tronco de árvore,
|
||
maldizendo no fundo de si a incompreensão dos homens e os caprichos
|
||
do destino. Fontes notara a sua tristeza; e, para minorar-lhe o
|
||
desgosto, obrigara a Bustamante a fazê-lo sargento. Não foi sem
|
||
custo, porque o antigo veterano do Paraguai encarecia muito essa
|
||
graduação e só a dava como recompensa excepcional ou quando
|
||
requerida por pessoas importantes.
|
||
A vida do pobre menestrel era assim a de um melro engaiolado; e, de
|
||
quando em quando, ele se afastava um pouco e ensaiava a voz, para
|
||
ver se ainda a tinha e não fugira como o fumo dos disparos.
|
||
Quaresma sabendo que dessa maneira o posto estava bem entregue,
|
||
resolveu demorar-se mais, e, após despedir-se de Albernaz,
|
||
encaminhou-se para a casa do seu compadre, a fim de cumprir a
|
||
promessa que fizera ao general.
|
||
Coleoni ainda não decidira a sua viagem à Europa. Hesitava,
|
||
esperando o fim da rebelião que não parecia estar próximo. Ele nada
|
||
tinha com ela; até ali, não dissera a ninguém a sua opinião; e, se
|
||
era muito instado, apelava para a sua condição de estrangeiro e
|
||
metia-se numa reserva prudente. Mas, aquela exigência de passaporte,
|
||
tirado na chefatura de polícia, dava-lhe susto. Naqueles tempos,
|
||
toda a gente tinha medo de tratar com autoridades. Havia tanta má
|
||
vontade com os estrangeiros, tanta arrogância nos funcionários que
|
||
ele não se animava a ir obter o documento, temendo que uma palavra,
|
||
que um olhar, que um gesto, interpretados por qualquer funcionário
|
||
zeloso e dedicado, não o levassem a sofrer maus quartos de hora.
|
||
Verdade é que ele era italiano e a Itália já fizera ver ao ditador
|
||
que era uma grande potência, mas no caso de que se lembrava,
|
||
tratava-se de um marinheiro, por cuja vida, extinta por uma descarga
|
||
das forças legais, Floriano pagara a quantia de cem contos. Ele,
|
||
Coleoni, porém, não era marinheiro, e não sabia, caso fosse preso,
|
||
se os representantes diplomáticos de seu país tomariam interesse
|
||
pela sua liberdade.
|
||
De resto, não tendo protestado manter a sua nacionalidade, quando o
|
||
governo provisório expediu o famoso decreto de naturalização, era
|
||
bem possível que uma ou outra parte se ativessem a isso, para
|
||
desinteressar-se dele ou mantê-lo na famosa galeria n. 7, da Casa de
|
||
Correção, transformada, por uma penada mágica, em prisão de Estado.
|
||
A época era de susto e temor, e todos esses que ele sentia, só os
|
||
comunicava à filha, porque o genro cada vez mais se fazia
|
||
florianista e jacobino, de cuja boca muita vez ouvia duras
|
||
invectivas aos estrangeiros.
|
||
E o doutor tinha razão; já obtivera uma graça governamental. Fora
|
||
nomeado médico do Hospital de Santa Bárbara, na vaga de um colega,
|
||
demitido a bem do serviço público como suspeito por ter ido visitar
|
||
um amigo na prisão. Como o hospital, porém, ficasse no ilhéu do
|
||
mesmo nome, dentro da baia, em frente à Saúde e a Guanabara ainda
|
||
estivesse em mão dos revoltosos, ele nada tinha que fazer, pois até
|
||
agora o governo não aceitara os seus oferecimentos de auxiliar o
|
||
tratamento dos feridos.
|
||
O major foi encontrar pai e filha em casa; o doutor tinha saído, ido
|
||
dar uma volta pela cidade, dar arras de sua dedicação à causa legal,
|
||
conversando com os mais exaltados jacobinos do Café do Rio, não
|
||
esquecendo também de passear pelos corredores do Itamarati,
|
||
fazendo-se ver pelos ajudantes-de-ordens, secretários e outras
|
||
pessoas influentes no ânimo de Floriano.
|
||
A moça viu entrar Quaresma com aquele sentimento estranho que o seu
|
||
padrinho lhe causava ultimamente, e esse sentimento mais agudo se
|
||
tornava quando o via contar os casos guerreiros do seu destacamento,
|
||
a passagem de balas, as descargas das lanchas, naturalmente,
|
||
simplesmente, como se fossem feições de uma festa, de uma justa, de
|
||
um divertimento qualquer em que a morte não estivesse presente.
|
||
Tanto mais que o via apreensivo, deixando perceber numa frase e
|
||
noutra desânimo e desesperança.
|
||
Na verdade o major tinha um espinho n’alma. Aquela recepção de
|
||
Floriano às suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu
|
||
entusiasmo e sinceridade nem tampouco a idéia que ele fazia do
|
||
ditador, Saíra ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha
|
||
esbarrar com um presidente que o chamava de visionário, que não
|
||
avaliava o alcance dos seus projetos, que os não examinava sequer,
|
||
desinteressado daquelas altas coisas de governo como se não o
|
||
fosse!... Era pois para sustentar tal homem que deixava o sossego de
|
||
sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem
|
||
que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte
|
||
sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles,
|
||
pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do país, o
|
||
progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural?
|
||
Pensando assim, havia instantes que lhe vinha um mortal desespero,
|
||
uma raiva de si mesmo; mas em seguida considerava: o homem está
|
||
atrapalhado, não pode agora; mais tarde com certeza ele fará a
|
||
coisa...
|
||
Vivia nessa alternativa dolorosa e era ela que lhe trazia
|
||
apreensões, desânimo e desesperança, notados por sua afilhada na sua
|
||
fisionomia já um pouco acabrunhada.
|
||
Não tardou, porém, que, abandonando os episódios da sua vida
|
||
militar, Quaresma explicasse o motivo de sua visita.
|
||
- Mas qual delas? perguntou a afilhada.
|
||
- A segunda, a Ismênia.
|
||
- Aquela que estava para casar com o dentista?
|
||
- Esta mesmo.
|
||
- Ahn! ...
|
||
Ela pronunciou este “ahn” muito longo e profundo, como se pusesse
|
||
nele tudo que queria dizer sobre o caso. Via bem o que fazia o
|
||
desespero da moça, mas via melhor a causa, naquela obrigação que
|
||
incrustam no espírito das meninas, que elas se devem casar a todo
|
||
custo, fazendo do casamento o pólo e fim da vida, a ponto de parecer
|
||
uma desonra, uma injúria ficar solteira.
|
||
O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso:
|
||
é simplesmente casamento, uma coisa vazia, sem fundamento nem na
|
||
nossa natureza nem nas nossas necessidades.
|
||
Graças à frouxidão, à pobreza intelectual e fraqueza de energia
|
||
vital de Ismênia, aquela fuga do noivo se transformou em certeza de
|
||
não casar mais e tudo nela se abismou nessa idéia desesperada.
|
||
Coleoni enterneceu-se muito e interessou-se. Sendo bom de fundo,
|
||
quando lutava pela fortuna se fez duro e áspero, mas logo que se viu
|
||
rico, perdeu a dureza de que se revestira, pois percebia bem que só
|
||
se pode ser bom quando se é forte de algum modo.
|
||
Ultimamente o major tinha diminuído um pouco o interesse pela moça;
|
||
andava atormentado com o seu caso de consciência; entretanto, se não
|
||
tinha um constante e particular pensamento pela desdita da filha de
|
||
Albernaz, abrangia-a ainda na sua bondade geral, larga e humana.
|
||
Não se demorou muito na casa do compadre; ele queria, antes de
|
||
voltar ao Caju, passar pelo quartel do seu batalhão. Ia ver se
|
||
arranjava uma pequena licença, para visitar a irmã que deixara lá,
|
||
no “Sossego”, e de quem tinha notícias, por carta, três vezes por
|
||
semana. Eram elas satisfatórias, contudo ele tinha necessidade de
|
||
ver tanto ela como o Anastácio, fisionomias com quem se encontrava
|
||
diariamente há tantos anos e cuja contemplação lhe fazia falta e
|
||
talvez lhe restituísse a calma e a paz de espírito.
|
||
A última carta que recebera de Dona Adelaide, havia uma frase de
|
||
que, no momento, se lembrava sorrindo: “Não te exponhas muito,
|
||
Policarpo. Toma muita cautela”. Pobre Adelaide! Estava a pensar que
|
||
esse negócio de balas é assim como a chuva?!...
|
||
O quartel ainda ficava no velho cortiço condenado pela higiene, lá
|
||
para as bandas da Cidade Nova. Assim que Quaresma apontou na
|
||
esquina, a sentinela deu um grande berro, fez uma imensa bulha com a
|
||
arma e ele entrou, tirando o chapéu da cabeça baixa, pois estava à
|
||
paisana e tinha abandonado a cartola com medo de que esse traje
|
||
fosse ferir as suscetibilidades republicanas dos jacobinos.
|
||
No pátio, o instrutor coxo adestrava novos voluntários e os seus
|
||
majestosos e demorados gritos: ombroôô... armas! mei-ããã volta...
|
||
volver! subiam ao céu e ecoavam longamente pelos muros da antiga
|
||
estalagem.
|
||
Bustamante estava no seu cubículo, mais conhecido por gabinete,
|
||
irrepreensível no seu uniforme verde-garrafa, alamares dourados e
|
||
vivos azulferrete. Com auxilio de um sargento, examinava a escrita
|
||
de um livro quarteleiro.
|
||
- Tinta vermelha, sargento! É como mandam as instruções de 1864.
|
||
Tratava-se de uma emenda ou de coisa semelhante.
|
||
Logo que viu Quaresma entrar, o comandante exclamou radiante:
|
||
- O major adivinhou!
|
||
Quaresma descansou placidamente o chapéu, bebeu um pouco d’água, e o
|
||
Coronel Inocêncio explicou a alegria:
|
||
- Sabe que temos de marchar?
|
||
- Para onde?
|
||
- Não sei... Recebi ordem do Itamarati.
|
||
Ele não dizia nunca do quartel-general, nem mesmo do ministro da
|
||
Guerra; era do Itamarati, do presidente, do chefe supremo. Parecia
|
||
que assim dava mais importância a si mesmo e ao seu batalhão,
|
||
fazia-o uma espécie de batalhão da guarda, favorito e amado do
|
||
ditador.
|
||
Quaresma não se espantou, nem se aborreceu. Percebeu que era
|
||
impossível obter a licença e também necessário mudar os seus
|
||
estudos: da artilharia, tinha que passar para a infantaria.
|
||
- O major é que vai comandar o corpo, sabia?
|
||
- Não, coronel. E o senhor não vai?
|
||
- Não, disse Bustamante, alisando o cavanhaque mosaico e abrindo a
|
||
boca para o lado esquerdo. Tenho que acabar a organização da unidade
|
||
e não posso... Não se assuste, mais tarde irei lá ter...
|
||
Começava a tarde, quando Quaresma saiu do quartel. O instrutor coxo
|
||
continuava, com força, majestade e demora, a gritar: om-brôôô...
|
||
armas! A sentinela não pôde fazer a bulha da entrada, porque só viu
|
||
o major, quando já ia longe. Ele desceu até à cidade e foi ao
|
||
correio. Havia alguns tiros espaçados; no Café do Rio, os levitas
|
||
continuavam a trocar idéias para a consolidação definitiva da
|
||
República.
|
||
Antes de chegar ao correio, Quaresma lembrou-se de sua partida.
|
||
Correu a uma livraria e comprou livros sobre infantaria; precisava
|
||
também dos regulamentos: arranjaria no quartel-general.
|
||
Para onde ia? Para o Sul, para Majé, para Niterói? Não sabia... Não
|
||
sabia... Ah! se isso fosse para realização dos seus desejos e
|
||
sonhos! Mas quem sabe?... Podia ser... talvez... Mais tarde...
|
||
E passou o dia atormentado pela dúvida do bom emprego de sua vida e
|
||
de suas energias.
|
||
O marido de Olga não fez nenhuma questão em ir ver a filha do
|
||
general. Ele levava a íntima convicção de que a sua ciência toda
|
||
nova pudesse fazer alguma coisa; mas assim não se deu.
|
||
A moça continuou a definhar, e, se a mania parecia um pouco
|
||
atenuada, o seu organismo caia. Estava magra e fraca, a ponto de
|
||
quase não poder sentar-se na cama. Era sua mãe quem mais junto a ela
|
||
vivia; as irmãs se desinteressavam um pouco, pois as exigências de
|
||
sua mocidade levavamnas para outros lados.
|
||
Dona Maricota, tendo perdido todo aquele antigo fervor pelas festas
|
||
e bailes, estava sempre no quarto da filha, a consolá-la, animá-la
|
||
e, às vezes, quando a olhava muito, como que se sentia um tanto
|
||
culpada pela sua infelicidade.
|
||
A moléstia tinha posto mais firmeza nos traços de Ismênia, tinha-lhe
|
||
diminuído a lassidão, tirado o mortiço dos olhos e os seus lindos
|
||
cabelos castanhos, com reflexos de ouro, mais belos se faziam quando
|
||
cercavam a palidez de sua face.
|
||
Raro era falar muito; e assim foi que, naquele dia, se espantou
|
||
muito Dona Maricota com a loquacidade da filha.
|
||
- Mamãe, quando se casa Lalá?
|
||
- Quando se acabar a revolta.
|
||
- A revolta ainda não acabou?
|
||
A mãe respondeu-lhe e ela esteve um instante calada, olhando o teto,
|
||
e, após essa contemplação disse à mãe:
|
||
- Mamãe... Eu vou morrer...
|
||
As palavras saíram-lhe dos lábios, seguras, doces e naturais.
|
||
- Não diga isso, minha filha, adiantou-se Dona Maricota. Qual
|
||
morrer! Você vai ficar boa; seu pai vai levar você para Minas; você
|
||
engorda, toma forças...
|
||
A mãe dizia-lhe tudo isso devagar, alisando-lhe a face com a mão,
|
||
como se se tratasse de uma criança. Ela ouvia tudo com paciência e
|
||
voltou por sua vez serenamente:
|
||
- Qual, mamãe! Eu sei; vou morrer e peço uma coisa à senhora...
|
||
A mãe ficou espantada com a seriedade e firmeza da filha. Olhou em
|
||
redor, deu com a porta semicerrada e levantou-se para fechá-la. Quis
|
||
ainda ver se a dissuadia daquele pensamento; Ismênia, porém,
|
||
continuava a repeti-lo pacientemente, docemente, serenamente;
|
||
- Eu sei, mamãe.
|
||
- Bem. Suponho que é verdade: o que é que você quer?
|
||
- Eu quero, mamãe, ir vestida de noiva.
|
||
Dona Maricota ainda quis brincar, troçar; a filha, porém, voltou-se
|
||
para o outro lado, pôs-se a dormir, com um leve respirar espaçado. A
|
||
mãe saiu do quarto, comovida, com lágrimas nos olhos e a secreta
|
||
certeza de que a filha falava a verdade.
|
||
Não tardou muito a se verificar. O doutor Armando a tinha visitado
|
||
naquela manhã pela quarta vez; ela parecia melhor, desde alguns
|
||
dias, falava com discernimento, sentava-se à cama e conversava com
|
||
prazer.
|
||
Dona Maricota teve que fazer uma visita e deixou a doente entregue
|
||
às irmãs. Elas foram lá ao quarto várias vezes e parecia dormir.
|
||
Distraíram-se.
|
||
Ismênia despertou: viu, por entre a porta do guarda-vestidos meio
|
||
aberto, o seu traje de noiva. Teve vontade de vê-lo mais de perto.
|
||
Levantou-se descalça e estendeu-o na cama para contemplá-lo.
|
||
Chegou-lhe o desejo de vesti-lo. Pôs a saia; e, por aí, vieram
|
||
recordações do seu casamento falhado. Lembrou-se do seu noivo, do
|
||
nariz fortemente ósseo e dos olhos esgazeados de Cavalcânti; mas não
|
||
se recordou com ódio, antes como se fosse um lugar visto há muito
|
||
tempo, e que a tivesse impressionado.
|
||
De quem ela se lembrava com raiva era da cartomante. Iludindo sua
|
||
mãe, acompanhada por uma criada, tinha conseguido consultar Mme.
|
||
Sinhá. Com que indiferença ela lhe respondeu: não volta! Aquilo
|
||
doeu-lhe... Que mulher má! Desde esse dia... Ah!... Acabou de
|
||
abotoar a saia em cima do corpinho, pois não encontrara colete; e
|
||
foi ao espelho. Viu os seus ombros nus, o seu colo muito branco...
|
||
Surpreendeu-se. Era dela aquilo tudo? Apalpou-se um pouco e depois
|
||
colocou a coroa. O véu afagou-lhe as espáduas carinhosamente, como
|
||
um adejo de borboleta. Teve uma fraqueza, uma coisa, deu um ai e
|
||
caiu de costas na cama, com as pernas para fora... Quando a vieram
|
||
ver, estava morta. Tinha ainda a coroa na cabeça e um seio, muito
|
||
branco e redondo, saltava-lhe do corpinho.
|
||
O enterro foi feito no dia imediato e a casa de Albernaz esteve os
|
||
dois dias cheia, como nos dias de suas melhores festas.
|
||
Quaresma foi ao enterro; ele não gostava muito dessa cerimônia; mas
|
||
veio, e foi ver a pobre moça, no caixão, coberta de flores, vestida
|
||
de noiva, com um ar imaculado de imagem. Pouco mudara, entretanto.
|
||
Era ela mesma ali; era a Ismênia dolente e pobre de nervos, com os
|
||
seus traços miúdos e os seus lindos cabelos, que estava dentro
|
||
daquelas quatro tábuas. A morte tinha fixado a sua pequena beleza e
|
||
o seu aspecto pueril; e ela ia para a cova com a insignificância,
|
||
com a inocência e a falta de acento próprio que tinha tido em vida.
|
||
Contemplando aqueles tristes restos, Quaresma viu o caixão do coche
|
||
parar na porta do cemitério, atravessar pelas ruas de túmulos - uma
|
||
multidão que trepava, se tocava, lutava por espaço, na estreiteza da
|
||
várzea e nas encostas das colinas. Algumas sepulturas como se
|
||
olhavam com afeto e se queriam aproximar; em outras transparecia
|
||
repugnância por estarem perto. Havia ali, naquele mudo laboratório
|
||
de decomposições, solicitações incompreensíveis, repulsões,
|
||
simpatias e antipatias; havia túmulos arrogantes, vaidosos,
|
||
orgulhosos, humildes, alegres e tristes; e de muitos, ressumava o
|
||
esforço, um esforço extraordinário, para escapar ao nivelamento da
|
||
morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.
|
||
Quaresma ainda contemplava o cadáver da moça e o cemitério surgia
|
||
aos seus olhos com as esculturas que se amontoavam, com vasos,
|
||
cruzes e inscrições, em alguns túmulos; noutros, eram pirâmides de
|
||
pedra tosca, retratos, caramanchões extravagantes, complicações de
|
||
ornatos, coisas barrocas e delirantes, para fugir ao anonimato do
|
||
túmulo, ao fim dos fins.
|
||
As inscrições exuberam: são longas, são breves; têm nomes, têm
|
||
datas, sobrenomes, filiações, toda a certidão de idade do morto que,
|
||
lá embaixo, não se pode mais conhecer e é lama pútrida.
|
||
E se sente um desespero em não se deparar com um nome conhecido, nem
|
||
uma celebridade, uma notabilidade, um desses nomes que enchem
|
||
décadas e, às vezes mesmo, já mortos, parece que continuam a viver.
|
||
Tudo é desconhecido; todos aqueles que querem fugir do túmulo para a
|
||
memória dos vivos, são anódinos felizes e medíocres existências que
|
||
passaram pelo mundo sem ser notadas.
|
||
E lá ia aquela moça por ali afora para o buraco escuro, para o fim,
|
||
sem deixar na vida um traço mais fundo de sua pessoa, de seus
|
||
sentimentos, de sua alma!
|
||
Quaresma quis afastar essa visão triste e encaminhou-se para o
|
||
interior da casa. Ele estivera na sala de visitas, onde Dona
|
||
Maricota também estava, cercada de outras senhoras amigas que nada
|
||
lhe diziam. O Lulu, fardado do colégio, com fumo no braço, cochilava
|
||
a uma cadeira. As irmãs iam e vinham. Na sala de jantar, estava o
|
||
general silencioso, tendo ao lado Fontes e outros amigos.
|
||
Caldas e Bustamante conversavam baixo, afastados; e quando Quaresma
|
||
passou, pôde ouvir o almirante dizer:
|
||
- Qual! Os homens estão dentro em pouco aqui... O governo está
|
||
exausto.
|
||
O major ficou na janela que dava para o quintal. O tecido do céu se
|
||
tinha adelgaçado: o azul estava sedoso e fino; e tudo tranqüilo,
|
||
sereno e calmo.
|
||
A Estefânia, a doutora, a de olhos maliciosos e quentes, passou,
|
||
tendo ao lado Lalá, que levava, de quando em quando, o lenço aos
|
||
olhos já secos, a quem aquela dizia:
|
||
- Eu, se fosse você, não comprava lá... É caro! Vai ao “Bonheur des
|
||
Dames”... Dizem que tem coisas boas e é pechincheiro.
|
||
O major voltou de novo a contemplar o céu que cobria o quintal.
|
||
Tinha uma tranqüilidade quase indiferente. Genelício apareceu
|
||
demasiadamente fúnebre. Todo de preto, ele tinha afivelado ao rosto
|
||
a mais profunda máscara de tristeza. O seu pince-nez azulado também
|
||
parecia de luto.
|
||
Não lhe fora possível deixar de ir trabalhar; um serviço urgente
|
||
fizera-o indispensável na repartição.
|
||
- É isto, general, disse ele, não está lá o doutor Genelício, nada
|
||
se faz... Não há meio da Marinha mandar os processos certos... É um
|
||
relaxamento...
|
||
O general não respondeu; estava deveras combalido. Bustamante e
|
||
Caldas continuavam a conversar baixo. Ouviu-se o rodar de uma
|
||
carruagem na rua. Quinota chegou à sala de jantar:
|
||
- Papai, está aí o coche.
|
||
O velho levantou-se a custo e foi para a sala de visitas. Falou à
|
||
mulher que se ergueu com a face contraída, exprimindo uma grande
|
||
contensão. Os seus cabelos já tinham muitos fios de prata. Não deu
|
||
um passo; esteve um instante parada e logo caiu na cadeira,
|
||
chorando. Todos estavam vendo sem saber o que fazer; alguns
|
||
choravam; Genelício tomou um partido: foi retirando os círios de ao
|
||
redor do caixão. A mãe levantou-se, veio até ao esquife, beijou o
|
||
cadáver: minha filha!
|
||
Quaresma adiantou-se, foi saindo com o chapéu na mão. No corredor,
|
||
ainda ouviu Estefânia dizer a alguém: o coche é bonito.
|
||
Saiu. Na rua parecia que havia festa. As crianças da vizinhança
|
||
cercavam o carro fúnebre e faziam inocentes comentários sobre os
|
||
dourados e enfeites. As grinaldas foram aparecendo e sendo
|
||
dependuradas nas extremidades das colunas do coche: “À minha querida
|
||
filha”, “À minha irmã”. As fitas roxas e pretas, com letras
|
||
douradas, moviam-se lentamente ao leve vento que soprava.
|
||
Apareceu o caixão, todo roxo, com guarnições de galões dourados,
|
||
muito brilhantes. Tudo aquilo ia pra terra. As janelas se povoaram,
|
||
de um lado e doutro da rua; um menino na casa próxima, gritou da rua
|
||
para o interior: “Mamãe, lá vai o enterro da moça!”
|
||
O caixão foi afinal amarrado fortemente no carro mortuário, cujos
|
||
cavalos, ruços, cobertos com uma rede preta, escarvavam o chão
|
||
cheios de impaciência.
|
||
Aqueles que iam acompanhar até ao cemitério, procuravam os seus
|
||
carros. Embarcaram todos, e o enterro rodou.
|
||
A esse tempo, na vizinhança, alguns pombos imaculadamente brancos,
|
||
as aves de Vênus, ergueram o vôo, ruflando estrepitosamente; deram
|
||
volta por cima do coche e tornaram logo silenciosos, quase sem bater
|
||
asas, para o pombal que se ocultava nos quintais burgueses...
|
||
IV
|
||
O BOQUEIRÃO
|
||
O sítio de Quaresma, em Curuzu, voltava aos poucos ao estado de
|
||
abandono em que ele o encontrara. A erva daninha crescia e cobria
|
||
tudo. As plantações que fizera, tinham desaparecido na invasão do
|
||
capim, do carrapicho, das urtigas e outros arbustos. Os arredores da
|
||
casa ofereciam um aspecto desolador, apesar dos esforços de
|
||
Anastácio, sempre vigoroso e trabalhador na sua forte velhice
|
||
africana, mas baldo de iniciativa, de método, de continuidade no
|
||
esforço.
|
||
Um dia capinava aqui, outro dia ali, outro pedaço, e assim ia
|
||
saltando de trecho em trecho, sem fazer trabalho que se visse,
|
||
permitindo que as terras e os arredores da casa adquirissem um
|
||
aspecto de desleixo que não condizia com o seu trabalho efetivo.
|
||
As formigas voltaram também, mais terríveis e depredadoras, vencendo
|
||
obstáculos, devastando tudo, restos de seara, brotos de fruteiras,
|
||
até os araçazeiros depenavam com uma energia e bravura que sorriam
|
||
aos fracos expedientes da inteligência crestada do antigo escravo,
|
||
incapaz de achar meios eficazes de batê-las ou afugentá-las.
|
||
Entretanto ele cultivava. Era a sua mania, o seu vício, uma teimosia
|
||
de caduco. Tinha uma horta que disputava diariamente às saúvas; e,
|
||
como os animais da vizinhança a tivessem um dia invadido, ele a
|
||
protegeu pacientemente com uma cerca de materiais mais
|
||
inconcebíveis: latas de querosene desdobradas, caibros bons, folhas
|
||
de coqueiros, tábuas de caixão, não obstante ter à mão bambus à
|
||
vontade.
|
||
Na sua inteligência havia uma necessidade do tortuoso, do
|
||
aparentemente fácil; e, em tudo ele punha esse jeito de sua psique,
|
||
tanto no falar, com grandes rodeios, como nos canteiros que traçava,
|
||
irregulares, maiores aqui, menores ali, fugindo à regularidade, ao
|
||
paralelismo, à simetria, com um horror artístico.
|
||
A revolta tinha tido sobre a política local efeito pacificador.
|
||
Todos os partidos se fizeram dedicadamente governistas, de forma
|
||
que, entre os dois poderosos contendores, o doutor Campos e o
|
||
Tenente Antonino houve um traço de união que os reconciliou e os fez
|
||
entenderem-se. Ao osso que ambos disputavam encarniçadamente,
|
||
u
|
||
um outro mais forte que pôs em perigo a segurança de ambos e eles se
|
||
puseram em expectativa, um instante unidos.
|
||
O candidato foi imposto pelo governo central e as eleições chegaram.
|
||
É um momento bem curioso esse das eleições na roça. Não se sabe bem
|
||
donde saem tantos tipos exóticos. De tal forma são eles esquisitos
|
||
que se pode mesmo esperar que apareçam calções e bofes de renda,
|
||
espadins e gibão. Há sobrecasacas de cintura, há calças
|
||
boca-de-sino, há chapéus de seda - todo um museu de indumentária
|
||
que aqueles roceiros vestem e por um instante fazem viver por entre
|
||
as ruas esburacadas e estradas poeirentas das vilas e lugarejos. Não
|
||
faltam também os valentões, com calças bombachas e grandes bengalões
|
||
de pequiá, à espera do que der e vier.
|
||
Para a monótona vida que levava Dona Adelaide, esse desfile de
|
||
manequins de museu, por sua porteira, em direção à seção eleitoral
|
||
que lhe ficava nas proximidades, foi um divertimento. Ela passava
|
||
longos e tristes dias naquele isolamento. Fazia-lhe companhia desde
|
||
muito a mulher de Felizardo, a Sinhá Chica, uma velha cafuza,
|
||
espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por
|
||
sobre todo o município. Não havia quem como ela soubesse rezar
|
||
dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os efeitos das
|
||
ervas medicinais: a língua-de-vaca, a silvina, o cipóchumbo - toda
|
||
aquela drogaria que crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos
|
||
troncos de árvores.
|
||
Além desse saber que a fazia estimada e respeitável, tinha também a
|
||
habilidade de assistir partos. Na redondeza, entre a gente pobre e
|
||
mesmo remediada, todos os nascimentos se faziam aos cuidados de suas
|
||
luzes.
|
||
Era de ver como pegava um faca e agitava o pequeno instrumento
|
||
doméstico em cruz, repetidas vezes, sobre a sede da dor ou da
|
||
tarefa, rezando em voz baixa, balbuciando preces que afugentavam o
|
||
espírito maligno que estava ali. Contavam-se dela milagres, vitórias
|
||
extraordinárias, denunciadoras do seu estranho poder quase mágico,
|
||
sobre as forças ocultas, que nos perseguem ou nos auxiliam.
|
||
Um dos mais curiosos, e era contado em toda parte e a toda hora,
|
||
consistia no afastamento das lagartas, Os vermes haviam dado num
|
||
feijoal, aos milheiros, cobrindo as folhas e os colmos; o
|
||
proprietário já desesperava e tinha tudo por perdido quando se
|
||
lembrou dos maravilhosos poderes de Sinhá Chica. A velha lá foi. Pôs
|
||
cruzes de gravetos pelas bordas da roça, assim como se fizesse uma
|
||
cerca de invisível material que nela se apoiasse: deixou uma
|
||
extremidade aberta e colocou-se na oposta a rezar. Não tardou o
|
||
milagre a verificar-se. Os vermes, num rebanho moroso e serpejante,
|
||
como se fossem tocados pela vara de um pastor, foram saindo na sua
|
||
frente, devagar, aos dois, aos quatro, aos cinco, aos dez, aos
|
||
vinte, e um só não ficou.
|
||
O doutor Campos não tinha absolutamente nenhuma espécie de ciúme
|
||
dessa rival. Armou-se de um pequeno desdém pelo poder sobre-humano
|
||
da mulher, mas não apelou nunca para o arsenal de leis, que vedava o
|
||
exercício de sua transcendente medicina. Seria a impopularidade; ele
|
||
era político.
|
||
No interior, e não é preciso afastar-se muito do Rio de Janeiro, as
|
||
duas medicinas coexistem sem raiva e ambas atendem às necessidades
|
||
mentais e econômicas da população.
|
||
A da Sinhá Chica, quase grátis, ia ao encontro da população pobre,
|
||
daquela em cujos cérebros, por contágio ou herança, ainda vivem os
|
||
manitus e manipansos, sujeitos a fugirem aos exorcismos, benzeduras
|
||
e fumigações. A sua clientela, entretanto, não se resumia só na
|
||
gente pobre da terra, ali nascida ou criada; havia mesmo
|
||
recém-chegados de outros ares, italianos, portugueses e espanhóis,
|
||
que se socorriam da sua força sobrenatural, não tanto pelo preço ou
|
||
contágio das crenças ambientes, mas também por aquela estranha
|
||
superstição européia de que todo negro ou gente colorida penetra e é
|
||
sagaz para descobrir as coisas malignas e exercer a feitiçaria.
|
||
Enquanto a terapêutica fluídica ou herbácea de Sinhá Chica atendia
|
||
aos miseráveis, aos pobretões, a do doutor Campos era requerida
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pelos mais cultos e ricos, cuja evolução mental exigia a medicina
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regular e oficial.
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||
Às vezes, um de um grupo passava para o outro; era nas moléstias
|
||
graves, nas complicadas, nas incuráveis, quando as ervas e as rezas
|
||
da milagrosa nada podiam ou os xaropes e pílulas do doutor eram
|
||
impotentes.
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||
Sinhá Chica não era lá uma companheira muito agradável. Vivia sempre
|
||
mergulhada no seu sonho divino, abismada nos misteriosos poderes dos
|
||
feitiços, sentada sobre as pernas cruzadas, olhos baixos, fixos, de
|
||
fraco brilho, parecendo esmalte de olhos de múmia tanto ela era
|
||
encarquilhada e seca.
|
||
Não esquecia também o santos, a santa madre Igreja, os mandamentos,
|
||
as orações ortodoxas; embora não soubesse ler, era forte no
|
||
catecismo e conhecia a história sagrada aos pedaços, aduzindo a eles
|
||
interpretações suas e interpolações pitorescas.
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||
Com o Apolinário, o famoso capelão das ladainhas, era ela o forte
|
||
poder espiritual da terra. O vigário ficava relegado a um papel de
|
||
funcionário, espécie de oficial de registro civil, encarregado dos
|
||
batizados e casamentos, pois toda a comunicação com Deus e o
|
||
Invisível se fazia por intermédio de Sinhá Chica ou do Apolinário. É
|
||
de dever falar em casamentos, mas bem podiam ser esquecidos, porque
|
||
a nossa gente pobre faz uso reduzido de tal sacramento e a simples
|
||
mancebia, por toda a parte, substitui a solene instituição católica.
|
||
Felizardo, o marido dela, aparecia pouco em casa de Quaresma; e, se
|
||
aparecia, era à noite, passando os dias pelos matos com medo do
|
||
recrutamento e logo que chegava indagava da mulher se o barulho já
|
||
tinha acabado.
|
||
Vivia num constante pavor; dormia vestido, galgando a janela e
|
||
embrenhando-se na capoeira, à menor bulha ouvida.
|
||
Tinham dois filhos, mas que tristeza de gente! Ajuntavam à depressão
|
||
moral dos pais uma pobreza de vigor físico e uma indolência
|
||
repugnante. Eram dois rapazes: o mais velho, José, orçava pelos
|
||
vinte anos; ambos inertes, moles, sem força e sem crenças, nem mesmo
|
||
a da feitiçaria, das rezas e benzeduras, que fazia o encanto da mãe
|
||
e merecia o respeito do pai.
|
||
Não houve quem os fizesse aprender qualquer coisa e os sujeitasse a
|
||
um trabalho contínuo. De quando em quando, assim de quinze em quinze
|
||
dias, faziam uma talha de lenha e vendiam ao primeiro taverneiro
|
||
pela metade do valor; voltavam para casa alegres, satisfeitos, com
|
||
um lenço de cores vivas, um vidro de água-de-colônia, um espelho,
|
||
bugigangas que denunciavam ainda neles gostos bastante selvagens.
|
||
Passavam então uma semana em casa, a dormir ou a perambular pelas
|
||
estradas e vendas; à noite, quase sempre nos dias de festas e
|
||
domingos, saiam com a “harmônica” a tocar peças, no que eram
|
||
exímios, sendo a presença deles muito reqüestada nos bailes da
|
||
vizinhança.
|
||
Embora seus pais vivessem em casa de Quaresma, raramente lá
|
||
apareciam; e, se o faziam, era porque de todo não tinham que comer.
|
||
Levavam o descuido da vida, a imprevidência, a ponto de não terem
|
||
medo do recrutamento. Eram, entretanto, capazes de dedicação, de
|
||
lealdade e bondade, mas o trabalho continuado, todo o dia,
|
||
repugnava-lhes à natureza, como uma pena ou um castigo.
|
||
Essa atonia da nossa população, essa espécie de desânimo doentio, de
|
||
indiferença nirvanesca por tudo e todas as coisas, cercam de uma
|
||
caligem de tristeza desesperada a nossa roça e tira-lhe o encanto, a
|
||
poesia e o viço sedutor de plena natureza.
|
||
Parece que nem um dos grandes países oprimidos, a Polônia, a
|
||
Irlanda, a Índia apresentará o aspecto cataléptico do nosso
|
||
interior. Tudo aí dorme, cochila, parece morto; naqueles há revolta,
|
||
há fuga para o sonho; no nosso... Oh!... dorme-se...
|
||
A ausência de Quaresma trouxera para o seu sítio essa atmosfera
|
||
geral da roça. O “Sossego” parecia dormir, dormir de encantamento, à
|
||
espera que o príncipe o viesse despertar.
|
||
Máquinas agrícolas, que não haviam ainda servido, enferrujavam com a
|
||
etiqueta da casa. Aqueles arados de ponta de aço, que tinham chegado
|
||
com a relha reluzente, de um brilho azulado e doce, estavam
|
||
hediondos e morriam de tédio no abandono em que jaziam, bracejando
|
||
angustiosamente para o céu mudo. De manhã, não se ouvia mais o
|
||
cacarejar das aves no galinheiro, o esvoaçar dos pombos - todo esse
|
||
hino matinal de vida, de trabalho, de fartura não mais se casava com
|
||
as auroras rosadas e com o chilreio álacre do passaredo; e ninguém
|
||
sabia ver as paineiras em flor, com as suas lindas flores rosadas e
|
||
brancas que, a espaços, caíam docemente como aves feridas.
|
||
Dona Adelaide não tinha nem gosto nem atividade para superintender
|
||
aqueles serviços e fruir a poesia da roça. Sofria com a separação do
|
||
irmão e vivia como se estivesse na cidade. Comprava os gêneros na
|
||
venda e não se incomodava com as coisas do sítio.
|
||
Ansiava pela volta do irmão; escrevia-lhe cartas desesperadas, às
|
||
quais ele respondia aconselhando calma, fazendo promessas. A última
|
||
recebida, porém, tinha de sopetão outro acento; não era mais
|
||
confiante, entusiástica, traía desânimo, desalento, mesmo desespero.
|
||
“Querida Adelaide. Só agora posso responder-te a carta que recebi há
|
||
quase duas semanas. Justamente quando ela me chegou às mãos, acabava
|
||
de ser ferido, ferimento ligeiro é verdade, mas que me levou à cama
|
||
e trar-me-á uma convalescença longa. Que combate, minha filha! Que
|
||
horror! Quando me lembro dele, passo as mãos pelos olhos como para
|
||
afastar uma visão má. Fiquei com horror à guerra que ninguém pode
|
||
avaliar... Uma confusão, um infernal zunir de balas, clarões
|
||
sinistros, imprecações - e tudo isto no seio da treva profunda da
|
||
noite... Houve momentos que se abandonaram as armas de fogo:
|
||
batíamo-nos à baioneta, a coronhadas, a machado, facão. Filha: um
|
||
combate de trogloditas, uma coisa pré-histórica... Eu duvido, eu
|
||
duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido da sua razão de ser,
|
||
duvido que seja certo e necessário ir tirar do fundo de nós todos a
|
||
ferocidade adormecida, aquela ferocidade que se fez e se depositou
|
||
em nós nos milenários combates com as feras, quando disputávamos a
|
||
terra a elas... E não vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon, do
|
||
Neanderthal armados com machados de sílex, sem piedade, sem amor,
|
||
sem sonhos generosos, a matar, sempre a matar... Este teu irmão que
|
||
estás vendo, também fez das suas, também foi descobrir dentro de si
|
||
muita brutalidade, muita ferocidade, muita crueldade... Eu matei,
|
||
minha irmã; eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um
|
||
tiro quando o inimigo arquejava a meus pés... Perdoa-me! Eu te peço
|
||
perdão, porque preciso de perdão e não sei a quem pedir, a que Deus,
|
||
a que homem, a alguém enfim... Não imaginas como isto faz-me
|
||
sofrer... Quando caí embaixo de uma carreta, o que me doía não era a
|
||
ferida, era a alma, era a consciência; e Ricardo, que foi ferido e
|
||
caiu ao meu lado, a gemer e pedir - ‘capitão, meu gorro, meu
|
||
gorro!’ - parecia que era o meu próprio pensamento que ironizava o
|
||
meu destino...
|
||
Esta vida é absurda e ilógica; eu já tenho medo de viver, Adelaide.
|
||
Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos
|
||
amanhã, de que maneira havemos de nos contradizer de sol para sol...
|
||
O melhor é não agir, Adelaide; e desde que o meu dever me livre
|
||
destes encargos, irei viver na quietude, na quietude mais absoluta
|
||
possível, para que do fundo de mim mesmo ou do mistério das coisas
|
||
não provoque a minha ação o aparecimento de energias estranhas à
|
||
minha vontade, que mais me façam sofrer e tirem o doce sabor de
|
||
viver...
|
||
Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil.
|
||
Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que
|
||
derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram
|
||
empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e
|
||
desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer...
|
||
Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir;
|
||
passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo
|
||
inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.”
|
||
—
|
||
Como Quaresma dizia na carta, o seu ferimento não era grave, era,
|
||
porém, delicado e exigia tempo para uma cura completa e sem perigos.
|
||
Ricardo, este, fora ferido mais gravemente. E se o sofrimento de
|
||
Quaresma era profundamente moral, o de Coração dos Outros era físico
|
||
e não se cansava de gemer e imprecar contra a sorte que o arrastara
|
||
até à posição de combatente.
|
||
Os hospitais em que se tratavam estavam separados pela baía, agora
|
||
intransponível, exigindo a viagem de uma margem à outra bem doze
|
||
horas por estrada de ferro.
|
||
Tanto na ida como na volta, ferido como estava, Quaresma passara
|
||
pela estação em que morava. O trem, porém, não parava, e ele se
|
||
limitou a deitar pela portinhola um longo e saudoso olhar para
|
||
aquele seu “Sossego”, de terras pobres e árvores velhas, onde
|
||
sonhara repousar calmamente por toda a vida; e, entretanto, o
|
||
lançara na mais terrível das aventuras.
|
||
E ele perguntava de si para si, onde, na terra, estava o verdadeiro
|
||
sossego, onde se poderia encontrar esse repouso de alma e corpo,
|
||
pelo qual tanto ansiava, depois dos sacolejamentos por que vinha
|
||
passando - onde? E o mapa dos continentes, as cartas dos países, as
|
||
plantas das cidades, passavam-lhe pelos olhos e não viu, não
|
||
encontrou um país, uma província, uma cidade, uma rua onde o
|
||
houvesse.
|
||
A sua sensação era de fadiga, não física, mas moral e intelectual,
|
||
Tinha vontade de não mais pensar, de não mais amar; queria, contudo,
|
||
viver, por prazer físico; pela sensação material pura e simples de
|
||
viver.
|
||
Assim, convalesceu longamente, demoradamente, melancolicamente, sem
|
||
uma visita, sem ver uma face amiga.
|
||
Coleoni e família se haviam retirado para fora; o general, por
|
||
preguiça e desleixo, não viera vê-lo. Vivia só, envolvido na
|
||
suavidade da convalescença, a pensar no Destino, na sua vida, nas
|
||
idéias e mais que tudo nas suas desilusões.
|
||
Entretanto, a revolta na baía chegava ao fim; toda gente já
|
||
pressentia isso e queria esse alívio.
|
||
O almirante e Albernaz, ambos pelos mesmos motivos, observavam esse
|
||
fim com tristeza. O primeiro via fugir o seu sonho de comandar uma
|
||
esquadra e a conseqüente volta para o quadro; e o general sentia
|
||
perder a sua comissão, cujos rendimentos faziam de forma tão notável
|
||
melhorar a situação da família.
|
||
Naquela manhã, bem cedo, Dona Maricota acordara o marido:
|
||
- Chico, levanta-te! Olha que tens que ir à missa do Senador
|
||
Clarimundo...
|
||
Ouvindo a recomendação da mulher, Albernaz ergueu-se logo do leito.
|
||
Era preciso não faltar. A sua presença se impunha e significava
|
||
muito. Clarimundo fora um republicano histórico, agitador, tribuno
|
||
temido, no tempo do Império; após a República, porém, não
|
||
apresentara aos seus pares do Senado nada de útil e benfazejo.
|
||
Embora assim, a sua influência ficara sendo grande; e, com diversos
|
||
outros, era chamado patriarca da República. Há nos próceres
|
||
republicanos uma necessidade extraordinária de serem gloriosos e não
|
||
esquecidos pelo futuro, a que eles se recomendam com teimoso
|
||
interesse.
|
||
Clarimundo era um desses próceres e, durante a comoção, não se sabia
|
||
bem por quê, o seu prestígio cresceu e já se falava nele para
|
||
substituir o marechal. Albernaz conhecera-o vagamente, mas assistir
|
||
a sua missa era quase uma afirmação política.
|
||
A dor da morte da filha já se esvaíra muito na sua memória. O que o
|
||
fazia sofrer era aquela semivida da moça, mergulhada na loucura e na
|
||
moléstia. A morte tem a virtude de ser brusca, de chocar, mas não
|
||
corroer, como essas moléstias duradouras nas pessoas amadas; passado
|
||
que é o choque, vai ficando em nós uma suave recordação do ente
|
||
querido, uma boa fisionomia sempre presente aos nossos olhos.
|
||
Dava-se isso com Albernaz e a sua satisfação de viver e a sua
|
||
jovialidade natural foram voltando insensivelmente.
|
||
Obediente à mulher, preparou-se, vestiu-se e saiu. Conquanto se
|
||
estivesse ainda em plena revolta, esses ofícios fúnebres se faziam
|
||
nas igrejas do centro da cidade. O general chegou a tempo e à hora.
|
||
Havia uniformes e cartolas e todos se comprimiam para assinar as
|
||
listas de presença. Não tanto que quisessem atestar à família do
|
||
morto esse ato delicado; dominava-os, além disso, a esperança de ter
|
||
os nomes nos jornais.
|
||
Albernaz não deixou de atirar-se também a uma das listas que andavam
|
||
pelas mesas da sacristia; e quando ia assinar, alguém lhe falou. Era
|
||
o almirante. A missa ia começar, mas ambos evita,”am entrar na nave
|
||
cheia, e ficaram a um vão de janela, na sacristia, conversando.
|
||
- Então acaba breve, hein?
|
||
- Dizem que a esquadra já saiu de Pernambuco.
|
||
Fora Caldas quem falara primeiro e a resposta do general fê-lo
|
||
sorrir irônico dizendo:
|
||
- Enfim...
|
||
- A baia está cercada de canhões, continuou o general, após uma
|
||
pausa, e o marechal vai intimá-los a renderem-se.
|
||
- Já era tempo, fez Caldas... Comigo, a coisa já estava acabada...
|
||
Levar quase sete meses para dar cabo de uns calhambeques!...
|
||
- Você exagera, Caldas; a coisa não era tão fácil assim... E o mar?
|
||
- Que fez a esquadra tanto tempo no Recife, você não me dirá? Ah!
|
||
Se fosse com este seu criado, tinha logo partido e atacado... Sou
|
||
pelas decisões prontas...
|
||
O padre, no interior da igreja, continuava a pedir a Deus repouso
|
||
para a alma do Senador Clarimundo. O místico cheiro de incenso vinha
|
||
até eles e o votivo perfume, votivo ao Deus da paz e da bondade, não
|
||
os demovia dos seus pensamentos guerreiros.
|
||
- Entre nós, aduziu Caldas, não há mais gente que preste... Isto é
|
||
um país perdido, acaba colônia inglesa...
|
||
Coçou nervoso um dos favoritos e esteve um instante a olhar o
|
||
ladrilho do chão. Albernaz avançou, meio sarcástico:
|
||
- Agora não; agora a autoridade está prestigiada, consolidada, e
|
||
uma era de progresso vai abrir-se para o Brasil.
|
||
- Qual o quê! Onde é que você viu um governo...
|
||
- Mais baixo, Caldas!
|
||
- ... onde é que se viu um governo que não aproveita as aptidões,
|
||
abandona-as, deixa-as por ai vegetar?... Dá-se o mesmo com as nossas
|
||
riquezas naturais: jazem por aí à toa!
|
||
A sineta soou e olharam um pouco a nave cheia. Pela porta, via-se
|
||
uma porção de homens, todos de negro, ajoelhados, contrictos,
|
||
batendo nos peitos, a confessar de si para si; mea culpa, mea maxima
|
||
culpa...
|
||
Uma réstia de sol coava-se por uma das aberturas do alto e
|
||
resplandecia sobre algumas cabeças.
|
||
Insensivelmente, os dois, na sacristia, levaram a mão ao peito e
|
||
confessaram também: mea culpa, mea maxima culpa...
|
||
A missa veio a acabar e ambos entraram para o abraço da pragmática.
|
||
A nave rescendia a incenso e tinha um aspecto tranqüilo de
|
||
imortalidade.
|
||
Todos tinham um grande ar de compunção: amigos, parentes, conhecidos
|
||
e desconhecidos pareciam sofrer igualmente. Albernaz e Caldas, logo
|
||
que penetraram no corpo da igreja, apanharam no ar um sentimento
|
||
profundo e afivelaram-no ao rosto.
|
||
Genelício também viera; ele tinha o vício das missas das pessoas
|
||
importantes, dos cartões de pêsames, dos cumprimentos em dias de
|
||
aniversário. Temendo que a memória não lhe ajudasse, possuía um
|
||
caderninho onde as datas aniversárias estavam assentadas e as
|
||
residências também. O índice era organizado com muito cuidado, Não
|
||
havia sogra, prima, tia, cunhada, de homem importante, que, em dia
|
||
de aniversário, não recebesse os seus parabéns, e, por morte, não o
|
||
levasse à igreja em missa de sétimo dia,
|
||
O seu traje de luto era de pano grosso, pesado; e, olhando-o,
|
||
lembrava-nos logo de um castigo dantesco.
|
||
Na rua, Genelício escovava a cartola com a manga da sobrecasaca e
|
||
dizia ao sogro e ao almirante:
|
||
- A coisa está pra acabar...! Breve...
|
||
- E se resistirem? perguntou o general.
|
||
- Qual! Não resistem. Corre que já propuseram rendição... É preciso
|
||
arranjar uma manifestação ao marechal.
|
||
- Não acredito, fez o almirante. Conheço muito o Saldanha, é
|
||
orgulhoso e não se entrega assim...
|
||
Genelício ficou um pouco assustado com a entonação da voz do seu
|
||
parente; teve medo que ele falasse mais alto, desse na vista e o
|
||
comprometesse. Calou-se; Albernaz, porém, avançou:
|
||
- Não há orgulho que resista a uma esquadra mais forte.
|
||
- Forte! Uns calhambeques, homem!
|
||
Caldas continha a custo a fúria que lhe ia n’alma. O céu estava azul
|
||
e calmo. Havia nele nuvens brancas, leves, esgarçadas, que se moviam
|
||
lentamente, como velas, naquele mar infinito. Genelício olhou-o um
|
||
pouco e aconselhou:
|
||
- Almirante, não fale assim... Olhe que...
|
||
- Qual! Não tenho medo... Porcarias!...
|
||
- Bom, fez Genelício, eu tenho que ir à Rua Primeiro de Março e...
|
||
Despediu-se e saiu com o seu traje de chumbo, curvado, olhando o
|
||
chão com o seu pince-nez azulado, palmilhando a rua com passo miúdo
|
||
e cauteloso.
|
||
Albernaz e Caldas ainda estiveram conversando um tempo e se
|
||
despediram sempre amigos, cada um com o seu desgosto e a sua
|
||
decepção.
|
||
Tinham razão: a revolta veio a acabar dai a dias. A esquadra legal
|
||
entrou; os oficiais revoltosos se refugiaram nos navios de guerra
|
||
portugueses e o Marechal Floriano ficou senhor da baía.
|
||
No dia da entrada, acreditando que houvesse canhoneio, uma grande
|
||
parte da população abandonou a cidade, refugiando-se nos subúrbios,
|
||
por baixo das árvores, na casa de amigos ou nos galpões construídos
|
||
adrede pelo Estado.
|
||
Era de ver o terror que se estampava naquelas fisionomias, a ânsia e
|
||
a angústia também. Levavam trouxas, samburás, pequenas malas;
|
||
crianças de peito, a chorar, o papagaio querido, o cachorro de
|
||
estimação, o passarinho que de há muito quebrava a tristeza de uma
|
||
casa pobre.
|
||
O que mais metia medo era o famoso canhão de dinamite, do “Niterói”,
|
||
uma espalhafatosa invenção americana, instrumento terrível, capaz de
|
||
causar terremotos e de abalar os fundamentos das montanhas
|
||
graníticas do Rio.
|
||
As crianças e as mulheres, mesmo fora do alcance de seu poder,
|
||
temiam uvir o seu estrondo; entretanto, esse fantasma yankee, esse
|
||
pesadelo, essa quase força da natureza, foi morrer abandonado num
|
||
cais, desprezado e inofensivo.
|
||
O fim do levante foi um alívio; a coisa já estava ficando monótona e
|
||
o marechal ganhou feições sobre-humanas com a vitória.
|
||
Quaresma teve alta por esse tempo; e uma ala de seu batalhão foi
|
||
destacada para guarnecer a ilha das Enxadas. Inocêncio Bustamante
|
||
continuava a superintender o corpo com muito zelo, do interior do
|
||
seu gabinete, na estalagem condenada que lhe servia de quartel. A
|
||
escrituração estava em dia e era feita com a melhor letra.
|
||
Policarpo aceitou com repugnância o papel de carcereiro, pois na
|
||
ilha das Enxadas estavam depositados os marinheiros prisioneiros. Os
|
||
seus tormentos d’alma mais cresceram com o exercício de tal função.
|
||
Quase os não olhava; tinha vexame, piedade e parecia-lhe que dentre
|
||
eles um conhecia o segredo de sua consciência.
|
||
De resto, todo o sistema de idéias que o fizera meter-se na guerra
|
||
civil se tinha desmoronado. Não encontrara o Sully e muito menos o
|
||
Henrique IV. Sentia também que o seu pensamento motriz não residia
|
||
em nenhuma das pessoas que encontrara. Todos tinham vindo ou com
|
||
pueris pensamentos políticos, ou por interesse; nada de superior os
|
||
animava. Mesmo entre os moços, que eram muitos, se não havia baixo
|
||
interesse, existia uma adoração fetíchica pela forma republicana, um
|
||
exagero das virtudes dela, um pendor para o despotismo que os seus
|
||
estudos e meditações não podiam achar justos. Era grande a sua
|
||
desilusão.
|
||
Os prisioneiros se amontoavam nas antigas salas de aulas e
|
||
alojamentos dos aspirantes. Havia simples marinheiros; havia
|
||
inferiores; havia escreventes e operários de bordo. Brancos, pretos,
|
||
mulatos, caboclos, gente de todas as cores e todos os sentimentos,
|
||
gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer,
|
||
gente inteiramente estranha à questão em debate, gente arrancada à
|
||
força aos lares ou à calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que
|
||
se haviam alistado por miséria; gente ignara, simples, às vezes
|
||
cruel e perversa como crianças inconscientes; às vezes, boa e dócil
|
||
como um cordeiro, mas, enfim, gente sem responsabilidade, sem anseio
|
||
político, sem vontade própria, simples autômatos nas mãos dos chefes
|
||
e superiores que a tinham abandonado à mercê do vencedor.
|
||
De tarde, ele ficava a passear, olhando o mar. A viração soprava
|
||
ainda e as gaivotas continuavam a pescar. Os barcos passavam. Ora,
|
||
eram lanchas fumarentas que lá iam para o fundo da baía; ora
|
||
pequenos botes ou canoas, roçando carinhosamente a superfície das
|
||
águas, pendendo para lá e para cá, como se as suas alvas velas
|
||
enfunadas quisessem afagar a espelhenta superfície do abismo. Os
|
||
Órgãos vinham suavemente morrendo na violeta macia; e o resto era
|
||
azul, um azul imaterial que inebriava, embriagava, como um licor
|
||
capitoso.
|
||
Ficava assim um tempo longo, a ver, e quando se voltava, olhava a
|
||
cidade que entrava na sombra, aos beijos sangrentos do ocaso.
|
||
A noite chegava e Quaresma continuava a passear na borda do mar,
|
||
meditando, pensando, sofrendo com aquelas lembranças de ódios, de
|
||
sangueiras e ferocidade.
|
||
A sociedade e a vida pareceram-lhe coisas horrorosas, e imaginou que
|
||
do exemplo delas vinham os crimes que aquela punia, castigava e
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||
procurava restringir. Eram negras e desesperadas, as suas idéias;
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muita vez julgou que delirava.
|
||
E então se lamentava por estar sozinho, por não ter um companheiro
|
||
com quem conversar, que lhe fizesse fugir àqueles tristes
|
||
pensamentos que o assediavam e se estavam transformando em obsessão.
|
||
Ricardo estava de guarnição na ilha das Cobras; e, mesmo que ali
|
||
estivesse, os rigores da disciplina não lhe permitiriam uma conversa
|
||
mais amigável. Vinha a noite inteiramente, e o silêncio e a treva
|
||
envolviam tudo.
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||
Quaresma ainda ficava horas ao ar livre a pensar, olhando o fundo da
|
||
baía, onde quase não havia luzes que interrompessem a continuidade
|
||
do negror noturno.
|
||
Fixava bem os olhos para lá, como se os quisesse habituar a penetrar
|
||
nas coisas indecifráveis e adivinhar dentro da sombra negra a forma
|
||
das montanhas, o recorte das ilhas que a noite tinha feito
|
||
desaparecer.
|
||
Fatigado, ia dormir. Nem sempre dormia bem; tinha insônias e, se
|
||
queria ler, a atenção recusava fixar-se e o pensamento vagabundava
|
||
muito longe do livro.
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||
Certa noite em que ia dormindo melhor, um inferior veio acordá-lo
|
||
pela madrugada:
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||
- Senhor major, está aí o “home” do Itamarati.
|
||
- Que homem?
|
||
- O oficial que vem buscar a turma do Boqueirão.
|
||
Sem atinar do que se tratava, levantou-se e foi ao encontro do
|
||
visitante. O homem já estava no interior de um dos alojamentos. Uma
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||
escolta estava à porta. Seguiam-no algumas praças, das quais uma
|
||
levava uma lanterna que derramava no salão uma fraca luzerna
|
||
amarelada. A vasta sala estava cheia de corpos, deitados, seminus, e
|
||
havia todo o íris das cores humanas. Uns roncavam, outros dormiam
|
||
somente; e, quando Quaresma entrou, houve alguém que em sonho,
|
||
|
||
- ai! Cumprimentaram-se, Quaresma e o emissário do Itamarati, e
|
||
nada disseram. Ambos tiveram medo de falar. O oficial despertou um
|
||
dos prisioneiros e disse para as praças: “Levem este”.
|
||
Seguiu adiante e despertou outro: - “Onde você esteve?” “Eu” -
|
||
respondeu o marinheiro - “na Guanabara”... “Ah! patife” acudiu o
|
||
homem do Itamarati... “Este também... Levem!”...
|
||
Os soldados condutores iam até à porta, deixavam o prisioneiro e
|
||
voltavam.
|
||
O oficial passou por uma porção deles e não fez reparo; adiante, deu
|
||
com um rapaz claro, franzino, que não dormia. Gritou então:
|
||
“Levante- se!” O rapaz ergueu-se tremendo. - “Onde esteve você?”
|
||
perguntou. - “Eu era enfermeiro”, retrucou o rapaz. - “Que
|
||
enfermeiro!” fez o emissário. “Levem este também”...
|
||
- Mas, “seu” tenente, deixe-me escrever à minha mãe, pediu o rapaz
|
||
quase chorando.
|
||
- Que mãe! respondeu o homem do Itamarati. Siga! Vá!
|
||
E assim foi uma dúzia, escolhida a esmo, ao acaso, cercada pela
|
||
escolta, a embarcar num batelão que uma lancha logo rebocou para
|
||
fora das águas da ilha.
|
||
Quaresma não atinou de pronto com o sentido da cena e foi, após o
|
||
afastamento da lancha, que ele encontrou uma explicação.
|
||
Não deixou de pensar então por que força misteriosa, por que
|
||
injunção irônica ele se tinha misturado em tão tenebrosos
|
||
acontecimentos, assistindo ao sinistro alicerçar do regime...
|
||
A embarcação não ia longe. O mar gemia demoradamente de encontro às
|
||
pedras do cais. A esteira da embarcação estrelejava fosforescente.
|
||
No alto, num céu negro e profundo, as estrelas brilhavam
|
||
serenamente.
|
||
A lancha desapareceu nas trevas do fundo da baía. Para onde ia? Para
|
||
o Boqueirão...
|
||
V
|
||
A AFILHADA
|
||
Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele
|
||
estreito calabouço? Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão
|
||
profundos pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim? De que
|
||
maneira sorrateira o Destino o arrastara até ali, sem que ele
|
||
pudesse pressentir o seu extravagante propósito, tão aparentemente
|
||
sem relação com o resto da sua vida? Teria sido ele com os seus atos
|
||
passados, com as suas ações encadeadas no tempo, que fizera com que
|
||
aquele velho deus docilmente o trouxesse até à execução de tal
|
||
desígnio? Ou teriam sido os fatos externos, que venceram a ele,
|
||
Quaresma, e fizeram-no escravo da sentença da onipotente divindade?
|
||
Ele não sabia, e, quando teimava em pensar, as duas coisas se
|
||
baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e exata lhe fugia.
|
||
Não estava ali há muitas horas. Fora preso pela manhã, logo ao
|
||
erguer-se da cama; e, pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava
|
||
sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-lo à fraca luz
|
||
da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.
|
||
Por que estava preso? Ao certo não sabia; o oficial que o conduzira,
|
||
nada lhe quisera dizer; e, desde que saíra da ilha das Enxadas para
|
||
a das Cobras, não trocara palavra com ninguém, não vira nenhum
|
||
conhecido no caminho, nem o próprio Ricardo que lhe podia, com um
|
||
olhar, com um gesto, trazer sossego às suas dúvidas. Entretanto, ele
|
||
atribuía a prisão à carta que escrevera ao presidente, protestando
|
||
contra a cena que presenciara na véspera.
|
||
Não se pudera conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a
|
||
desoras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara
|
||
fundo a todos os seus sentimentos; pusera diante dos seus olhos
|
||
todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a
|
||
sua solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com
|
||
paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro,
|
||
franca e nitidamente.
|
||
Devia ser por isso que ele estava ali naquela masmorra, engaiolado,
|
||
trancafiado, isolado dos seus semelhantes como uma fera, como um
|
||
criminoso, sepultado na treva, sofrendo umidade, misturado com os
|
||
seus detritos, quase sem comer... Como acabarei? Como acabarei? E a
|
||
pergunta lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquela
|
||
angústia provocava pensar. Não havia base para qualquer hipótese.
|
||
Era de conduta tão irregular e incerta o Governo que tudo ele podia
|
||
esperar: a liberdade ou a morte, mais esta que aquela.
|
||
O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar,
|
||
para afirmar mais a vitória e senti-la bem na consciência coisa sua,
|
||
própria, e altamente honrosa.
|
||
Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito
|
||
de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a
|
||
pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a
|
||
sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua
|
||
virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o
|
||
recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava?
|
||
Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de fruir, na sua
|
||
vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara - todo esse lado
|
||
da existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária,
|
||
ele não vira, ele não provara, ele não experimentara.
|
||
Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele
|
||
fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios?
|
||
Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a
|
||
felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O
|
||
importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das
|
||
suas coisas de tupi, do folk-lore, das suas tentativas agrícolas...
|
||
Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
|
||
O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio;
|
||
e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras
|
||
não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra
|
||
decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que
|
||
achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não
|
||
a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros,
|
||
inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série,
|
||
melhor, um encadeamento de decepções.
|
||
A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele
|
||
no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a
|
||
intelectual,nem a política que julgava existir, havia, A que existia
|
||
de fato, era a do Tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem
|
||
do Itamarati.
|
||
E, bem pensado, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Pátria? Não
|
||
teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma idéia
|
||
a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma Deusa cujo império
|
||
se esvaía? Não sabia que essa idéia nascera da amplificação da
|
||
crendice dos povos greco-romanos de que os ancestrais mortos
|
||
continuariam a viver como sombras e era preciso alimentá-las para
|
||
que eles não perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel
|
||
de Coulanges... Lembrou-se de que essa noção nada é para os
|
||
Menenanã, para tantas pessoas... Pareceu-lhe que essa idéia como que
|
||
fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das
|
||
nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas
|
||
próprias ambições...
|
||
Reviu a história; viu as mutilações, os acréscimos em todos os
|
||
países históricos e perguntou de si para si: como um homem que
|
||
vivesse quatro séculos sendo francês, inglês, italiano, alemão,
|
||
podia sentir a Pátria?
|
||
Uma hora, para o francês, o Franco-Condado era terra dos seus avós,
|
||
outra não era; num dado momento, a Alsácia não era, depois era e
|
||
afinal não vinha a ser.
|
||
Nós mesmos não tivemos a Cisplatina e não a perdemos; e, porventura,
|
||
sentimos que haja lá manes dos nossos avós e por isso sofremos
|
||
qualquer mágoa?
|
||
Certamente era uma noção sem consistência racional e precisava ser
|
||
revista.
|
||
Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida,
|
||
gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que
|
||
não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou
|
||
enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto
|
||
toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de
|
||
si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um
|
||
filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e
|
||
sem sequer uma asneira!
|
||
Nada deixava que afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera
|
||
nada de saboroso.
|
||
Contudo, quem sabe se outros que lhe seguissem as pegadas não seriam
|
||
mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se
|
||
fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho,
|
||
dando-lhe corpo e substância?
|
||
E esse seguimento adiantaria alguma coisa? E essa continuidade
|
||
traria enfim para a terra alguma felicidade? Há quantos anos vidas
|
||
mais valiosas que a dele, se vinham oferecendo, sacrificando e as
|
||
coisas ficaram na mesma, a terra na mesma miséria, na mesma
|
||
opressão, na mesma tristeza.
|
||
E ele se lembrava que há bem cem anos, ali, naquele mesmo lugar onde
|
||
estava, talvez naquela mesma prisão, homens generosos e ilustres
|
||
estiveram presos por quererem melhorar o estado de coisas de seu
|
||
tempo. Talvez só tivessem pensado, mas sofreram pelo seu pensamento.
|
||
Tinha havido vantagem? As condições gerais tinham melhorado?
|
||
Aparentemente sim; mas, bem examinado, não.
|
||
Aqueles homens, acusados de crime tão nefando em face da legislação
|
||
da época, tinham levado dois anos a ser julgados; e ele, que não
|
||
tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado; seria
|
||
simplesmente executado!
|
||
Fora bom, fora generoso, fora honesto, fora virtuoso - ele que fora
|
||
tudo isso, ia para a cova sem o acompanhamento de um parente, de um
|
||
amigo, de um camarada...
|
||
Onde estariam eles? Sobre o Ricardo Coração dos Outros, tão simples
|
||
e tão inocente na sua mania de violão, ele não poria mais os olhos?
|
||
Era tão bom que o pudesse, para mandar à sua irmã o último recado,
|
||
ao preto Anastácio um adeus, à sua afilhada um abraço! Nunca mais
|
||
vê-los-ia, nunca!
|
||
E ele chorou um pouco.
|
||
Quaresma, porém, enganava-se em parte. Ricardo soubera de sua prisão
|
||
e procurava soltá-lo. Teve noticia do exato motivo dela; mas não se
|
||
intimidou. Sabia perfeitamente que corria grande risco, pois a
|
||
indignação no palácio contra Quaresma fora geral. A vitória tinha
|
||
feito os vitoriosos inclementes e ferozes, e aquele protesto soou
|
||
entre eles como um desejo de diminuir o valor das vantagens
|
||
alcançadas. Não havia mais piedade, não havia mais simpatia, nem
|
||
respeito pela vida humana; o que era necessário era dar o exemplo de
|
||
um massacre à turca, porém clandestino, para que jamais o poder
|
||
constituído fosse atacado ou mesmo discutido. Era a filosofia social
|
||
da época, com forças de religião, com os seus fanáticos, com os seus
|
||
sacerdotes e pregadores, e ela agia com a maldade de uma crença
|
||
forte, sobre a qual fizéssemos repousar a felicidade de muitos.
|
||
Ricardo, entretanto, não se amedrontou; procurou influências de
|
||
amigos. Ao entrar no Largo de São Francisco encontrou Genelício.
|
||
Vinha da missa da irmã da sogra do Deputado Castro. Como sempre,
|
||
trajava uma pesada sobrecasaca preta que parecia de chumbo. Já
|
||
estava subdiretor e o seu trabalho era agora imaginar meios e modos
|
||
de ser diretor. A coisa era difícil; mas trabalhava num livro: Os
|
||
Tribunais de Contas nos Países Asiáticos - o qual, demonstrando uma
|
||
erudição superior, talvez lhe levasse ao alto lugar cobiçado.
|
||
Vendo-o, Ricardo não se deteve. Correu-lhe ao encalço e falou-lhe:
|
||
- Doutor, Vossa Excelência dá licença que lhe dê uma palavra?
|
||
Genelício perfilou-se todo e, como tivesse péssima memória das
|
||
fisionomias humildes, perguntou com solenidade e arrogância:
|
||
- Que deseja, camarada?
|
||
Coração dos Outros estava com a sua farda do “Cruzeiro do Sul” e não
|
||
ficava bem a Genelício dar-se como conhecido de um soldado. O
|
||
trovador julgou-o mesmo esquecido e indagou ingenuamente:
|
||
- Não me conhece mais, doutor?
|
||
Genelício fechou um pouco os olhos por detrás do pince-nez azulado e
|
||
disse secamente:
|
||
- Não.
|
||
- Eu, fez com humildade Ricardo, sou Ricardo Coração dos Outros,
|
||
que cantou no seu casamento.
|
||
Genelicio não sorriu, não deu mostras de alegria e limitou-se:
|
||
- Ah! É o senhor! Bem: que deseja?
|
||
- O senhor não sabe que o Major Quaresma está preso?
|
||
- Quem é?
|
||
- Aquele que foi vizinho do seu sogro.
|
||
- Aquele maluco... Ahn!... E daí?
|
||
- Eu queria que o senhor se interessasse...
|
||
- Não me meto nessas coisas, meu amigo. O governo tem sempre razão.
|
||
Passe bem.
|
||
E Genelício seguiu com o seu passo cauteloso de quem poupa as solas
|
||
das botas, enquanto Ricardo ficava de pé a olhar o largo, a gente
|
||
que passava, a estátua imóvel, as casas feias, a igreja... Tudo lhe
|
||
pareceu hostil, mau ou indiferente; aquelas caras de homens tinham
|
||
cataduras de feras e ele quis por um momento chorar de desespero por
|
||
não poder salvar o amigo.
|
||
Lembrou-se, porém, de Albernaz, e correu a procurá-lo. Não era
|
||
longe, mas o general ainda não tinha chegado. Ao fim de uma hora o
|
||
general chegou e, dando com Ricardo, perguntou:
|
||
- Que há?
|
||
O trovador, bastante emocionado, explicou-lhe com voz dorida todo o
|
||
fato. Albernaz concertou o pince-nez, ajeitou bem o trancelim de
|
||
ouro na orelha e disse com doçura:
|
||
- Meu filho, eu não posso... Você sabe; sou governista e parece, se
|
||
eu for pedir por um preso, que já não o sou bastante... Sinto muito,
|
||
mas... que se há de fazer? Paciência.
|
||
E entrou para o seu gabinete prazenteiro, muito seguro de si, dentro
|
||
do seu plácido uniforme de general.
|
||
Os oficiais continuavam a entrar e a sair; as campainhas soavam; os
|
||
contínuos iam e vinham; e Ricardo procurava entre todas aquelas
|
||
fisionomias uma que lhe pudesse valer. Não havia e ele desesperava.
|
||
Mas quem havia de ser? Quem? Lembrou-se: o comandante; e foi ter com
|
||
o Coronel Bustamante, na velha estalagem que servia de quartel ao
|
||
garboso “Cruzeiro do Sul”.
|
||
O batalhão ainda continuava em pé de guerra. Embora terminada a
|
||
revolta no porto do Rio de Janeiro era preciso mandar forças para o
|
||
Sul; de forma que os batalhões não tinham sido dissolvidos e um dos
|
||
apontados para partir era o “Cruzeiro”.
|
||
O alferes coxo, no ensaboado pátio da antiga estalagem, continuava
|
||
na sua faina de instrutor dos novos recrutas. Om - brooo... armas!
|
||
Mei - ãã volta!
|
||
Ricardo entrou, subiu rapidamente a oscilante escada do velho
|
||
cortiço e logo que chegou ao cubículo do comandante, gritou: “Com
|
||
licença, comandante!”
|
||
Bustamante andava de mau humor. Aquele negócio de partir para o
|
||
Paraná não lhe agradava. Como é que havia de superintender a escrita
|
||
do batalhão, no fervor de batalhas, nas desordens de marchas e
|
||
contramarchas? Isso era uma tolice do comandante marchar; o chefe
|
||
devia ficar a resguardo, para providenciar e dirigir a escrituração.
|
||
Ele pensava nessas coisas, quando Ricardo pediu licença.
|
||
- Entre, disse ele.
|
||
O bravo coronel coçava a grande barba mosaica, tinha o dólmã
|
||
desabotoado e acabava de calçar um dos pés de botina, para com mais
|
||
decência receber o inferior.
|
||
Ricardo expôs o seu pedido e esperou com paciência a resposta, que
|
||
custou a vir. Por fim, Inocêncio disse sacudindo a cabeça e olhando
|
||
o inferior cheio de severidade:
|
||
- Vai-te embora, senão mando-te prender! Já!
|
||
E apontou com o dedo a porta da saída num gesto marcial e enérgico.
|
||
O cabo não se demorou mais. No pátio o instrutor coxo, veterano do
|
||
Paraguai, continuava com solenidade a encher a arruinada estalagem
|
||
com as suas vozes de comando! Om-brôô... armas! Meia-ãã... volta...
|
||
volver!
|
||
Ricardo veio andando triste e desalentado, O mundo lhe parecia vazio
|
||
de afeto e de amor. Ele que sempre decantara nas suas modinhas a
|
||
dedicação, o amor, as simpatias, via agora que tais sentimentos não
|
||
existiam. Tinha marchado atrás de coisas fora da realidade, de
|
||
quimeras. Olhou o céu alto. Estava tranqüilo e calmo. Olhou as
|
||
árvores. As palmeiras cresciam com orgulho e titanicamente
|
||
pretendiam atingir o céu. Olhou as casas, as igrejas, os palácios e
|
||
lembrou-se das guerras, do sangue, das dores que tudo aquilo
|
||
custara. E era assim que se fazia a vida, a história e o heroísmo:
|
||
com violência sobre os outros, com opressões e sofrimentos.
|
||
Logo, porém, recordou que era preciso salvar o amigo e que era
|
||
necessário dar mais uns passos. Quem poderia? Consultou sua memória.
|
||
Viu um, viu outro e por fim lembrou-se da afilhada de Quaresma, e
|
||
foi procurá-la na Real Grandeza.
|
||
Chegou, narrou-lhe o fato e as suas sinistras apreensões. Ela estava
|
||
só, pois o marido cada vez mais trabalhava para aproveitar os
|
||
despojos da vitória; não perdia um minuto, andando atrás de um e de
|
||
outro.
|
||
Olga lembrou-se bem do padrinho, do seu eterno sonhar, da sua
|
||
ternura, da tenacidade que punha em seguir as suas idéias, da sua
|
||
candura de donzela romântica...
|
||
Durante um instante uma grande pena tomou-a toda inteira e tirou-lhe
|
||
a vontade de agir. Pareceu-lhe que era bastante a sua piedade e ela
|
||
ia de algum modo dar lenitivo ao sofrimento do padrinho; mas bem
|
||
cedo o viu ensangüentado - ele, tão generoso, ele, tão bom, e
|
||
pensou em salvá-lo.
|
||
- Mas que fazer, meu caro Senhor Ricardo, que fazer? Eu não conheço
|
||
ninguém... Eu não tenho relações... Minhas amigas... A Alice, a
|
||
mulher do doutor Brandão, está fora... A Cassilda, a filha do
|
||
Castrioto, não pode... Não sei, meu Deus!
|
||
E acentuou estas últimas palavras com grande e lancinante desespero.
|
||
Os dois ficaram calados. A moça, que estava sentada, tomou a cabeça
|
||
entre as mãos e as suas unhas longas e aperoladas engastaram-se nos
|
||
seus cabelos negros. Ricardo estava de pé e aparvalhado.
|
||
- Que hei de fazer, meu Deus? repetiu ela.
|
||
Pela primeira vez, ela sentiu que a vida tinha coisas
|
||
desesperadoras. Possuía a mais forte disposição de salvar seu
|
||
padrinho: faria sacrifício de tudo, mas era impossível, impossível!
|
||
Não havia um meio; não havia um caminho. Ele tinha que ir para o
|
||
posto de suplício, tinha que subir o seu Calvário, sem esperança de
|
||
ressurreição.
|
||
- Talvez seu marido, disse Ricardo.
|
||
Pensou um pouco, demorou-se mais no exame do caráter do esposo; mas,
|
||
em breve, viu bem que o seu egoísmo, a sua ambição e a sua
|
||
ferocidade interesseira não permitiriam, que ele desse o mínimo
|
||
passo.
|
||
- Qual, esse...
|
||
Ricardo não sabia o que aconselhá-la e olhava sem pensamento os
|
||
móveis e a montanha negra e alta que se avistava da sala onde
|
||
estavam. Queria encontrar um alvitre, um conselho; mas nada!
|
||
A moça continuava a cravar os dedos nos seus cabelos negros e a
|
||
olhar a mesa em que repousavam os seus cotovelos. O silêncio era
|
||
augusto.
|
||
Num dado momento, Ricardo teve uma grande alegria no olhar e disse:
|
||
- Se a senhora fosse lá...
|
||
Ela levantou a cabeça; os seus olhos se dilataram de espanto e o
|
||
rosto lhe ficou rígido. Pensou um pouco, um nada, e falou com
|
||
firmeza:
|
||
- Vou.
|
||
Ricardo ficou só e sentou-se, Olga foi vestir-se.
|
||
Ele então pensou com admiração naquela moça que por simples amizade
|
||
se dava a tão arriscado sacrifício, que tinha a alma tão ao alcance
|
||
dela mesma e a sentiu bem longe desse nosso mundo, deste nosso
|
||
egoísmo, dessa nossa baixeza e cobriu a sua imagem com um grande
|
||
olhar de reconhecimento.
|
||
Não tardou que ela ficasse pronta e ainda abotoava as luvas, na sala
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de jantar, quando o marido entrou. Vinha radiante, com os seus
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grandes bigodes e o seu rosto redondo cheio de satisfação de si
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mesmo. Nem fez menção de ter visto Ricardo e foi logo direto à
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mulher:
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- Vais sair?
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Ela, afogueada pela ânsia desesperada de salvar Quaresma, disse com
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certa vivacidade:
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- Vou.
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Armando ficou admirado de vê-la falar daquele modo. Voltou-se um
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instante para Ricardo, quis interrogá-lo, mas logo, dirigindo-se à
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mulher, perguntou com autoridade:
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- Onde vais?
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A mulher não lhe respondeu logo e, por sua vez, o doutor interrogou
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o trovador:
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- Que faz o senhor aqui?
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Coração dos Outros não teve ânimo de responder; adivinhava uma cena
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violenta que ele teria querido evitar; mas Olga adiantou-se:
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- Vai acompanhar-me ao Itamarati, para salvar da morte meu
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padrinho. Já sabe?
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O marido pareceu acalmar-se. Acreditou que, com meios suasórios,
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poderia evitar que a mulher desse passo tão perigoso para os seus
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interesses e ambições. Falou docemente:
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- Fazes mal.
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- Por quê? perguntou ela com calor.
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- Vais comprometer-me. Sabes que...
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Ela não lhe respondeu logo e mirou-o um instante com os seus grandes
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olhos cheios de escárnio; mirou-o um, dois minutos; depois, riu-se
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um pouco e disse:
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- É isto! “Eu”, porque “eu”, porque “eu”, é só “eu” para aqui, “eu”
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para ali... Não pensas noutra coisa... A vida é feita para ti, todos
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só devem viver para ti... Muito engraçado! De forma que eu (agora
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digo “eu” também) não tenho direito de me sacrificar, de provar a
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minha amizade, de ter na minha vida um traço superior? É
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interessante! Não sou nada, nada! Sou alguma coisa como um móvel, um
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adorno, não tenho relações, não tenho amizades, não tenho caráter?
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Ora!...
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Ela falava, ora vagarosa e irônica, ora rapidamente e apaixonada; e
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o marido tinha diante de suas palavras um grande espanto, Ele vivera
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sempre tão longe dela que não a julgara nunca capaz de tais assomos.
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Então aquela menina? Então aquele bibelot? Quem lhe teria ensinado
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tais coisas? Quis desarmá-la com uma ironia e disse risonho:
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- Estás no teatro?
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Ela lhe respondeu logo:
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- Se é só no teatro que há grandes coisas, estou.
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E acrescentou com força:
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- É o que te digo: vou e vou, porque devo, porque quero, porque é
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do meu direito.
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Apanhou a sombrinha, concertou o véu e saiu solene, firme, alta e
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nobre. O marido não sabia o que fazer. Ficou assombrado e assombrado
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e silencioso viu-a sair pela porta fora.
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Em breve, estava no palácio da Rua Larga. Ricardo não entrou: deixou
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que a moça o fizesse e foi esperá-la no Campo de Sant’Ana,
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Ela subiu. Havia um imenso burburinho, uma agitação de entradas e
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saídas. Toda a gente queria mostrar-se a Floriano, queria
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cumprimentálo, queria dar mostras da sua dedicação, provar os seus
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serviços, mostrandose co-participante na sua vitória. Lançavam mão
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de todos os meios, de todos os planos, de todos os processos. O
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ditador tão acessível antes, agora se esquivava. Havia quem lhe
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quisesse beijar as mãos, como ao papa ou a um imperador; e ele já
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tinha nojo de tanta subserviência. O califa não se supunha sagrado e
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aborrecia-se.
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Olga falou aos contínuos, pedindo ser recebida pelo marechal. Foi
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inútil. A muito custo conseguiu falar a um secretário ou
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ajudante-de-ordens. Quando ela lhe disse a que vinha, a fisionomia
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terrosa do homem tornou-se de oca e sob as suas pálpebras correu um
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firme e rápido lampejo de espada:
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- Quem, Quaresma? disse ele. Um traidor! Um bandido!
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Depois, arrependeu-se da veemência, fez com certa delicadeza:
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- Não é possível, minha senhora. O marechal não a atenderá.
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Ela nem lhe esperou o fim da frase. Ergueu-se orgulhosamente,
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deu-lhe as costas e teve vergonha de ter ido pedir, de ter descido
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do seu orgulho e ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o
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seu pedido. Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e
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heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo
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inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua
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personalidade moral, sem a mácula de um empenho que diminuísse a
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injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus
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algozes que eles tinham direito de matá-lo.
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Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se
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lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens,
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das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de
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dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os
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ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas; viu os
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bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma
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linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do
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campo... Tinha havido grandes e inúmeras modificações. Que fora
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aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações
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nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos
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mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo
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Coração dos Outros.
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Todos os Santos (Rio de Janeiro), janeiro - março de 1911.
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