From 18432d31b6e46a16596ecf42100537061e3e8423 Mon Sep 17 00:00:00 2001 From: TiagoRG <35657250+TiagoRG@users.noreply.github.com> Date: Mon, 21 Nov 2022 18:05:44 +0000 Subject: [PATCH] countLetters.py improvement --- 1ano/fp/aula07/countLetters.py | 37 +- 1ano/fp/aula07/datafiles/pg3333.txt | 11450 ++++++++++++++++++++++++++ 2 files changed, 11472 insertions(+), 15 deletions(-) create mode 100644 1ano/fp/aula07/datafiles/pg3333.txt diff --git a/1ano/fp/aula07/countLetters.py b/1ano/fp/aula07/countLetters.py index 3ac32f0..41a8276 100644 --- a/1ano/fp/aula07/countLetters.py +++ b/1ano/fp/aula07/countLetters.py @@ -2,24 +2,31 @@ import sys def main(): - # Read the file - f = open(sys.argv[1], 'r') - text = f.read() - f.close() - - # Count the letters - letters = {} - for c in text: - if c.isalpha(): - c = c.lower() - if c in letters: - letters[c] += 1 - else: - letters[c] = 1 - + letters = countLetters(sys.argv[1]) + # Print the results for c in sorted(letters.keys()): print(c, letters[c]) + + # Print the most used letter and the number of times it's used + usedTheMostCount = max(letters.values()) + usedTheMost = [letter for letter in letters.keys() if letters[letter] == usedTheMostCount][0] + print(f"A letra mais usada foi '{usedTheMost}', usada {usedTheMostCount} vezes.") + + +def countLetters(filename): + # Read the file and count the letters + letters = {} + with open(filename, 'r') as f: + for c in f.read(): + if c.isalpha(): + c = c.lower() + if c not in letters: + letters[c] = 0 + letters[c] += 1 + + # Returns the dictionary with the letters + return letters if __name__ == "__main__": diff --git a/1ano/fp/aula07/datafiles/pg3333.txt b/1ano/fp/aula07/datafiles/pg3333.txt new file mode 100644 index 0000000..ccabbff --- /dev/null +++ b/1ano/fp/aula07/datafiles/pg3333.txt @@ -0,0 +1,11450 @@ +The Project Gutenberg EBook of Os Lusíadas, by Luís Vaz de Camões + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Os Lusíadas + +Author: Luís Vaz de Camões + +Release Date: February 4, 2007 [EBook #3333] +[File first posted on March 28, 2001] + +Language: Portuguese + + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS LUSÍADAS *** + + + + +Produced by Maria Helena Moreira Rodriques and Victor Calha + + + + + +Luís Vaz de Camões +Os Lusíadas + +Canto Primeiro + +1 +As armas e os barões assinalados, +Que da ocidental praia Lusitana, +Por mares nunca de antes navegados, +Passaram ainda além da Taprobana, +Em perigos e guerras esforçados, +Mais do que prometia a força humana, +E entre gente remota edificaram +Novo Reino, que tanto sublimaram; + +2 +E também as memórias gloriosas +Daqueles Reis, que foram dilatando +A Fé, o Império, e as terras viciosas +De África e de Ásia andaram devastando; +E aqueles, que por obras valerosas +Se vão da lei da morte libertando; +Cantando espalharei por toda parte, +Se a tanto me ajudar o engenho e arte. + +3 +Cessem do sábio Grego e do Troiano +As navegações grandes que fizeram; +Cale-se de Alexandro e de Trajano +A fama das vitórias que tiveram; +Que eu canto o peito ilustre Lusitano, +A quem Neptuno e Marte obedeceram: +Cesse tudo o que a Musa antígua canta, +Que outro valor mais alto se alevanta. + +4 +E vós, Tágides minhas, pois criado +Tendes em mim um novo engenho ardente, +Se sempre em verso humilde celebrado +Foi de mim vosso rio alegremente, +Dai-me agora um som alto e sublimado, +Um estilo grandíloquo e corrente, +Porque de vossas águas, Febo ordene +Que não tenham inveja às de Hipoerene. + +5 +Dai-me uma fúria grande e sonorosa, +E não de agreste avena ou frauta ruda, +Mas de tuba canora e belicosa, +Que o peito acende e a cor ao gesto muda; +Dai-me igual canto aos feitos da famosa +Gente vossa, que a Marte tanto ajuda; +Que se espalhe e se cante no universo, +Se tão sublime preço cabe em verso. + +6 +E vós, ó bem nascida segurança +Da Lusitana antígua liberdade, +E não menos certíssima esperança +De aumento da pequena Cristandade; +Vós, ó novo temor da Maura lança, +Maravilha fatal da nossa idade, +Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, +Para do mundo a Deus dar parte grande; + +7 +Vós, tenro e novo ramo florescente +De uma árvore de Cristo mais amada +Que nenhuma nascida no Ocidente, +Cesárea ou Cristianíssima chamada; +(Vede-o no vosso escudo, que presente +Vos amostra a vitória já passada, +Na qual vos deu por armas, e deixou +As que Ele para si na Cruz tomou) + +8 +Vós, poderoso Rei, cujo alto Império +O Sol, logo em nascendo, vê primeiro; +Vê-o também no meio do Hemisfério, +E quando desce o deixa derradeiro; +Vós, que esperamos jugo e vitupério +Do torpe Ismaelita cavaleiro, +Do Turco oriental, e do Gentio, +Que inda bebe o licor do santo rio; + +9 +Inclinai por um pouco a majestade, +Que nesse tenro gesto vos contemplo, +Que já se mostra qual na inteira idade, +Quando subindo ireis ao eterno templo; +Os olhos da real benignidade +Ponde no chão: vereis um novo exemplo +De amor dos pátrios feitos valerosos, +Em versos divulgado numerosos. + +10 +Vereis amor da pátria, não movido +De prémio vil, mas alto e quase eterno: +Que não é prémio vil ser conhecido +Por um pregão do ninho meu paterno. +Ouvi: vereis o nome engrandecido +Daqueles de quem sois senhor superno, +E julgareis qual é mais excelente, +Se ser do mundo Rei, se de til gente. + +11 +Ouvi, que não vereis com vãs façanhas, +Fantásticas, fingidas, mentirosas, +Louvar os vossos, como nas estranhas +Musas, de engrandecer-se desejosas: +As verdadeiras vossas são tamanhas, +Que excedem as sonhadas, fabulosas; +Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro, +E Orlando, inda que fora verdadeiro, + +12 +Por estes vos darei um Nuno fero, +Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço, +Um Egas, e um D. Fuas, que de Homero +A cítara para eles só cobiço. +Pois pelos doze Pares dar-vos quero +Os doze de Inglaterra, e o seu Magriço; +Dou-vos também aquele ilustre Gama, +Que para si de Eneias toma a fama. + +13 +Pois se a troco de Carlos, Rei de França, +Ou de César, quereis igual memória, +Vede o primeiro Afonso, cuja lança +Escura faz qualquer estranha glória; +E aquele que a seu Reino a segurança +Deixou com a grande e próspera vitória; +Outro Joane, invicto cavaleiro, +O quarto e quinto Afonsos, e o terceiro. + +14 +Nem deixarão meus versos esquecidos +Aqueles que nos Reinos lá da Aurora +Fizeram, só por armas tão subidos, +Vossa bandeira sempre vencedora: +Um Pacheco fortíssimo, e os temidos +Almeidas, por quem sempre o Tejo chora; +Albuquerque terríbil, Castro forte, +E outros em quem poder não teve a morte. + +15 +E enquanto eu estes canto, e a vós não posso, +Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, +Tomai as rédeas vós do Reino vosso: +Dareis matéria a nunca ouvido canto. +Comecem a sentir o peso grosso +(Que pelo mundo todo faça espanto) +De exércitos e feitos singulares, +De África as terras, e do Oriente os marços, + +16 +Em vós os olhos tem o Mouro frio, +Em quem vê seu exício afigurado; +Só com vos ver o bárbaro Gentio +Mostra o pescoço ao jugo já inclinado; +Tethys todo o cerúleo senhorio +Tem para vós por dote aparelhado; +Que afeiçoada ao gesto belo e tenro, +Deseja de comprar-vos para genro. + +17 +Em vós se vêm da olímpica morada +Dos dois avós as almas cá famosas, +Uma na paz angélica dourada, +Outra pelas batalhas sanguinosas; +Em vós esperam ver-se renovada +Sua memória e obras valerosas; +E lá vos tem lugar, no fim da idade, +No templo da suprema Eternidade. + +18 +Mas enquanto este tempo passa lento +De regerdes os povos, que o desejam, +Dai vós favor ao novo atrevimento, +Para que estes meus versos vossos sejam; +E vereis ir cortando o salso argento +Os vossos Argonautas, por que vejam +Que são vistos de vós no mar irado, +E costumai-vos já a ser invocado. + +19 +Já no largo Oceano navegavam, +As inquietas ondas apartando; +Os ventos brandamente respiravam, +Das naus as velas côncavas inchando; +Da branca escuma os mares se mostravam +Cobertos, onde as proas vão cortando +As marítimas águas consagradas, +Que do gado de Próteo são cortadas + +20 +Quando os Deuses no Olimpo luminoso, +Onde o governo está da humana gente, +Se ajuntam em concílio glorioso +Sobre as cousas futuras do Oriente. +Pisando o cristalino Céu formoso, +Vêm pela Via-Láctea juntamente, +Convocados da parte do Tonante, +Pelo neto gentil do velho Atlante. + +21 +Deixam dos sete Céus o regimento, +Que do poder mais alto lhe foi dado, +Alto poder, que só co'o pensamento +Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado. +Ali se acharam juntos num momento +Os que habitam o Arcturo congelado, +E os que o Austro tem, e as partes onde +A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde. + +22 +Estava o Padre ali sublime e dino, +Que vibra os feros raios de Vulcano, +Num assento de estrelas cristalino, +Com gesto alto, severo e soberano. +Do rosto respirava um ar divino, +Que divino tornara um corpo humano; +Com uma coroa e ceptro rutilante, +De outra pedra mais clara que diamante. + +23 +Em luzentes assentos, marchetados +De ouro e de perlas, mais abaixo estavam +Os outros Deuses todos assentados, +Como a razão e a ordem concertavam: +Precedem os antíguos mais honrados; +Mais abaixo os menores se assentavam; +Quando Júpiter alto, assim dizendo, +C'um tom de voz começa, grave e horrendo: + +24 +"Eternos moradores do luzente +Estelífero pólo, e claro assento, +Se do grande valor da forte gente +De Luso não perdeis o pensamento, +Deveis de ter sabido claramente, +Como é dos fados grandes certo intento, +Que por ela se esqueçam os humanos +De Assírios, Persas, Gregos e Romanos. + +25 +"Já lhe foi (bem o vistes) concedido +C'um poder tão singelo e tão pequeno, +Tomar ao Mouro forte e guarnecido +Toda a terra, que rega o Tejo ameno: +Pois contra o Castelhano tão temido, +Sempre alcançou favor do Céu sereno. +Assim que sempre, enfim, com fama e glória, +Teve os troféus pendentes da vitória. + +26 +"Deixo, Deuses, atrás a fama antiga, +Que coa gente de Rómulo alcançaram, +Quando com Viriato, na inimiga +Guerra romana tanto se afamaram; +Também deixo a memória, que os obriga +A grande nome, quando alevantaram +Um por seu capitão, que peregrino +Fingiu na cerva espírito divino. + +27 +"Agora vedes bem que, cometendo +O duvidoso mar num lenho leve, +Por vias nunca usadas, não temendo +De Áf rico e Noto a força, a mais se atreve: +Que havendo tanto já que as partes vendo +Onde o dia é comprido e onde breve, +Inclinam seu propósito e porfia +A ver os berços onde nasce o dia. + +28 +"Prometido lhe está do Fado eterno, +Cuja alta Lei não pode ser quebrada, +Que tenham longos tempos o governo +Do mar, que vê do Sol a roxa entrada. +Nas águas têm passado o duro inverno; +A gente vem perdida e trabalhada; +Já parece bem feito que lhe seja +Mostrada a nova terra, que deseja. + +29 +"E porque, como vistes, têm passados +Na viagem tão ásperos perigos, +Tantos climas e céus experimentados, +Tanto furor de ventos inimigos, +Que sejam, determino, agasalhados +Nesta costa africana, como amigos. +E tendo guarnecida a lassa frota, +Tornarão a seguir sua longa rota." + +30 +Estas palavras Júpiter dizia, +Quando os Deuses por ordem respondendo, +Na sentença um do outro diferia, +Razões diversas dando e recebendo. +O padre Baco ali não consentia +No que Júpiter disse, conhecendo +Que esquecerão seus feitos no Oriente, +Se lá passar a Lusitana gente. + +31 +Ouvido tinha aos Fados que viria +Uma gente fortíssima de Espanha +Pelo mar alto, a qual sujeitaria +Da índia tudo quanto Dóris banha, +E com novas vitórias venceria +A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha. +Altamente lhe dói perder a glória, +De que Nisa celebra inda a memória. + +32 +Vê que já teve o Indo sojugado, +E nunca lhe tirou Fortuna, ou caso, +Por vencedor da Índia ser cantado +De quantos bebem a água de Parnaso. +Teme agora que seja sepultado +Seu tão célebre nome em negro vaso +D'água do esquecimento, se lá chegam +Os fortes Portugueses, que navegam. + +33 +Sustentava contra ele Vénus bela, +Afeiçoada à gente Lusitana, +Por quantas qualidades via nela +Da antiga tão amada sua Romana; +Nos fortes corações, na grande estrela, +Que mostraram na terra Tingitana, +E na língua, na qual quando imagina, +Com pouca corrupção crê que é a Latina. + +34 +Estas causas moviam Citereia, +E mais, porque das Parcas claro entende +Que há de ser celebrada a clara Deia, +Onde a gente belígera se estende. +Assim que, um pela infâmia, que arreceia, +E o outro pelas honras, que pretende, +Debatem, e na porfia permanecem; +A qualquer seus amigos favorecem. + +35 +Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura +De silvestre arvoredo abastecida, +Rompendo os ramos vão da mata escura, +Com ímpeto e braveza desmedida; +Brama toda a montanha, o som murmura, +Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida: +Tal andava o tumulto levantado, +Entre os Deuses, no Olimpo consagrado. + +36 +Mas Marte, que da Deusa sustentava +Entre todos as partes em porfia, +Ou porque o amor antigo o obrigava, +Ou porque a gente forte o merecia, +De entre os Deuses em pé se levantava: +Merencório no gesto parecia; +O forte escudo ao colo pendurado +Deitando para trás, medonho e irado, + +37 +A viseira do elmo de diamante +Alevantando um pouco, mui seguro, +Por dar seu parecer, se pôs diante +De Júpiter, armado, forte e duro: +E dando uma pancada penetrante, +Com o conto do bastão no sólio puro, +O Céu tremeu, e Apolo, de torvado, +Um pouco a luz perdeu, como enfiado. + +38 +E disse assim: "Ó Padre, a cujo império +Tudo aquilo obedece, que criaste, +Se esta gente, que busca outro hemisfério, +Cuja valia, e obras tanto amaste, +Não queres que padeçam vitupério, +Como há já tanto tempo que ordenaste, +Não onças mais, pois és juiz direito, +Razões de quem parece que é suspeito. + +39 +"Que, se aqui a razão se não mostrasse +Vencida do temor demasiado, +Bem fora que aqui Baco os sustentasse, +Pois que de Luso vem, seu tão privado; +Mas esta tenção sua agora passe, +Porque enfim vem de estâmago danado; +Que nunca tirará alheia inveja +O bem, que outrem merece, e o Céu deseja. + +40 +"E tu, Padre de grande fortaleza, +Da determinação, que tens tomada, +Não tornes por detrás, pois é fraqueza +Desistir-se da cousa começada. +Mercúrio, pois excede em ligeireza +Ao vento leve, e à seta bem talhada, +Lhe vá mostrar a terra, onde se informe +Da índia, e onde a gente se reforme." + +41 +Como isto disse, o Padre poderoso, +A cabeça inclinando, consentiu +No que disse Mavorte valeroso, +E néctar sobre todos esparziu. +Pelo caminho Lácteo glorioso +Logo cada um dos Deuses se partiu, +Fazendo seus reais acatamentos, +Para os determinados aposentos. + +42 +Enquanto isto se passa na formosa +Casa etérea do Olimpo onipotente, +Cortava o mar a gente belicosa, +Já lá da banda do Austro e do Oriente, +Entre a costa Etiópica e a famosa +Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente +Queimava então os Deuses, que Tifeu +Com o temor grande em peixes converteu. + + +43 +Tão brandamente os ventos os levavam, +Como quem o céu tinha por amigo: +Sereno o ar, e os tempos se mostravam +Sem nuvens, sem receio de perigo. +O promontório Prasso já passavam, +Na costa de Etiópia, nome antigo, +Quando o mar descobrindo lhe mostrava +Novas ilhas, que em torno cerca e lava. + +44 +Vasco da Gama, o forte capitão, +Que a tamanhas empresas se oferece, +De soberbo e de altivo coração, +A quem Fortuna sempre favorece, +Para se aqui deter não vê razão, +Que inabitada a terra lhe parece: +Por diante passar determinava; +Mas não lhe sucedeu como cuidava. + +45 +Eis aparecem logo em companhia +Uns pequenos batéis, que vêm daquela +Que mais chegada à terra parecia, +Cortando o longo mar com larga vela. +A gente se alvoroça, e de alegria +Não sabe mais que olhar a causa dela. +Que gente será esta, em si diziam, +Que costumes, que Lei, que Rei teriam? + +46 +As embarcações eram, na maneira, +Mui veloces, estreitas e compridas: +As velas, com que, vêm, eram de esteira +Dumas folhas de palma, bem tecidas; +A gente da cor era verdadeira, +Que Faeton, nas terras acendidas, +Ao mundo deu, de ousado, o não prudente: +O Pado o sabe, o Lampetusa o sente. + +47 +De panos de algodão vinham vestidos, +De várias cores, brancos e listrados: +Uns trazem derredor de si cingidos, +Outros em modo airoso sobraçados: +Da cinta para cima vêm despidos; +Por armas têm adargas o terçados; +Com toucas na cabeça; e navegando, +Anafis sonoros vão tocando. + +48 +Co'os panos e co'os braços acenavam +As gentes Lusitanas, que esperassem; +Mas já as proas ligeiras se inclinavam +Para que junto às ilhas amainassem. +A gente e marinheiros trabalhavam, +Como se aqui os trabalhos se acabassem; +Tomam velas; amaina-se a verga alta; +Da âncora, o mar ferido, em cima salta. + +49 +Não eram ancorados, quando a gente +Estranha pelas cordas já subia. +No gesto ledos vêm, e humanamente +O Capitão sublime os recebia: +As mesas manda pôr em continente; +Do licor que Lieo prantado havia +Enchem vasos de vidro, e do que deitam, +Os de Faeton queimados nada enjeitam. + +50 +Comendo alegremente perguntavam, +Pela Arábica língua, donde vinham, +Quem eram, de que terra, que buscavam, +Ou que partes do mar corrido tinham? +Os fortes Lusitanos lhe tornavam +As discretas respostas, que convinham: +"Os Portugueses somos do Ocidente, +Imos buscando as terras do Oriente. + +51 +"Do mar temos corrido e navegado +Toda a parte do Antártico e Calisto, +Toda a costa Africana rodeado, +Diversos céus e terras temos visto; +Dum Rei potente somos, tão amado, +Tão querido de todos, e benquisto, +Que não no largo mar, com leda fronte, +Mas no lago entraremos de Aqueronte. + +52 +"E por mandado seu, buscando andamos +A terra Oriental que o Indo rega; +Por ele, o mar remoto navegamos, +Que só dos feios focas se navega. +Mas já razão parece que saibamos, +Se entre vós a verdade não se nega, +Quem sois, que terra é esta que habitais, +Ou se tendes da Índia alguns sinais?" + +53 +"Somos, um dos das ilhas lhe tornou, +Estrangeiros na terra, Lei e nação; +Que os próprios são aqueles, que criou +A natura sem Lei e sem razão. +Nós temos a Lei certa, que ensinou +O claro descendente de Abraão +Que agora tem do mundo o senhorio, +A mãe Hebréia teve, e o pai Gentio. +Informações. A Ilha de Moçambique. + +54 +"Esta ilha pequena, que habitamos, +em toda esta terra certa escala +De todos os que as ondas navegamos +De Quíloa, de Mombaça e de Sofala; +E, por ser necessária, procuramos, +Como próprios da terra, de habitá-la; +E por que tudo enfim vos notifique, +Chama-se a pequena ilha Moçambique. + +55 +"E já que de tão longe navegais, +Buscando o Indo Idaspe e terra ardente, +Piloto aqui tereis, por quem sejais +Guiados pelas ondas sabiamente. +Também será bem feito que tenhais +Da terra algum refresco, e que o Regente +Que esta terra governa, que vos veja, +E do mais necessário vos proveja." + +56 +Isto dizendo, o Mouro se tornou +A seus batéis com toda a companhia; +Do Capitão e gente se apartou +Com mostras de devida cortesia. +Nisto Febo nas águas encerrou, +Co'o carro de cristal, o claro dia, +Dando cargo à irmã, que alumiasse +O largo mundo, enquanto repousasse. + +57 +A noite se passou na lassa frota +Com estranha alegria, e não cuidada, +Por acharem da terra tão remota +Nova de tanto tempo desejada. +Qualquer então consigo cuida e nota +Na gente e na maneira desusada, +E como os que na errada Seita creram, +Tanto por todo o mundo se estenderam, + +58 +Da Lua os claros raios rutilavam +Pelas argênteas ondas Neptuninas, +As estrelas os Céus acompanhavam, +Qual campo revestido de boninas; +Os furiosos ventos repousavam +Pelas covas escuras peregrinas; +Porém da armada a gente vigiava, +Como por longo tempo costumava. + +59 +Mas assim como a Aurora marchetada +Os formosos cabelos espalhou +No Céu sereno, abrindo a roxa entrada +Ao claro Hiperiónio, que acordou, +Começa a embandeirar-se toda a armada, +E de toldos alegres se adornou, +Por receber com festas e alegria +O Regedor das ilhas, que partia. + +60 +Partia alegremente navegando, +A ver as naus ligeiras Lusitanas, +Com refresco da terra, em si cuidando +Que são aquelas gentes inumanas, +Que, os aposentos cáspios habitando, +A conquistar as terras Asianas +Vieram; e por ordem do Destino, +O Império tomaram a Constantino. + +61 +Recebe o Capitão alegremente +O Mouro, e toda a sua companhia; +Dá-lhe de ricas peças um presente, +Que só para este efeito já trazia; +Dá-lhe conserva doce, e dá-lhe o ardente +Não usado licor, que dá alegria. +Tudo o Mouro contente bem recebe; +E muito mais contente come e bebe. + +62 +Está a gente marítima de Luso +Subida pela enxárcia, de admirada, +Notando o estrangeiro modo e uso, +E a linguagem tão bárbara e enleada. +Também o Mouro astuto está confuso, +Olhando a cor, o trajo, e a forte armada; +E perguntando tudo, lhe dizia +"Se por ventura vinham de Turquia?" + +63 +E mais lhe diz também, que ver deseja +Os livros de sua Lei, preceito eu fé, +Para ver se conforme à sua seja, +Ou se são dos de Cristo, como Crê. +E porque tudo note e tudo veja, +Ao Capitão pedia que lhe dê +Mostra das fortes armas de que usavam, +Quando co'os inimigos pelejavam. + +64 +Responde o valeroso Capitão +Por um, que a língua escura bem sabia: +"Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação +De mim, da Lei, das armas que trazia. +Nem sou da terra, nem da geração +Das gentes enojosas de Turquia: +Mas sou da forte Europa belicosa, +Busco as terras da índia tão famosa. + +65 +A lei tenho daquele, a cujo império +Obedece o visíbil e ínvisíbil +Aquele que criou todo o Hemisfério, +Tudo o que sente, o todo o insensíbil; +Que padeceu desonra e vitupério, +Sofrendo morte injusta e insofríbil, +E que do Céu à Terra, enfim desceu, +Por subir os mortais da Terra ao Céu. + +66 +Deste Deus-Homem, alto e infinito, +Os livros, que tu pedes não trazia, +Que bem posso escusar trazer escrito +Em papel o que na alma andar devia. +Se as armas queres ver, como tens dito, +Cumprido esse desejo te seria; +Como amigo as verás; porque eu me obrigo, +Que nunca as queiras ver como inimigo." + +67 +Isto dizendo, manda os diligentes +Ministros amostrar as armaduras: +Vêm arneses, e peitos reluzentes, +Malhas finas, e lâminas seguras, +Escudos de pinturas diferentes, +Pelouros, espingardas de aço puras, +Arcos, e sagitíferas aljavas, +Partazanas agudas, chuças bravas: + +68 +As bombas vêm de fogo, e juntamente +As panelas sulfúreas, tão danosas; +Porém aos de Vulcano não consente +Que dêem fogo às bombardas temerosas; +Porque o generoso ânimo e valente, +Entre gentes tão poucas e medrosas, +Não mostra quanto pode, e com razão, +Que é fraqueza entre ovelhas ser leão. + +69 +Porém disto, que o Mouro aqui notou, +E de tudo o que viu com olho atento +Um ódio certo na alma lhe ficou, +Uma vontade má de pensamento. +Nas mostras e no gesto o não mostrou; +Mas com risonho e ledo fingimento +Tratá-los brandamente determina, +Até que mostrar possa o que imagina. + +70 +Pilotos lhe pedia o Capitão, +Por quem pudesse à Índia ser levado; +Diz-lhe que o largo prémio levarão +Do trabalho que nisso for tomado. +Promete-lhos o Mouro, com tenção +De peito venenoso, e tão danado, +Que a morte, se pudesse, neste dia, +Em lugar de pilotos lhe daria. + + +71 +Tamanho o ódio foi, e a má vontade, +Que aos estrangeiros súbito tomou, +Sabendo ser sequazes da verdade, +Que o Filho de David nos ensinou. +ó segredos daquela Eternidade, +A quem juízo algum nunca alcançou! +Que nunca falte um pérfido inimigo +Aqueles de quem foste tanto amigo! + +72 +Partiu-se Disto enfim coa companhia, +Das naus o falso Mouro despedido, +Com enganosa e grande cortesia, +Com gesto ledo a todos, e fingido. +Cortaram os batéis a curta via +Das águas de Neptuno, e recebido +Na terra do obsequente ajuntamento +Se foi o Mouro ao cógnito aposento. + +73 +Do claro assento etóreo o grão Tebano, +Que da paternal coxa foi nascido, +Olhando o ajuntamento Lusitano +Ao Mouro ser molesto e avorrecido, +No pensamento cuida um falso engano, +Com que seja de todo destruído. +E enquanto isto só na alma imaginava, +Consigo estas palavras praticava: + +74 +"Está do fado já determinado, +Que tamanhas vitórias, tão famosas, +Hajam os Portugueses alcançado +Das Indianas gentes belicosas. +E eu só, filho do Padre sublimado, +Com tantas qualidades generosas, +Hei de sofrer que o fado favoreça +Outrem, por quem meu nome se escureça? + +75 +"Já quiseram os Deuses que tivesse +O filho de Filipo nesta parte +Tanto poder, que tudo submetesse +Debaixo de seu jugo o fero Marte. +Mas há-se de sofrer que o fado desse +A tão poucos tamanho esforço e arte, +Que eu co'o grão Macedónio, e o Romano, +Demos lugar ao nome Lusitano? + +76 +"Não será assim, porque antes que chegado +Seja este Capitão, astutamente +Lhe será tanto engano fabricados +Que nunca veja as partes do Oriente. +Eu descerei à Terra, e o indignado +Peito revolverei da Maura gente; +Porque sempre por via irá direita +Quem do oportuno tempo se aproveita." + +77 +Isto dizendo, irado e quase insano, +Sobre a terra africana descendeu, +Onde vestindo a forma e gesto humano, +Para o Prasso sabido se moveu. +E por melhor tecer o astuto engano, +No gesto natural se converteu +Dum Mouro, em Moçambique conhecido +Velho, sábio, e co'o Xeque mui valido. + +78 +E entrando assim a falar-lhe a tempo e horas +A sua falsidade acomodadas, +Lhe diz como eram gentes roubadoras, +Estas que ora de novo são chegadas; +Que das nações na costa moradoras +Correndo a fama veio que roubadas +Foram por estes homens que passavam, +Que com pactos de paz sempre ancoravam. + +79 +E sabe mais, lhe diz, como entendido +Tenho destes cristãos sanguinolentos, +Que quase todo o mar têm destruído +Com roubos, com incêndios violentos; +E trazem já de longe engano urdido +Contra nós; e que todos seus intentos +São para nos matarem e roubarem, +E mulheres e filhos cativarem. + +80 +"E também sei que tem determinado +De vir por água a terra muito cedo +O Capitão dos seus acompanhado, +Que da tensão danada nasce o medo. +Tu deves de ir também co'os teus armado +Esperá-lo em cilada, oculto e quedo; +Porque, saindo a gente descuidada, +Cairão facilmente na cilada. + +81 +"E se inda não ficarem deste jeito +Destruídos, ou mortos totalmente +Eu tenho imaginado no conceito +Outra manha e ardil, que te contente: +Manda-lhe dar piloto, que de jeito +Seja astuto no engano, e tão prudente, +Que os leve aonde sejam destruídos, +Desbaratados, mortos, ou perdidos." + +82 +Tanto que estas palavras acabou, +O Mouro, nos tais casos sábio e velho, +Os braços pelo colo lhe lançou, +Agradecendo muito o tal conselho; +E logo nesse instante concertou +Para a guerra o belígero aparelho, +Para que ao Português se lhe tornasse +Em roxo sangue a água, que buscasse. + +83 +E busca mais, para o cuidado engano, +Mouro, que por piloto à nau lhe mande, +Sagaz, astuto, e sábio em todo o dano, +De quem fiar-se possa um feito grande. +Diz-lhe que acompanhando o Lusitano, +Por tais costas e mares com ele ande, +Que, se daqui escapar, que lá diante +Vá cair onde nunca se alevante. + +84 +Já o raio Apolíneo visitava +Os montes Nabatêos acendido, +Quando o Gama, colos seus determinava +De vir por água a terra apercebido. +A gente nos batéis se concertava, +Como se fosse o engano já sabido: +Mas pode suspeitar-se facilmente, +Que o coração pressago nunca mente. + +85 +E mais também mandado tinha a terra, +De antes, pelo piloto necessário, +E foi-lhe respondido em som de guerra, +Caso do que cuidava mui contrário; +Por isto, e porque sabe quanto erra +Quem se crê de seu pérfido adversário, +Apercebido vai como podia, +Em três batéis somente que trazia. + +86 +Mas os Mouros que andavam pela praia, +Por lhe defender a água desejada, +Um de escudo embraçado e de azagaia, +Outro de arco encurvado e seta ervada, +Esperam que a guerreira gente saia, +Outros muitos já postos em cilada. +E, porque o caso leve se lhe faça, +Põem uns poucos diante por negaça, + +87 +Andam pela ribeira alva, arenosa, +Os belicosos Mouros acenando +Com a adarga e co'a hástia perigosa, +Os fortes Portugueses incitando. +Não sofre muito a gente generosa +Andar-lhe os cães os dentes amostrando. +Qualquer em terra salta tão ligeiro, +Que nenhum dizer pode que é primeiro. + +88 +Qual no corro sanguino o ledo amante, +Vendo a formosa dama desejada, +O touro busca, e pondo-se diante, +Salta, corre, sibila, acena, e brada, +Mas o animal atroce, nesse instante, +Com a fronte cornígera inclinada, +Bramando duro corre, e os olhos cerra, +Derriba, fere e mata, e põe por terra: + +89 +Eis nos batéis o fogo se levanta +Na furiosa e dura artilharia, +A plúmbea péla mata, o brado espanta, +Ferido o ar retumba e assovia: +O coração dos Mouros se quebranta, +O temor grande o sangue lhe resfria. +Já foge o escondido de medroso, +E morre o descoberto aventuroso. + +90 +Não se contenta a gente Portuguesa, +Mas seguindo a vitória estrui e mata; +A povoação, sem muro e sem defesa, +Esbombardeia, acende e desbarata. +Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa, +Que bem cuidou comprá-la mais barata; +Já blasfema da guerra, e maldizia, +O velho inerte, e a mãe que o filho cria. + +91 +Fugindo, a seta o Mouro vai tirando +Sem força, de covarde e de apressado, +A pedra, o pau, e o canto arremessando; +Dá-lhe armas o furor desatinado. +Já a ilha e todo o mais desemparando, +A terra firme foge amedrontado; +Passa e corta do mar o estreito braço, +Que a ilha em torno cerca, em pouco espaço + +92 +Uns vão nas almadias carregadas, +Um corta o mar a nado diligente, +Quem se afoga nas ondas encurvadas, +Quem bebe o mar, e o deita juntamente. +Arrombam as miúdas bombardadas +Os pangaios subtis da bruta gente: +Desta arte o Português enfim castiga +A vil malícia, pérfida, inimiga. + +93 +Tornam vitoriosos para a armada, +Co'o despojo da guerra e rica presa, +E vão a seu prazer fazer aguada, +Sem achar resistência, nem defesa. +Ficava a Maura gente magoada, +No ódio antigo mais que nunca acesa; +E vendo sem vingança tanto dano, +Somente estriba no segundo engano. + +94 +Pazes cometer manda arrependido +O Regedor daquela iníqua terra, +Sem ser dos Lusitanos entendido, +Que em figura de paz lhe manda guerra; +Porque o piloto falso prometido, +Que toda a má tenção no peito encerra, +Para os guiar à morte lhe mandava, +Como em sinal das pazes que tratava. + +95 +O Capitão, que já lhe então convinha +Tornar a seu caminho acostumado, +Que tempo concertado e ventos tinha +Para ir buscar o Indo desejado, +Recebendo o piloto, que lhe vinha, +Foi dele alegremente agasalhado; +E respondendo ao mensageiro a tento, +As velas manda dar ao largo vento. + +96 +Desta arte despedida a forte armada, +As ondas de Anfitrite dividia, +Das filhas de Nereu acompanhada, +Fiel, alegre e doce companhia. +O Capitão, que não caía em nada +Do enganoso ardil, que o Mouro urdia, +Dele mui largamente se informava +Da Índia toda, e costas que passava. + +97 +Mas o Mouro, instruído nos enganos +Que o malévolo Baco lhe ensinara, +De morte ou cativeiro novos danos, +Antes que à Índia chegue, lhe prepara: +Dando razões dos portos Indianos, +Também tudo o que pede lhe declara, +Que, havendo por verdade o que dizia, +De nada a forte gente se temia. + +98 +E diz-lhe mais, com o falso pensamento +Com que Sinon os Frígios enganou: +Que perto está uma ilha, cujo assento +Povo antigo cristão sempre habitou. +O Capitão, que a tudo estava a tento, +Tanto com estas novas se alegrou, +Que com dádivas grandes lhe rogava, +Que o leve à terra onde esta gente estava. + +99 +O mesmo o falso Mouro determina, +Que o seguro Cristão lhe manda e pede; +Que a ilha é possuída da malina +Gente que segue o torpe Mahamede. +Aqui o engano e morte lhe imagina, +Porque em poder e forças muito excede +A Moçambique esta ilha, que se chama +Quíloa, mui conhecida pela fama. + +100 +Para lá se inclinava a leda frota; +Mas a Deusa em Citere celebrada, +Vendo como deixava a certa rota +Por ir buscar a morte não cuidada, +Não consente que em terra tão remota +Se perca a gente dela tanto amada. +E com ventos contrários a desvia +Donde o piloto falso a leva e guia. + +101 +Mas o malvado Mouro, não podendo +Tal determinação levar avante, +Outra maldade iníqua cometendo, +Ainda em seu propósito constante, +Lhe diz que, pois as águas discorrendo +Os levaram por força por diante, +Que outra ilha tem perto, cuja gente +Eram Cristãos com Mouros juntamente. + +102 +Também nestas palavras lhe mentia, +Como por regimento enfim levava, +Que aqui gente de Cristo não havia, +Mas a que a Mahamede celebrava. +O Capitão, que em tudo o Mouro cria, +Virando as velas, a ilha demandava; +Mas, não querendo a Deusa guardadora, +Não entra pela barra, e surge fora. + +103 +Estava a ilha à terra tão chegada, +Que um estreito pequeno a dividia; +Uma cidade nela situada, +Que na fronte do mar aparecia, +De nobres edifícios fabricada, +Como por fora ao longe descobria, +Regida por um Rei de antiga idade: +Mombaça é o nome da ilha e da cidade. + +104 +E sendo a ela o Capitão chegado, +Estranhamente ledo, porque espera +De poder ver o povo batizado, +Como o falso piloto lhe dissera, +Eis vêm batéis da terra com recado +Do Rei, que já sabia a gente que era: +Que Baco muito de antes o avisara, +Na forma doutro Mouro, que tomara. + +105 +O recado que trazem é de amigos, +Mas debaixo o veneno vem coberto; +Que os pensamentos eram de inimigos, +Segundo foi o engano descoberto. +Ó grandes e gravíssimos perigos! +Ó caminho de vida nunca certo: +Que aonde a gente põe sua esperança, +Tenha a vida tão pouca segurança! + +106 +No mar tanta tormenta, e tanto dano, +Tantas vezes a morte apercebida! +Na terra tanta guerra, tanto engano, +Tanta necessidade avorrecida! +Onde pode acolher-se um fraco humano, +Onde terá segura a curta vida, +Que não se arme, e se indigne o Céu sereno +Contra um bicho da terra tão pequeno? + + +Canto Segundo + +1 +Já neste tempo o lúcido Planeta, +Que as horas vai do dia distinguindo, +Chegava à desejada e lenta meta, +A luz celeste às gentes encobrindo, +E da casa marítima secreta +Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo, +Quando as infidas gentes se chegaram +As naus, que pouco havia que ancoraram. + +2 +Dentre eles um, que traz encomendado +O mortífero engano, assim dizia: +"Capitão valeroso, que cortado +Tens de Neptuno o reino e salsa via, +O Rei que manda esta ilha, alvoroçado +Da vinda tua, tem tanta alegria, +Que não deseja mais que agasalhar-te, +Ver-te, e do necessário reformar-te. + +3 +"E porque está em extremo desejoso +De te ver, como cousa nomeada, +Te roga que, de nada receoso, +Entres a barra, tu com toda armada: +E porque do caminho trabalhoso +Trarás a gente débil e cansada, +Diz que na terra podes reformá-la, +Que a natureza obriga a desejá-la. + +4 +"E se buscando vás mercadoria +Que produze o aurífero Levante, +Canela, cravo, ardente especiaria, +Ou droga salutífera e prestante; +Ou se queres luzente pedraria, +O rubi fino, o rígido diamante, +Daqui levarás tudo tão sobejo +Com que faças o fim a teu desejo." + +5 +Ao mensageiro o Capitão responde +As palavras do Rei agradecendo: +E diz que, porque o Sol no mar se esconde, +Não entra para dentro, obedecendo; +Porém que, como a luz mostrar por onde +Vá sem perigo a frota, não temendo, +Cumprirá sem receio seu mandado, +Que a mais por tal senhor está obrigado. + +6 +Pergunta-lhe depois, se estão na terra +Cristãos, como o piloto lhe dizia; +O mensageiro astuto, que não erra, +Lhe diz, que a mais da gente em Cristo cria. +Desta sorte do peito lhe desterra +Toda a suspeita e cauta fantasia; +Por onde o Capitão seguramente +Se fia da infiel e falsa gente. + +7 +E de alguns que trazia condenados +Por culpas e por feitos vergonhosos, +Por que pudessem ser aventurados +Em casos desta sorte duvidosos, +Manda dous mais sagazes, ensaiados, +Por que notem dos Mouros enganosos +A cidade e poder, e por que vejam +Os Cristãos, que só tanto ver desejam. + +8 +E por estes ao Rei presentes manda, +Por que a boa vontade, que mostrava, +Tenha firme, segura, limpa e branda; +A qual bem ao contrário em tudo estava. +Já a companhia pérfida e nefanda +Das naus se despedia e o mar cortava: +Foram com gestos ledos e fingidos, +Os dous da frota em terra recebidos. + +9 +E depois que ao Rei apresentaram, +Co'o recado, os presentes que traziam, +A cidade correram, e notaram +Muito menos daquilo que queriam; +Que os Mouros cautelosos se guardaras +De lhes mostrarem tudo o que pediam: +Que onde reina a malícia, está o receio, +Que a faz imaginar no peito alheio. + +10 +Mas aquele que sempre a mocidade +Tem no rosto perpétua, e foi nascido +De duas mães, que urdia a falsidade +Por ver o navegante destruído, +Estava numa casa da cidade, +Com rosto humano e hábito fingido, +Mostrando-se Cristão, e fabricava +Um altar sumptuoso, que adorava. + +11 +Ali tinha em retrato afigurada +Do alto e Santo Espírito a pintura: +A cândida pombinha debuxada +Sobre a única Fénix, Virgem pura; +A companhia santa está pintada +Dos doze, tão torvados na figura, +Como os que, só das línguas que caíram, +De fogo, várias línguas referiram. + +12 +Aqui os dous companheiros conduzidos +Onde com este engano Baco estava, +Põem em terra os giolhos, e os sentidos +Naquele Deus que o mundo governava. +Os cheiros excelentes, produzidos +Na Pancaia odorífera, queimava +O Tioneu, e assim por derradeiro +O falso Deus adora o verdadeiro. + +13 +Aqui foram de noite agasalhados, +Com todo o bom e honesto tratamento, +Os dous Cristãos, não vendo que enganados +Os tinha o falso e santo fingimento. +Mas assim como os raios espalhados +Do Sol foram no mundo, e num momento +Apareceu no rúbido horizonte +Da moça de Titão a roxa fronte, + +14 +Tornam da terra os Mouros co'o recado +Do Rei, para que entrassem, e consigo +Os dous que o Capitão tinha mandado, +A quem se o Rei mostrou sincero amigo; +E sendo o Português certificado +De não haver receio de perigo, +E que gente de Cristo em terra havia, +Dentro no salso rio entrar queria. + +15 +Dizem-lhe os que mandou, que em terra +Sacras aras e sacerdote sinto; viram +Que ali se agasalharam o dormiram, +Enquanto a luz cobriu o escuro manto; +E que no Rei e gentes não sentiram +Senão contentamento e gosto tanto, +Que não podia certo haver suspeita +Numa mostra tão clara e tão perfeita. + +16 +Com isto o nobre Gama recebia +Alegremente os Mouros que subiam; +Que levemente um ânimo se fia +De mostras, que tão certas pareciam. +A nau da gente pérfida se enchia, +Deixando a bordo os barcos que traziam. +Alegres vinham todos, porque crêm +Que a presa desejada certa têm. + +17 +Na terra, cautamente aparelhavam +Armas e munições que, como vissem +Que no rio os navios ancoravam, +Neles ousadamente se subissem; +E, nesta treição determinavam +Que os de Luso de todo destruíssem, +E que incautos pagassem deste jeito +O mal que em Moçambique tinham feito. + +18 +As âncoras tenaces vão levando +Com a náutica grita costumada; +Da proa as velas sós ao vento dando +Inclinam para a barra abalizada. +Mas a linda Ericina, que guardando +Andava sempre a gente assinalada, +Vendo a cilada grande, e tão secreta, +Voa do Céu ao mar como uma seta. + +19 +Convoca as alvas filhas de Nereu, +Com toda a mais cerúlea companhia, +Que, porque no salgado mar nasceu, +Das águas o poder lhe obedecia. +E propondo-lhe a causa a que desceu, +Com todas juntamente se partia, +Para estorvar que a armada não chegasse +Aonde para sempre se acabasse. + +20 +Já na água erguendo vão, com grande pressa, +Com as argênteas caudas branca escuma; +Cloto eo'o peito corta e atravessa +Com mais furor o mar do que costuma. +Salta Nise, Nerine se arremessa +Por cima da água crespa, em força suma. +Abrem caminho as ondas encurvadas +De temor das Nereidas apressadas. + +21 +Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso, +Vai a linda Dione furiosa; +Não sente quem a leva o doce peso, +De soberbo com carga tão formosa. +Já chegam perto donde o vento teso +Enche as velas da frota belicosa; +Repartem-se e rodeiam nesse instante +As naus ligeiras, que iam por diante. + +22 +Põe-se a Deusa com outras em direito +Da proa capitaina, e ali fechando +O caminho da barra, estão de jeito, +Que em vão assopra o vento, a vela inchando. +Põem no madeiro duro o brando peito, +Para detrás a forte nau forçando; +Outras em derredor levando-a estavam, +E da barra inimiga a desviavam. + +23 +Quais para a cova as próvidas formigas, +Levando o peso grande acomodado, +As forças exercitam, de inimigas +Do inimigo inverno congelado; +Ali são seus trabalhos e fadigas, +Ali mostram vigor nunca esperado: +Tais andavam as Ninfas estorvando +A gente Portuguesa o fim nefando. + +24 +Torna para detrás a nau forçada, +Apesar dos que leva, que gritando +Mareiam velas; ferve a gente irada, +O leme a um bordo e a outro atravessando; +O mestre astuto em vão da popa brada, +Vendo como diante ameaçando +Os estava um marítimo penedo, +Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo. + +25 +A celeuma medonha se alevanta +No rudo marinheiro que trabalha; +O grande estrondo a Maura gente espanta, +Como se vissem hórrida batalha; +Não sabem a razão de fúria tanta, +Não sabem nesta pressa quem lhe valha; +Cuidam que seus enganos são sabidos, +E que hão de ser por isso aqui punidos. + +26 +Ei-los subitamente se lançavam +A seus batéis velozes que traziam; +Outros em cima o mar alevantavam, +Saltando n'água, a nado se acolhiam; +De um bordo e doutro súbito saltavam, +Que o medo os compelia do que viam; +Que antes querem ao mar aventurar-se +Que nas mãos inimigas entregar-se. + +27 +Assim como em selvática alagoa +As rãs, no tempo antigo Lícia gente, +Se sentem por ventura vir pessoa, +Estando fora da água incautamente, +Daqui e dali saltando, o charco soa, +Por fugir do perigo que se sente, +E acolhendo-se ao couto que conhecem, +Sós as cabeças na água lhe aparecem: + +28 +Assim fogem os Mouros; e o piloto, +Que ao perigo grande as naus guiara, +Crendo que seu engano estava noto, +Também foge, saltando na água amara. +Mas, por não darem no penedo imoto, +Onde percam a vida doce e cara, +A âncora solta logo a capitaina, +Qualquer das outras junto dela amaina. + +29 +Vendo o Gama, atentado, a estranheza +Dos Mouros, não cuidada, e juntamente +O piloto fugir-lhe com presteza, +Entende o que ordenava a bruta gente; +E vendo, sem contraste e sem braveza +Dos ventos, ou das águas sem corrente, +Que a nau passar avante não podia, +Havendo-o por milagre, assim dizia: + +30 +"Ó caso grande, estranho e não cuidado, +Ó milagre claríssimo e evidente, +Ó descoberto engano inopinado, +Ó pérfida, inimiga e falsa gente! +Quem poderá do mal aparelhado +Livrar-se sem perigo sabiamente, +Se lá de cima a Guarda soberana +Não acudir à fraca força humana? + +31 +"Bem nos mostra a divina Providência +Destes portos a pouca segurança; +Bem claro temos visto na aparência, +Que era enganada a nossa confiança. +Mas pois saber humano nem prudência +Enganos tão fingidos não alcança, +Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado +De quem sem ti não pode ser guardado! + +32 +"E se te move tanto a piedade +Desta mísera gente peregrina, +Que só por tua altíssima bondade, +Da gente a salvas pérfida e malina, +Nalgum porto seguro de verdade +Conduzir-nos já agora determina, +Ou nos amostra a terra que buscamos, +Pois só por teu serviço navegamos." + +33 +Ouviu-lhe essas palavras piedosas +A formosa Dione, e comovida, +Dentre as Ninfas se vai, que saudosas +Ficaram desta súbita partida. +Já penetra as Estrelas luminosas, +Já na terceira Esfera recebida +Avante passa, e lá no sexto Céu, +Para onde estava o Padre, se moveu. + +34 +E como ia afrontada do caminho, +Tão formosa no gesto se mostrava, +Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho, +E tudo quanto a via namorava. +Dos olhos, onde faz seu filho o ninho, +Uns espíritos vivos inspirava, +Com que os Pólos gelados acendia, +E tornava do Fogo a esfera fria. + +35 +E por mais namorar o soberano +Padre, de quem foi sempre amada e eriça, +Se lhe apresenta assim como ao Troiano, +Na selva Idea, já se apresentara. +Se a vira o caçador, que o vulto humano +Perdeu, vendo Diana na água clara, +Nunca os famintos galgos o mataram, +Que primeiro desejos o acabaram. + +36 +Os crespos fios d'ouro se esparziam +Pelo colo, que a neve escurecia; +Andando, as lácteas tetas lhe tremiam, +Com quem Amor brincava, e não se via; +Da alva petrina flamas lhe saíam, +Onde o Menino as almas acendia; +Pelas lisas colunas lhe trepavam +Desejos, que como hera se enrolavam. + +37 +C'um delgado sendal as partes cobre, +De quem vergonha é natural reparo, +Porém nem tudo esconde, nem descobre, +O véu, dos roxos lírios pouco avaro; +Mas, para que o desejo acenda o dobre, +Lhe põe diante aquele objeto raro. +Já se sentem no Céu, por toda a parte, +Ciúmes em Vulcano, amor em Marte. + +38 +E mostrando no angélico semblante +Co'o riso uma tristeza misturada, +Como dama que foi do incauto amante +Em brincos amorosos mal tratada, +Que se aqueixa e se ri num mesmo instante, +E se torna entre alegre magoada, +Desta arte a Deusa, a quem nenhuma iguala, +Mais mimosa que triste ao Padre fala: + +39 +"Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso, +Que, para as cousas que eu do peito amasse, +Te achasse brando, afábil e amoroso, +Posto que a algum contrário lhe pesasse; +Mas, pois que contra mim te vejo iroso, +Sem que to merecesse, nem te errasse, +Faça-se como Baco determina; +Assentarei enfim que fui mofina. + +40 +"Este povo que é meu, por quem derramo +As lágrimas que em vão caídas vejo, +Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo, +Sendo tu tanto contra meu desejo! +Por ele a ti rogando choro e bramo, +E contra minha dita enfim pelejo. +Ora pois, porque o amo é mal tratado, +Quero-lhe querer mal, será guardado. + +41 +"Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes, +Que pois eu fui..." E nisto, de mimosa, +O rosto banha em lágrimas ardentes, +Como co'o orvalho fica a fresca rosa. +Calada um pouco, como se entre os dentes +Se lhe impedira a fala piedosa, +Torna a segui-la; e indo por diante, +Lhe atalha o poderoso e grão Tonante. + +42 +E destas brandas mostras comovido, +Que moveram de um tigre o peito duro, +Co'o vulto alegre, qual do Céu subido, +Torna sereno e claro o ar escuro, +As lágrimas lhe alimpa, e acendido +Na face a beija, e abraça o colo puro; +De modo que dali, se só se achara, +Outro novo Cupido se gerara. + +43 +E co'o seu apertando o rosto amado, +Que os soluços e lágrimas aumenta, +Como menino da ama castigado, +Que quem no afaga o choro lhe acrescente, +Por lhe pôr em sossego o peito irado, +Muitos casos futuros lhe apresenta. +Dos fados as entranhas revolvendo, +Desta maneira enfim lhe está dizendo: + +44 +"Formosa filha minha, não temais +Perigo algum nos vossos Lusitanos, +Nem que ninguém comigo possa mais, +Que esses chorosos olhos soberanos; +Que eu vos prometo, filha, que vejais +Esquecerem-se Gregos e Romanos, +Pelos ilustres feitos que esta gente +Há-de fazer nas partes do Oriente. + +45 +"Que se o facundo Ulisses escapou +De ser na Ogígia ilha eterno escravo, +E se Antenor os seios penetrou +Ilíricos e a fonte de Timavo; +E se o piedoso Eneias navegou +De Cila e de Caríbdis o mar bravo, +Os vossos, mores cousas atentando, +Novos mundos ao mundo irão mostrando. + +46 +"Fortalezas, cidades e altos muros, +Por eles vereis, filha, edificados; +Os Turcos belacíssimos e duros, +Deles sempre vereis desbaratados. +Os Reis da índia, livres e seguros, +Vereis ao Rei potente sojugados; +E por eles, de tudo enfim senhores, +Serão dadas na terra leis melhores. + +47 +"Vereis este, que agora pressuroso +Por tantos medos o Indo vai buscando, +Tremer dele Neptuno, de medroso +Sem vento suas águas encrespando. +Ó caso nunca visto e milagroso, +Que trema e ferva o mar, em calma estando! +Ó gente forte e de altos pensamentos, +Que também dela hão medo os Elementos! + +48 +"Vereis a terra, que a água lhe tolhia, +Que inda há-de ser um porto mui decente, +Em que vão descansar da longa via +As naus que navegarem do Ocidente. +Toda esta costa enfim, que agora urdia +O mortífero engano, obediente +Lhe pagará tributos, conhecendo +Não poder resistir ao Luso horrendo. + +49 +"E vereis o mar Roxo, tão famoso, +Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado; +Vereis de Ormuz o Reino poderoso +Duas vezes tomado e sojugado. +Ali vereis o Mouro furioso +De suas mesmas setas traspassado: +Que quem vai contra os vossos, claro veja +Que, se resiste, contra si peleja. + +50 +"Vereis a inexpugnábil Dio forte, +Que dous cercos terá, dos vossos sendo. +Ali se mostrará seu preço e sorte, +Feitos de armas grandíssimos fazendo. +Invejoso vereis o grão Mavorte +Do peito Lusitano fero e horrendo: +Do Mouro ali verão que a voz extrema +Do falso Mahamede ao Céu blasfema. + +51 +"Goa vereis aos Mouros ser tomada, +A qual virá depois a ser senhora +De todo o Oriente, e sublimada +Co'os triunfos da gente vencedora. +Ali soberba, altiva, e exalçada, +Ao Gentio, que os ídolos adora, +Duro freio porá, e a toda a terra +Que cuidar de fazer aos vossos guerra. + +52 +"Vereis a fortaleza sustentar-se +De Cananor, com pouca força e gente; +E vereis Calecu desbaratar-se, +Cidade populosa e tão potente: +E vereis em Cochim assinalar-se +Tanto um peito soberbo e insolente, +Que cítara jamais cantou vitória, +Que assim mereça eterno nome e glória. + +53 +"Nunca com Marte instructo e furioso, +Se viu ferver Leucate, quando Augusto +Nas civis Actias guerras animoso, +O Capitão venceu Romano injusto, +Que dos povos da Aurora, e do famoso +Nilo, e do Bactra Cítico e robusto +A vitória trazia, e presa rica, +Preso na Egípcia linda e nego pudica. + +54 +Como vereis o mar fervendo aceso +Colos incêndios dos vossos pelejando, +Levando o Idololatra, e o Mouro preso, +De nações diferentes triunfando. +E sujeita a rica Áurea Quersoneso, +Até ao longínquo China navegando, +E as ilhas mais remotas do Oriente, +Ser-lhe-á todo o Oceano obediente. + +55 +"De modo, filha minha, que de jeito +Amostrarão esforço mais que humano, +Que nunca se verá tão forte peito, +Do Gangético mar ao Gaditano, +Nem das Boreais ondas ao Estreito, +Que mostrou o agravado Lusitano, +Posto que em todo o mundo, de afrontados, +Ressuscitassem todos os passados." + +56 +Como isto disse, manda o consagrado +Filho de Maia à Terra, por que tenha +Um pacífico porto o sossegado, +Para onde sem receio a frota venha; +F, para que em Mombaça, aventurado, +O forte Capitão se não detenha, +Lhe manda mais, que em sonhos lhe mostra +A terra, onde quieto repousasse. + +57 +Já pelo ar o Cileneu voava; +Com as asas nos pés à Terra desce; +Sua vara fatal na mão levava, +Com que os olhos cansados adormece: +Com esta, as tristes almas revocava +Do Inferno, e o vento lhe obedece. +Na cabeça o galero costumado. +E desta arte a Melinde foi chegado. + +58 +Consigo a Fama leva, por que diga +Do Lusitano o preço grande e raro, +Que o nome ilustre a um certo amor obriga +E faz, a quem o tem, amado e caro. +Desta arte vai fazendo a gente amiga, +Co rumor famosíssimo, e perclaro. +Já Melinde em desejos arde todo +De ver da gente forte o gesto e modo. + +59 +Dali para Mombaça logo parte, +Aonde as naus estavam temerosas, +Para que à gente mande que se aparte +Da barra amiga e terras suspeitosas: +Porque mui pouco val esforço e arte, +Contra infernais vontades enganosas; +Pouco val coração, astúcia e siso, +Se lá dos Céus não vem celeste aviso. + +60 +No feio caminho a noite tinha anelado, +E, as estrelas no Céu, coa luz alhea, +Tinham o largo Mundo alumiado; +E só co'o sono a gente se recreia. +O Capitão ilustre, já cansado +De vigiar a noite que arreceia, +Breve repouso então aos olhos dava, +A outra gente a quartos vigiava; + +61 +Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece, +Dizendo: "Fuge, fuge, Lusitano, +Da cilada que o Rei malvado tece, +Por te trazer ao fim, e extremo dano; +Fuge, que o vento, e o Céu te favorece; +Sereno o tempo tens e o Oceano, +E outro Rei mais amigo, noutra parte, +Onde podes seguro agasalhar-te. + +62 +"Não tens aqui senão aparelhado +O hospício que o cru Diomedes dava, +Fazendo ser manjar acostumado +De cavalos a gente que hospedava; +As aras de Busíris infamado, +Onde os hóspedes tristes imolava, +Terás certas aqui, se muito esperas. +Fuge das gentes pérfidas e feras. + +63 +"Vai-te ao longo da costa discorrendo, +E outra terra acharás de mais verdade, +Lá quase junto donde o Sol ardendo +Iguala o dia e noite em quantidade; +Ali tua frota alegre recebendo +Um Rei, com muitas obras de amizade, +Gasalhado seguro te daria, +E, para a índia, certa e sábia guia." + +64 +Isto Mercúrio disse, e o sono leva +Ao Capitão, que com mui grande espanto +Acorda, e vê ferida a escura treva +De uma súbita luz e raio santo. +E vendo claro quanto lhe releva +Não se deter na terra iníqua tanto, +Com novo espírito ao mestre seu mandava +Que as velas desse ao vento que assopravam. + +65 +"Dai velas, disse, dai ao largo vento, +Que o Céu nos favorece e Deus o manda; +Que um mensageiro vi do claro assento +Que só em favor de nossos passos anda." +Alevanta-se nisto o movimento +Dos marinheiros, de uma e de outra banda; +Levam gritando as âncoras acima, +Mostrando a ruda força, que se estima. + +66 +Neste tempo, que as âncoras levavam, +Na sombra escura os Mouros escondidos +Mansamente as amarras lhe cortavam, +Por serem, dando à costa, destruídos; +Mas com vista de linces vigiavam +Os Portugueses, sempre apercebidos. +Eles, como acordados os sentiram, +Voando, e não remando, lhe fugiram. + +67 +Mas já as agudas proas apartando +Iam as vias húmidas de argento; +Assopra-lhe galerno o vento, e brando, +Com suave e seguro movimento. +Nos perigos passados vão falando, +Que mal se perderão do pensamento +Os casos grandes, donde em tanto aperto +A vida em salvo escapa por acerto. + +68 +Tinha uma volta dado o Sol ardente +E noutro começava, quando viram +Ao longe deus navios, brandamente +Co'os ventos navegando, que respiram: +Porque haviam de ser da Maura gente, +Para eles arribando, as velas viram: +Um, de temor do mal que arreceava, +Por se salvar a gente à costa dava. + +69 +Não é o outro que fica tão manhoso; +Mas nas mãos vai cair do Lusitano, +Sem o rigor de Marte furioso, +E sem a fúria horrenda de Vulcano; +Que como fosse débil e medroso +Da pouca gente o fraco peito humano, +Não teve resistência; e se a tivera, +Mais dano resistindo recebera. + +70 +E como o Gama muito desejasse +Piloto para a Índia que buscava, +Cuidou que entre estes Mouros o tomasse; +Mas não lhe sucedeu como cuidava, +Que nenhum deles há que lhe ensinasse +A que parte dos céus a Índia estava; +Porém dizem-lhe todos, que tem perto +Melinde, onde achará piloto certo. + +71 +Louvam do Rei os Mouros a bondade, +Condição liberal, sincero peito, +Magnificência grande e humanidade, +Com partes de grandíssimo respeito. +O Capitão o assela por verdade, +Porque já lhe dissera, deste jeito, +Cileneu em sonhos; e partia +Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia. + +72 +Era no tempo alegre, quando entrava +No roubador de Europa a luz Febeia, +Quando um e outro corno lhe aquentava, +E Flora derramava o de Amalteia: +A memória do dia renovava +O pressuroso Sol, que o Céu rodeia, +Em que Aquele, a quem tudo está sujeito, +O selo pôs a quanto tinha feito; + +73 +Quando chegava a frota àquela parte, +Onde o Reino Melinde já se via, +De toldos adornada, e leda de arte +Que bem mostra estimar o santo dia. +Treme a bandeira, voa o estandarte, +A cor purpúrea ao longe aparecia; +Soam os atambores o pandeiros, +E assim entravam ledos e guerreiros. + +74 +Enche-se toda a praia Melindana +Da gente que vem ver a leda armada, +Gente mais verdadeira, e mais humana, +Que toda a doutra terra atrás deixada. +Surge diante a frota Lusitana, +Pega no fundo a âncora pesada; +Mandam fora um dos Mouros que tomaram, +Por quem sua vinda ao Rei manifestaram. + +75 +O Rei, que já sabia da nobreza +Que tanto os Portugueses engrandece, +Tomarem o seu porto tanto preza, +Quanto a gente fortíssima merece: +E com verdadeiro ânimo e pureza, +Que os peitos generosos enobrece, +Lhe manda rogar muito que saíssem, +Para que de seus reinos se servissem. + +76 +São oferecimentos verdadeiros, +E palavras sinceras, não dobradas, +As que o Rei manda aos nobres cavaleiros, +Que tanto mar e terras tem passadas. +Manda-lhe mais lanígeros carneiros, +E galinhas domésticas cevadas, +Com as frutas, que então na terra havia; +E a vontade à dádiva excedia. + +77 +Recebe o Capitão alegremente +O mensageiro ledo e seu recado; +E logo manda ao Rei outro presente, +Que de longe trazia aparelhado: +Escarlata purpúrea, cor ardente, +O ramoso coral, fino e prezado, +Que debaixo das águas mole cresce, +E como é fora delas se endurece. + +78 +Manda mais um, na prática elegante, +Que co'o Rei nobre as pazes concertasse, +E que de não sair naquele instante +De suas naus em terra o desculpasse. +Partido assim o embaixador prestante, +Como na terra ao Rei se apresentasse, +Com estilo que Palas lhe ensinava, +Estas palavras tais falando orava: + +79 +"Sublime Rei, a quem do Olimpo puro +Foi da suma Justiça concedido +Refrear o soberbo povo duro, +Não menos dele amado, que temido: +Como porto mui forte e mui seguro, +De todo o Oriente conhecido, +Te vimos a buscar, para que achemos +Em ti o remédio certo que queremos. + +80 +"Não somos roubadores, que passando +Pelas fracas cidades descuidadas, +A ferro e a fogo as gentes vão matando, +Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas; +Mas da soberba Europa navegando, +Imos buscando as terras apartadas +Da Índia grande e rica, por mandado +De um Rei que temos, alto e sublimado. + +81 +"Que geração tão dura há hi de gente, +Que bárbaro costume e usança feia, +Que não vedem os portos tão somente, +Mas inda o hospício da deserta areia? +Que má tenção, que peito em nós se sente, +Que de tão pouca gente se arreceia? +Que com laços armados, tão fingidos, +Nos ordenassem ver-nos destruídos? + +82 +"Mas tu, e quem mui certo confiamos +Achar-se mais verdade, ó Rei benigno, +E aquela certa ajuda em ti esperamos, +Que teve o perdido Ítaco em Alcino, +A teu porto seguro navegamos, +Conduzidos do intérprete divino; +Que, pois a ti nos manda, está mui claro, +Que és de peito sincero, humano e raro. + +83 +"E não cuides, ó Rei, que não saísse +O nosso Capitão esclarecido +A ver-te, ou a servir-te, porque visse +Ou suspeitasse em ti peito fingido: +Mas saberás que o fez, porque cumprisse +O regimento, em tudo obedecido, +De seu Rei, que lhe manda que não saia, +Deixando a frota, em nenhum porto ou praia. + +84 +"E porque é, de vassalos o exercício, +Que os membros tem regidos da cabeça, +Não quererás, pois tens de Rei o ofício, +Que ninguém a seu Rei desobedeça; +Mas as mercês e o grande benefício, +Que ora acha em ti, promete que conheça +Em tudo aquilo que ele e os seus puderem, +Enquanto os rios para o mar correrem." + +85 +Assim dizia; e todos juntamente, +Uns com outros em prática falando, +Louvavam muito o estâmago da gente, +Que tantos céus e mares vai passando. +E o Rei ilustre, o peito obediente +Dos Portugueses na alma imaginando, +Tinha por valor grande e mui subido +O do Rei que é tão longe obedecido. + +86 +E com risonha vista e ledo aspeito, +Responde ao embaixador, que tanto estima: +"Toda a suspeita má tirai do peito, +Nenhum frio temor em vós se imprima; +Que vosso preço e obras são de jeito +Para vos ter o mundo em muita estima; +E quem vos fez molesto tratamento, +Não pode ter subido pensamento. + +87 +"De não sair em terra toda a gente, +Por observar a usada preminência, +Ainda que me pese estranhamente, +Em muito tenho a muita obediência; +Mas, se lho o regimento não consente, +Nem eu consentirei que a excelência +De peitos tão leais em si desfaça, +Só porque a meu desejo satisfaça. + +88 +"Porém, como a luz crástina chegada +Ao mundo for, em minhas almadias +Eu irei visitar a forte armada, +Que ver tanto desejo, há tantos dias; +E se vier do mar desbaratada, +Do furioso vento e longas vias, +Aqui terá, de limpos pensamentos, +Piloto, munições e mantimentos." + +89 +Isto disse; e nas águas se escondia +O filho de Latona; e o mensageiro +Coa embaixada alegre se partia +Para a frota, no seu batel ligeiro. +Enchem-se os peitos todos de alegria. +Por terem o remédio verdadeiro +Para acharem a terra que buscavam; +E assim ledos a noite festejavam. + +90 +Não faltam ali os raios de artifício, +Os trêmulos cometas imitando; +Fazem os bombardeiros seu ofício, +O céu, a terra e as ondas atroando. +Mostra-se dos Ciclopas o exercício +Nas bombas que de fogo estão queimando; +Outros com vozes, com que o céu feriam, +Instrumentos altíssonos tangiam. + +91 +Respondem-lhe da terra juntamente, +Co'o raio volteando, com zunido; +Anda em giros no ar a roda ardente, +Estoura o pó sulfúreo escondido. +A grita se alevanta ao céu, da gente; +O mar se via em fogos acendido, +E não menos a terra; e assim festeja +Um ao outro, a maneira de peleja. + +92 +Mas já o Céu inquieto revolvendo, +As gentes incitava a seu trabalho, +E já a mãe de Menon a luz trazendo, +Ao sono longo punha certo atalho; +Iam-se as sombras lentas desfazendo, +Sobre as flores da terra em frio orvalho, +Quando o Rei Melindano se embarcava +A ver a frota, que no mar estava. + +93 +Viam-se em derredor ferver as praias +Da gente, que a ver só concorre leda; +Luzem da fina púrpura as cabaias, +Lustram os panos da tecida seda; +Em lugar das guerreiras azagaias +E do arco, que os cornos arremeda +Da Lua, trazem ramos de palmeira, +Dos que vencem, coroa verdadeira. + +94 +Um batel grande e largo, que toldado +Vinha de sedas de diversas cores, +Traz o Rei de Melinde, acompanhado +De nobres e seu Reino e de senhores: +Vem de ricos vestidos adornado, +Segundo seus costumes e primores; +Na cabeça uma fota guarnecida +De ouro, e de seda e de algodão tecida. + +95 +Cabaia de Damasco rico e dino, +Da Tíria cor, entre eles estimada, +Um colar ao pescoço, de ouro fino, +Onde a matéria da obra é superada, +C'um resplendor reluze adamantino; +Na cinta, a rica bem lavrada; +Nas alparcas dos pés, em fim de tudo, +Cobrem ouro e aljôfar ao veludo. + +96 +Com um redondo emparo alto de seda, +Numa alta e dourada hástia enxerido, +Um ministro à solar quentura veda. +Que não ofenda e queime o Rei subido. +Música traz na proa, estranha e leda, +De áspero som, horríssono ao ouvido, +De trombetas arcadas em redondo, +Que, sem concerto, fazem rudo estrondo. + +97 +Não menos guarnecido o Lusitano +Nos seus batéis, da frota se partia +A receber no mar o Melindano, +Com lustrosa e lograda companhia. +Vestido o Gama vem ao modo Hispano, +Mas Francesa era a roupa que vestia, +De cetim da Adriática Veneza +Carmesi, cor que a gente tanto preza: + +98 +De botões douro as mangas vêm tomadas, +Onde o Sol reluzindo a vista cega; +As calças soldadescas recamadas +Do metal, que Fortuna a tantos nega, +E com pontas do mesmo delicadas +Os golpes do gibão ajunta e achega; +Ao Itálico modo a áurea espada; +Pluma na gorra, um pouco declinada. + +99 +Nos de sua companhia se mostrava +Da tinta, que dá o múrice excelente, +A vária cor, que os olhos alegrava, +E a maneira do trajo diferente. +Tal o formoso esmalte se notava +Dos vestidos, olhados juntamente, +Qual aparece o arco rutilante +Da bela Ninfa, filha de Taumante. + +100 +Sonorosas trombetas incitavam +Os ânimos alegres, ressoando; +Dos Mouros os batéis, o mar coalhavam, +Os toldos pelas águas arrojando; +As bombardas horríssonas bramavam, +Com as nuvens de fumo o Sol tomando; +Amiúdam-se os brados acendidos, +Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos. + +101 +Já no batel entrou do Capitão +O Rei, que nos seus braços o levava; +Ele coa cortesia, que a razão +(Por ser Rei) requeria, lhe falava. +C'umas mostras de espanto e admiração, +O Mouro o gesto e o modo lhe notava, +Como quem em mui grande estima tinha +Gente que de tão longe à índia vinha. + +102 +E com grandes palavras lhe oferece +Tudo o que de seus Reinos lhe cumprisse, +E que, se mantimento lhe falece, +Como se próprio fosse, lho pedisse. +Diz-lhe mais, que por fama bem conhece +A gente Lusitana, sem que a visse; +Que já ouviu dizer, que noutra terra +Com gente de sua Lei tivesse guerra. + +103 +E como por toda África se soa, +Lhe diz, os grandes feitos que fizeram, +Quando nela ganharam a coroa +Do Reino, onde as Hespéridas viveram; +E com muitas palavras apregoa +O menos que os de Luso mereceram, +E o mais que pela fama o Rei sabia. +Mas desta sorte o Gama respondia: + +104 +"Ó tu, que só tiveste piedade, +Rei benigno, da gente Lusitana, +Que com tanta miséria e adversidade +Dos mares experimenta a fúria insana; +Aquela alta e divina Eternidade, +Que o Céu revolve e rege a gente humana, +Pois que de ti tais obras recebemos, +Te pague o que nós outros não podemos. + +105 +"Tu só, de todos quantos queima Apolo, +Nos recebes em paz, cio mar profundo; +Em ti dos ventos hórridos de Eolo +Refúgio achamos bom, fido e jocundo. +Enquanto apascentar o largo Pólo +As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo, +Onde quer que eu viver, com fama e glória +Viverão teus louvores em memória." + +106 +Isto dizendo, os barcos vão remando +Para a frota, que o Mouro ver deseja; +Vão as naus uma e uma rodeando, +Porque de todas tudo note e veja. +Mas para o céu Vulcano fuzilando, +A frota coas bombardas o festeja, +E as trombetas canoras lhe tangiam; +Co'os anafis os Mouros respondiam. + +107 +Mas depois de ser tudo já notado +Do generoso Mouro, que pasmava +Ouvindo o instrumento inusitado, +Que tamanho terror em si mostrava, +Mandava estar quieto e ancorado +N'água o batel ligeiro que os levava, +Por falar de vagar co'o forte Gama, +Nas cousas de que tem notícia e faina. + +108 +Em práticas o Mouro diferentes +Se deleitava, perguntando agora +Pelas guerras famosas e excelentes +Co'o povo havidas, que a Mafoma adora; +Agora lhe pergunta pelas gentes +De toda a Hespéria última, onde mora; +Agora pelos povos seus vizinhos, +Agora pelos úmidos caminhos. + +109 +"Mas antes, valeroso Capitão, +Nos conta, lhe dizia, diligente, +Da terra tua o clima, e região +Do mundo onde morais distintamente; +E assim de vossa antiga geração, +E o princípio do Reino tão potente, +Co'os sucessos das guerras do começo, +Que, sem sabê-las, sei que são de preço. + +110 +"E assim também nos conta dos rodeios +Longos, em que te traz o mar irado, +Vendo os costumes bárbaros alheios. +Que a nossa África ruda tem criado. +Conta: que agora vêm co'os áureos freios +Os cavalos que o carro marchetado +Do novo Sol, da fria Aurora trazem, +O vento dorme, o mar e as ondas jazem. + +111 +"E não menos co'o tempo se parece +O desejo de ouvir-te o que contares; +Que quem há, que por fama não conhece +As obras Portuguesas singulares? +Não tanto desviado resplandece +De nós o claro Sol, para julgares +Que os Melindanos têm tão rudo peito, +Que não estimem muito um grande feito. + +112 +"Cometeram soberbos os Gigantes, +Com guerra vã, o Olimpo claro e puro; +Tentou Pirítoo e Teseu, de ignorantes, +O Reino de Plutão horrendo e escuro. +Se houve feitos no mundo tão possantes, +Não menos é trabalho ilustre e duro, +Quanto foi cometer Inferno o Céu, +Que outrem cometa a fúria de Nereu. + +113 +"Queimou o sagrado templo de Diana, +Do subtil Tesifónio fabricado, +Heróstrato, por ser da gente humana +Conhecido no mundo e nomeado: +Se também com tais obras nos engana +O desejo de um nome avantajado, +Mais razão há que queira eterna glória +Quem faz obras tão dignas de memória." + +Canto Terceiro + +1 +Agora tu, Calíope, me ensina +O que contou ao Rei o ilustre Gama: +Inspira imortal canto e voz divina +Neste peito mortal, que tanto te ama. +Assim o claro inventor da Medicina, +De quem Orfeu pariste, ó linda Dama, +Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe, +Te negue o amor devido, como soe. + +2 +Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo, +Como merece a gente Lusitana; +Que veja e saiba o mundo que do Tejo +O licor de Aganipe corre e mana. +Deixa as flores de Pindo, que já vejo +Banhar-me Apolo na água soberana; +Senão direi que tens algum receio, +Que se escureça o teu querido Orfeio. + +3 +Prontos estavam todos escutando +O que o sublime Gama contaria, +Quando, depois de um pouco estar cuidando, +Alevantando o rosto, assim dizia: +"Mandas-me, ó Rei, que conte declarando +De minha gente a grão genealogia: +Não me mandas contar estranha história, +Mas mandas-me louvar dos meus a glória. + +4 +"Que outrem possa louvar esforço alheio, +Cousa é que se costuma e se deseja; +Mas louvar os meus próprios, arreceio +Que louvor tão suspeito mal me esteja; +E para dizer tudo, temo e creio, +Que qualquer longo tempo curto seja: +Mas, pois o mandas, tudo se te deve, +Irei contra o que devo, e serei breve. + +5 +"Além disso, o que a tudo enfim me obriga, +É não poder mentir no que disser, +Porque de feitos tais, por mais que diga, +Mais me há-de ficar inda por dizer. +Mas, porque nisto a ordens leve e siga, +Segundo o que desejas de saber, +Primeiro tratarei da larga terra, +Depois direi da sanguinosa guerra. + +6 +"Entre a Zona que o Cancro senhoreia, +Meta setentrional do Sol luzente, +E aquela que por f ria se arreceia +Tanto, como a do meio por ardente, +Jaz a soberba Europa, a quem rodeia, +Pela parte do Areturo, e do Ocidente, +Com suas salsas ondas o Oceano, +E pela Austral o mar Mediterrano. + +7 +"Da parte donde o dia vem nascendo, +Com Ásia se avizinha; mas o rio +Que dos montes Rifeios vai correndo, +Na alagoa Meotis, curvo o frio, +As divide: e o mar que, fero e horrendo, +Viu dos Gregos o irado senhorio, +Onde agora de Tróia triunfante +Não vê mais que a memória o navegante. + +8 +"Lá onde mais debaixo está do Pólo, +Os montes Hiperbóreos aparecem, +E aqueles onde sempre sopra Eolo, +E co'o nome, dos sopros se enobrecem. +Aqui tão pouca força tem de Apolo +Os raios que no mundo resplandecem, +Que a neve está contido pelos montes, +Gelado o mar, geladas sempre as fontes. + +9 +"Aqui dos Citas grande quantidade +Vivem, que antigamente grande guerra +Tiveram, sobre a humana antiguidade, +Co'os que tinham então a Egípcia terra; +Mas quem tão fora estava da verdade, +(Já que o juízo humano tanto erra) +Para que do mais certo se informara, +Ao campo Damasceno o perguntara. + +10 +"Agora nestas partes se nomeia +A Lápia fria, a inculta Noruega, +Escandinávia Ilha, que se arreia +Das vitórias que Itália não lhe nega. +Aqui, enquanto as águas não refreia +O congelado inverno, se navega +Um braço do Sarmático Oceano +Pelo Brúsio, Suécio e frio Dano. + +11 +"Entre este mar e o Tánais vive estranha +Gente: Rutenos, Moseos e Livónios, +Sármatas outro tempo; e na montanha +Hircínia os Marcomanos são Polónios. +Sujeitos ao Império de Alemanha +São Saxones, Boêmios e Panónios, +E outras várias nações, que o Reno frio +Lava, e o Danúbio, Amasis e Albis rio. + +12 +"Entre o remoto Istro e o claro Estreito, +Aonde Hele deixou co'o nome a vida, +Estão os Traces de robusto peito, +Do fero Marte pátria tão querida, +Onde, colo Hemo, o Ródope sujeito +Ao Otomano está, que submetida +Bizâncio tem a seu serviço indino: +Boa injúria do grande Constantino! + +13 +"Logo de Macedónia estão as gentes, +A quem lava do Axio a água fria; +E vós também, ó terras excelentes +Nos costumes, engenhos e ousadia, +Que criastes os peitos eloquentes +E os juízos de alta fantasia, +Com quem tu, clara Grécia, o Céu penetras, +E não menos por armas, que por letras. + +14 +"Logo os Dálmatas vivem; e no seio, +Onde Antenor já muros levantou, +A soberba Veneza está no meio +Das águas, que tão baixa começou. +Da terra um braço vem ao mar, que cheio +De esforço, nações várias sujeitou, +Braço forte, de gente sublimada, +Não menos nos engenhos, que na espada. + +15 +"Em torno o cerca o Reino Neptunino, +Co'os muros naturais por outra parte; +Pelo meio o divide o Apenino, +Que tão ilustre fez o pátrio Marte; +Mas depois que o Porteiro tem divino, +Perdendo o esforço veio, e bélica arte; +Pobre está já de antiga potestade: +Tanto Deus se contenta de humildade! + +16 +"Gália ali se verá que nomeada +Co'os Cesáreos triunfos foi no mundo, +Que do Séquana e Ródano é regada, +E do Giruna frio e Reno fundo. +Logo os montes da Ninfa sepultada +Pirene se alevantam, que segundo +Antiguidades contam, quando arderam, +Rios de ouro e de prata então correram. + +17 +"Eis aqui se descobre a nobre Espanha, +Como cabeça ali de Europa toda, +Em cujo senhorio o glória estranha +Muitas voltas tem dado a fatal roda; +Mas nunca poderá, com força ou manha, +A fortuna inquieta pôr-lhe noda, +Que lhe não tire o esforço e ousadia +Dos belicosos peitos que em si cria. + +18 +"Com Tingitânia entesta, e ali parece +Que quer fechar o mar Mediterrano, +Onde o sabido Estreito se enobrece +Co'o extremo trabalhado Tebano. +Com nações diferentes se engrandece, +Cercadas com as ondas do Oceano; +Todas de tal nobreza e tal valor, +Que qualquer delas cuida que é melhor. + +19 +"Tem o Tarragonês, que se fez claro +Sujeitando Parténope inquieta; +O Navarro, as Astúrias, que reparo +Já foram contra a gente Mahometa; +Tem o Galego cauto, e o grande e raro +Castelhano, a quem fez o seu Planeta +Restituidor de Espanha e senhor dela, +Bétis, Lião, Granada, com Castela. + +20 +"Eis aqui, quase cume da cabeça +De Europa toda, o Reino Lusitano, +Onde a terra se acaba e o mar começa, +E onde Febo repousa no Oceano. +Este quis o Céu justo que floresça +Nas armas contra o torpe Mauritano, +Deitando-o de si fora, e lá na ardente +África estar quieto o não consente. + +22 +"Esta é a ditosa pátria minha amada, +A qual se o Céu me dá que eu sem perigo +Torne, com esta empresa já acabada, +Acabe-se esta luz ali comigo. +Esta foi Lusitânia, derivada +De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo +Filhos foram, parece, ou companheiros, +E nela então os Íncolas primeiros. + +22 +"Desta o pastor nasceu, que no seu nome +Se vê que de homem forte os feitos teve; +Cuja fama ninguém virá que dome, +Pois a grande de Roma não se atreve. +Esta, o velho que os filhos próprios come +Por decreto do Céu, ligeiro e leve, +Veio a fazer no mundo tanta parte, +Criando-a Reino ilustre; e foi desta arte: + +23 +"Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha, +Que fez aos Sarracenos tanta guerra, +Que por armas sanguinas, força e manha, +A muitos fez perder a vida o a terra; +Voando deste Rei a fama estranha +Do Herculano Calpe à Cáspia serra, +Muitos, para na guerra esclarecer-se, +Vinham a ele e à morte oferecer-se. + +24 +"E com um amor intrínseco acendidos +Da Fé, mais que das honras populares, +Eram de várias terras conduzidos, +Deixando a pátria amada e próprios lares. +Depois que em feitos altos e subidos +Se mostraram nas armas singulares, +Quis o famoso Afonso que obras tais +Levassem prémio digno e dons iguais. + +25 +"Destes Anrique, dizem que segundo +Filho de um Rei de Ungria exprimentado, +Portugal houve em sorte, que no mundo +Então não era ilustre nem prezado; +E, para mais sinal d'amor profundo, +Quis o Rei Castelhano, que casado +Com Teresa, sua filha, o Conde fosse; +E com ela das terras tornou posse. + +26 +"Este, depois que contra os descendentes +Da escrava Agar vitórias grandes teve, +Ganhando muitas terras adjacentes, +Fazendo o que a seu forte peito deve, +Em prémio destes feitos excelentes, +Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve, +Um filho, que ilustrasse o nome ufano +Do belicoso Reino Lusitano. + +27 +"Já tinha vindo Anrique da conquista +Da cidade Hierosólima sagrada, +E do Jordão a areia tinha vista, +Que viu de Deus a carne em si lavada; +Que não tendo Gotfredo a quem resista, +Depois de ter Judeia sojugada, +Muitos, que nestas guerras o ajudaram, +Para seus senhorios se tornaram; + +28 +"Quando chegado ao fim de sua idade, +O forte e famoso Úngaro estremado, +Forçado da fatal necessidade, +O espírito deu a quem lhe tinha dado, +Ficava o filho em tenra mocidade, +Em quem o pai deixava seu traslado, +Que do mundo os mais fortes igualava; +Que de tal pai tal filho se esperava. + +29 +"Mas o velho rumor, não sei se errado, +Que em tanta antiguidade não há certeza, +Conta que a mãe, tomando todo o estado, +Do segundo himeneu não se despreza. +O filho órfão deixava deserdado, +Dizendo que nas terras a grandeza +Do senhorio todo só sua era, +Porque, para casar, seu pai lhes dera. + +30 +"Mas o Príncipe Afonso, que desta arte +Se chamava, do avô tomando o nome, +Vendo-se em suas terras não ter parte, +Que a mãe, com seu marido, as manda e come, +Fervendo-lhe no peito o duro Marte, +Imagina consigo como as tome. +Revolvidas as causas no conceito, +Ao propósito firme segue o efeito. + +31 +"De Guimarães o campo se tingia +Co'o sangue próprio da intestina guerra, +Onde a mãe, que tão pouco o parecia, +A seu filho negava o amor e a terra. +Com ele posta em campo já se via; +E não vê a soberba o muito que erra +Contra Deus, contra o maternal amor; +Mas nela o sensual era maior. + +32 +"Ó Progne crua! ó mágica Medeia! +Se em vossos próprios filhos vos vingais +Da maldade dos pais, da culpa alheia, +Olhai que inda Teresa peca mais: +Incontinência má, cobiça feia, +São as causas deste erro principais: +Cila, por uma, mata o velho pai, +Esta, por ambas, contra o filho vai. + +33 +"Mas já o Príncipe claro o vencimento +Do padrasto e da iníqua mãe levava; +Já lhe obedece a terra num momento, +Que primeiro contra ele pelejava. +Porém, vencido de ira o entendimento, +A mãe em ferros ásperos atava; +Mas de Deus foi vingada em tempo breve: +Tanta veneração aos pais se deve! + +34 +"Eis se ajunta o soberbo Castelhano, +Para vingar a injúria de Teresa, +Contra o tão raro em gente Lusitano, +A quem nenhum trabalho agrava ou pesa. +Em batalha cruel o peito humano, +Ajudado da angélica defesa, +Não só contra tal fúria se sustenta, +Mas o inimigo aspérrimo afugenta. + +35 +"Não passa muito tempo, quando o forte +Príncipe em Guimarães está cercado +De infinito poder; que desta sorte +Foi refazer-se o inimigo magoado; +Mas, com se oferecer à dura morte +O fiel Egas amo, foi livrado; +Que de outra arte pudera ser perdido, +Segundo estava mal apercebido. + +36 +"lulas o leal vassalo, conhecendo +Que seu senhor não tinha resistência, +Se vai ao Castelhano, prometendo +Que ele faria dar-lhe obediência. +Levanta o inimigo o cerco horrendo, +Fiado na promessa e consciência +De Egas Moniz; mas não consente o peito +Do moço ilustre a outrem ser sujeito. + +37 +"Chegado tinha o prazo prometido, +Em que o Rei Castelhano já aguardava +Que o Príncipe, a seu mando sometido, +Lhe desse a obediência que esperava. +Vendo Egas que ficava fementido, +O que dele Castela não cuidava, +Determina de dar a doce vida +A troco da palavra mal cumprida. + +38 +"E com seus filhos e mulher se parte +A alevantar com eles a fiança, +Descalços e despidos, de tal arte, +Que mais move a piedade que a vingança. +--"Se pretendes, Rei alto, de vingar-te +De minha temerária confiança, +Dizia, eis aqui venho oferecido +A te pagar, coa vida, o prometido. + +39 +"Vês aqui trago as vidas inocentes +Dos filhos sem pecado e da consorte; +Se a peitos generosos e excelentes, +Dos fracos satisfaz a fera morte. +Vês aqui as mãos e a língua delinquentes: +Nelas sós exprimenta toda a sorte +De tormentos, de mortes, pelo estilo +De Cínis e do touro de Perilo"!-- + +40 +"Qual diante do algoz o condenado, +Que já na vida a morte tem bebido, +Põe no cepo a garganta, e já entregado +Espera pelo golpe tão temido: +Tal diante do Príncipe indinado, +Egas estava a tudo oferecido. +Mas o Rei, vendo a estranha lealdade, +Mais pôde, enfim, que a ira a piedade. + +41 +"Ó grão fidelidade Portuguesa, +De vassalo, que a tanto se obrigava! +Que mais o Persa fez naquela empresa, +Onde rosto e narizes se cortava? +Do que ao grande Dario tanto pesa, +Que mil vezes dizendo suspirava, +Que mais o seu Zopiro são prezara, +Que vinte Babilónias que tomara. + +42 +Mas já o Príncipe Afonso aparelhava +O Lusitano exército ditoso, +Contra o Mouro que as terras habitava +D'além do claro Tejo deleitoso; +Já no campo de Ourique se assentava +O arraial soberbo e belicoso, +Defronte do inimigo Sarraceno, +Posto que em força e gente tão pequeno. + +43 +"Em nenhuma outra cousa confiado, +Senão no sumo Deus, que o Céu regia, +Que tão pouco era o povo batizado, +Que para um só cem Mouros haveria. +Julga qualquer juízo sossegado +Por mais temeridade que ousadia, +Cometer um tamanho ajuntamento, +Que para um cavaleiro houvesse cento. + +44 +"Cinco Reis Mouros são os inimigos, +Dos quais o principal Ismar se chama; +Todos exprimentados nos perigos +Da guerra, onde se alcança a ilustre fama. +Seguem guerreiras damas seus amigos, +Imitando a formosa e forte Dama, +De quem tanto os Troianos se ajudaram, +E as que o Termodonte já gostaram. + +45 +"A matutina luz serena e fria, +As estrelas do Pólo já apartava, +Quando na Cruz o Filho de Maria, +Amostrando-se a Afonso, o animava. +Ele, adorando quem lhe aparecia, +Na Fé todo inflamado assim gritava: +--"Aos infiéis, Senhor, aos infiéis, +E não a mim, que creio o que podeis!" + +46 +"Com tal milagre os ânimos da gente +Portuguesa inflamados, levantavam +Por seu Rei natural este excelente +Príncipe, que do peito tanto amavam; +E diante do exército potente +Dos imigos, gritando o céu tocavam, +Dizendo em alta voz:--"Real, real, +Por Afonso alto Rei de Portugal." + +47 +"Qual co'os gritos e vozes incitado, +Pela montanha o rábido Moloso, +Contra o touro remete, que fiado +Na força está do corno temeroso: +Ora pega na orelha, ora no lado, +Latindo mais ligeiro que forçoso, +Até que enfim, rompendo-lhe a garganta, +Do bravo a força horrenda se quebranta: + +48 +"Tal do Rei novo o estâmago acendido +Por Deus e pelo povo juntamente, +O Bárbaro comete apercebido, +Co'o animoso exército rompente. +Levantam nisto os perros o alarido +Dos gritos, tocam a arma, ferve a gente, +As lanças e arcos tomam, tubas soam, +Instrumentos de guerra tudo atroam. + +49 +"Bem como quando a flama, que ateada +Foi nos áridos campos (assoprando +O sibilante Bóreas) animada +Co'o vento, o seco mato vai queimando; +A pastoral companha, que deitada +Co'o doce sono estava, despertando +Ao estridor do fogo que se ateia, +Recolhe o fato, e foge para a aldeia: + +50 +"Desta arte o Mouro atónito e torvado, +Toma sem tento as armas mui depressa; +Não foge; mas espera confiado, +E o ginete belígero arremessa. +O Português o encontra denodado, +Pelos peitos as lanças lhe atravessa: +Uns caem meios mortos, e outros vão +A ajuda convocando do Alcorão. + +51 +"Ali se vêem encontros temerosos, +Para se desfazer uma alta serra, +E os animais correndo furiosos +Que Neptuno amostrou ferindo a terra. +Golpes se dão medonhos e forçosos; +Por toda a parte andava acesa a guerra: +Mas o de Luso arnês, couraça e malha +Rompe, corta, desfaz, abola e talha. + +52 +"Cabeças pelo campo vão saltando +Braços, pernas, sem dono e sem sentido; +E doutros as entranhas palpitando, +Pálida a cor, o gesto amortecido. +Já perde o campo o exército nefando; +Correm rios de sangue desparzido, +Com que também do campo a cor se perde, +Tornado carmesi de branco e verde. + +53 +"Já fica vencedor o Lusitano, +Recolhendo os troféus e presa rica; +Desbaratado e roto o Mauro Hispano, +Três dias o grão Rei no campo fiei. +Aqui pinta no branco escudo ufano, +Que agora esta vitória certifica, +Cinco escudos azuis esclarecidos, +Em sinal destes cinco Reis vencidos, + +54 +"E nestes cinco escudos pinta os trinta +Dinheiros por que Deus fora vendido, +Escrevendo a memória em vária tinta, +Daquele de quem foi favorecido. +Em cada uni dos cinco, cinco pinta, +Porque assim fica o número cumprido, +Contando duas vezes o do meio, +Dos cinco azuis, que em cruz pintando veio. + +55 +"Passado já algum tempo que passada +Era esta grão vitória, o Rei subido +A tomar vai Leiria, que tomada +Fora, mui pouco havia, do vencido. +Com esta a forte Arronches sojugada +Foi juntamente, e o sempre enobrecido +Scalabicastro, cujo campo ameno, +Tu, claro Tejo, regas tão sereno. + +56 +"A estas nobres vilas sometidas, +Ajunta também Mafra, em pouco espaço, +E nas serras da Lua conhecidas, +Sojuga a fria Sintra o duro braço; +Sintra, onde as Naiades, escondidas +Nas fontes, vão fugindo ao doce laço, +Onde Amor as enreda brandamente, +Nas águas acendendo fogo ardente. + +57 +"E tu, nobre Lisboa, que no Mundo +Facilmente das outras és princesa, +Que edificada foste do facundo, +Por cujo engano foi Dardânia acesa; +Tu, a quem obedece o mar profundo, +Obedeceste à força Portuguesa, +Ajudada também da forte armada, +Que das Boreais partes foi mandada. + +58 +"Lá do Germânico Albis, e do Rene, +E da fria Bretanha conduzidos, +A destruir o povo Sarraceno, +Muitos com tensão santa eram partidos. +Entrando a boca já do Tejo ameno, +Co'o arraial do grande Afonso unidos, +Cuja alta fama então subia aos Céus, +Foi posto cerco tos muros Ulisseus. + +59 +"Cinco vezes a Lua se escondera, +E outras tantas mostrara cheio o rosto, +Quando a cidade entrada se rendera +Ao duro cerco, que lhe estava posto. +Foi a batalha tão sanguina e fera, +Quanto obrigava o firme pressuposto +De vencedores ásperos e ousados, +E de vencidos já desesperados. + +60 +"Desta arte enfim tomada se rendeu +Aquela que, nos tempos já passados, +A grande força nunca obedeceu +Dos frios povos Cíticos ousados, +Cujo poder a tanto se estendeu +Que o Ibero o viu e o Tejo amedrontados; +E enfim co'o Bétis tanto alguns puderam +Que à terra de Vandália nome deram. + +61 +"Que cidade tão forte por ventura +Haverá que resista, se Lisboa +Não pôde resistir à força dura +Da gente, cuja fama tanto voa? +Já lhe obedece toda a Estremadura, +Óbidos, Alenquer, por onde soa +O tom das frescas águas, entre as pedras, +Que murmurando lava, e Torres Vedras. + +62 +"E vós também, ó terras Transtaganas, +Afamadas co'o dom da flava Ceres, +Obedeceis às forças mais que humanas, +Entregando-lhe os muros e os poderes. +E tu, lavrador Mouro, que te enganas, +Se sustentar a fértil terra queres; +Que Elvas, e Moura, e Serpa conhecidas, +E Alcácere-do-Sal estão rendidas. + +63 +"Eis a nobre Cidade, certo assento +Do rebelde Sertório antigamente, +Onde ora as águas nítidas de argento +Vem sustentar de longo a terra e a gente, +Pelos arcos reais, que cento e cento +Nos ares se alevantam nobremente, +Obedeceu por meio e ousadia +De Giraldo, que medos não temia. + +64 +"Já na cidade Beja vai tomar +Vingança de Trancoso destruída +Afonso, que não sabe sossegar, +Por estender coa fama a curta vida. +Não se lhe pode muito sustentar +A cidade; mas sendo já rendida, +Em toda a cousa viva a gente irada +Provando os fios vai da dura espada. + +65 +"Com estas sojugada foi Palmela, +E a piscosa Cezimbra, e juntamente, +Sendo ajudado mais de sua estrela, +Desbarata um exército potente: +Sentiu-o a vila, e viu-o a serra dela, +Que a socorrê-la vinha diligente +Pela fralda da serra, descuidado +Do temeroso encontro inopinado. + +66 +"O Rei de Badajoz era alto Mouro, +Com quatro mil cavalos furiosos, +Inúmeros peões, d'armas e de ouro +Guarnecidos, guerreiros e lustrosos. +Mas, qual no mês de Maio o bravo touro, +Co'os ciúmes da vaca, arreceosos, +Sentindo gente o bruto e cego amante +Salteia o descuidado caminhante: + +67 +"Desta arte Afonso súbito mostrado +Na gente dá, que passa bem segura, +Fere, mata, derriba denodado; +Foge o Rei Mouro, e só da vida cura. +Dum pânico terror todo assombrado, +Só de segui-lo o exército procura; +Sendo estes que fizeram tanto abalo +Não mais que só sessenta de cavalo. + +68 +"Logo segue a vitória sem tardança +O grão Rei incansábil, ajuntando +Gentes de todo o Reino, cuja usança +Era andar sempre terras conquistando. +Cercar vai Badajoz, e logo alcança +O fim de seu desejo, pelejando +Com tanto esforço, e arte, e valentia, +Que a fez fazer às outras companhia. + +69 +"Mas o alto Deus, que para longe guarda +O castigo daquele que o merece, +Ou, para que se emende, às vezes tarda, +Ou por segredos que homem não conhece, +Se até que sempre o forte Rei resguarda +Dos perigos a que ele se oferece; +Agora lhe não deixa ter defesa +Da maldição da mãe que estava presa. + +70 +"Que estando na cidade, que cercara, +Cercado nela foi dos Lioneses, +Porque a conquista dela lhe tomara, +De Lião sendo, e não dos Portugueses. +A pertinácia aqui lhe custa cara, +Assim como acontece muitas vezes, +Que em ferros quebra as pernas, indo aceso +A batalha, onde foi vencido e preso. + +71 +"Ó famoso Pompeio, não te pene +De teus feitos ilustres a ruína, +Nem ver que a justa Némesis ordene +Ter teu sogro de ti vitória dina, +Posto que o frio Fásis, ou Siene, +Que para nenhum cabo a sombra inclina, +O Bootes gelado e a linha ardente, +Temessem o teu nome geralmente. + +72 +"Posto que a rica Arábia e que os ferozes +Eníocos e Colcos, cuja fama +O Véu dourado estende, e os Capadoces, +E Judeia, que um Deus adora e ama, +E que os moles Sofenos, e os atroces +Cilícios, com a Arménia, que derrama +As águas dos dous rios, cuja fonte +Está noutro mais alto e santo monte; + +73 +"E posto enfim que desde o mar de Atlante +Até o Cítico Tauro monte erguido, +Já vencedor te vissem, não te espanto +Se o campo Emátio só te viu vencido, +Porque Afonso verás, soberbo e ovante, +Tudo render-se ser depois rendido. +Assim o quis o conselho alto e celeste, +Que vença o sogro a ti, e o genro a este. + +74 +"Tornado o Rei sublime finalmente, +Do divino Juízo castigado, +Depois que em Santarém soberbamente +Em vão dos Sarracenos foi cercado, +E depois que do mártire Vicente +O santíssimo corpo venerado +Do Sacro Promontório conhecido +A cidade Ulisseia foi trazido; + +75 +"Porque levasse avante seu desejo, +Ao forte filho manda o lasso velho +Que às terras se passasse d'Alentejo, +Com gente e co'o belígero aparelho. +Sancho, d'esforço o d'ânimo sobejo, +Avante passa, e faz correr vermelho +O rio que Sevilha vai regando, +Co'o sangue Mauro, bárbaro e nefando. + +76 +"E com esta vitória cobiçoso, +Já não descansa o moço até que veja +Outro estrago como este, temeroso, +No Bárbaro que tem cercado Beja. +Não tarda muito o Príncipe ditoso +Sem ver o fim daquilo que deseja. +Assim estragado o Mouro, na vingança +De tantas perdas põe sua esperança. + +77 +"Já se ajuntam do monte a quem Medusa +O corpo fez perder, que teve o Céu; +Já vem do promontório de Ampelusa +E do Tinge, que assento foi de Anteu. +O morador de Abila não se escusa, +Que também com suas armas se moveu, +Ao som da Mauritana e ronca tuba, +Todo o Reino que foi do nobre Juba. + +78 +"Entrava com toda esta companhia +O Miralmomini em Portugal; +Treze Reis mouros leva de valia, +Entre os quais tem o ceptro imperial; +E assim fazendo quanto mal podia, +O que em partes podia fazer mal, +Dom Sancho vai cercar em Santarém; +Porém não lhe sucede muito bem. + +79 +"Dá-lhe combates ásperos, fazendo +Ardis de guerra mil o Mouro iroso; +Não lhe aproveita já trabuco horrendo, +Mina secreta, aríete forçoso: +Porque o filho de Afonso não perdendo +Nada do esforço e acordo generoso, +Tudo provê com ânimo e prudência; +Que em toda a parte há esforço e resistência. + +80 +"Mas o velho, a quem tinham já obrigado +Os trabalhosos anos ao sossego, +Estando na cidade, cujo prado +Enverdecem as águas do Mondego, +Sabendo como o filho está cercado +Em Santarém do Mauro povo cego, +Se parte diligente da cidade; +Que não perde a presteza coa idade. + +81 +"E coa famosa gente à guerra usada +Vai socorrer o filho; e assim ajuntados, +A Portuguesa fúria costumada +Em breve os Mouros tem desbaratados. +A campina, que toda está coalhada +De marlotas, capuzes variados, +De cavalos, jaezes, presa rica, +De seus senhores mortos cheia fica. + +82 +"Logo todo o restante se partiu +De Lusitânia, postos em fugida; +O Miralmomini só não fugiu, +Porque, antes de fugir, lhe foge a vida. +A quem lhe esta vitória permitiu +Dão louvores e graças sem medida: +Que em casos tão estranhos claramente +Mais peleja o favor de Deus que a gente. + +83 +"De tamanhas vitórias triunfava +O velho Afonso, Príncipe subido, +Quando, quem tudo enfim vencendo andava, +Da larga e muita idade foi vencido. +A pálida doença lhe tocava +Com fria mão o corpo enfraquecido; +E pagaram seus anos deste jeito +A triste Libitina seu direito. + +84 +"Os altos promontórios o choraram, +E dos rios as águas saudosas +Os semeados campos alagaram +Com lágrimas correndo piedosas. +Mas tanto pelo mundo se alargaram +Com faina suas obras valerosas, +Que sempre no seu Reino chamarão +"Afonso, Afonso" os ecos, mas em vão. + +85 +"Sancho, forte mancebo, que ficara +Imitando seu pai na valentia, +E que em sua vida já se exprimentara, +Quando o Bétis de sangue se tingia, +E o bárbaro poder desbaratara +Do Ismaelita Rei de Andaluzia; +E mais quando os que Beja em vão cercaram, +Os golpes de seu braço em si provaram; + +86 +"Depois que foi por Rei alevantado, +Havendo poucos anos que reinava, +A cidade de Silves tem cercado, +Cujos campos o bárbaro lavrava. +Foi das valentes gentes ajudado +Da Germânica armada que passava, +De armas fortes e gente apercebida, +A recobrar Judeia já perdida. + +87 +"Passavam a ajudar na santa empresa +O roxo Federico, que moveu +O poderoso exército em defesa +Da cidade onde Cristo padeceu, +Quando Guido, coa gente em sede acesa, +Ao grande Saladino se rendeu, +No lugar onde aos Mouros sobejavam +As águas que os de Guido desejavam. + +88 +"Mas a formosa armada, que viera +Por contraste de vento àquela parte, +Sancho quis ajudar na guerra fera, +Já que em serviço vai do santo Marte. +Assim como a seu pai acontecera +Quando tomou Lisboa, da mesma arte +Do Germano ajudado Silves toma, +E o bravo morador destrue e doma. + +89 +"E se tantos troféus do Mahometa +Alevantando vai, também do forte +Lionês não consente estar quieta +A terra, usada aos casos de Mavorte, +Até que na cerviz seu jugo meta +Da soberba Tui, que a mesma sorte +Viu ter a muitas vilas suas vizinhas, +Que, por armas, tu, Sancho, humildes tinhas. + +90 +"Mas entre tantas palmas salteado +Da temerosa morte, fica herdeiro +Um filho seu, de todos estimado, +Que foi segundo Afonso, e Rei terceiro. +No tempo deste, aos Mouros foi tomado +Alcácere-do-Sal por derradeiro; +Porque dantes os Mouros o tomaram, +Mas agora estruídos o pagaram. + +91 +"Morto depois Afonso, lhe sucede +Sancho segundo, manso e descuidado, +Que tanto em seus descuidos se desmede, +Que de outrem, quem mandava, era mandado. +De governar o Reino, que outro pede, +Por causa dos privados foi privado, +Porque, como por eles se regia, +Em todos os seus vícios consentia. + +92 +"Não era Sancho, não, tão desonesto +Como Nero, que um moço recebia +Por mulher, e depois horrendo incesto +Com a mãe Agripina cometia; +Nem tão cruel às gentes e molesto, +Que a cidade queimasse onde vivia, +Nem tão mau como foi Heliogabalo, +Nem como o mole Rei Sardanapalo. + +93 +"Nem era o povo seu tiranizado, +Como Sicília foi de seus tiranos; +Nem tinha como Fálaris achado +Gênero de tormentos inumanos; +Mas o Reino, de altivo e costumado +A senhores em tudo soberanos, +A Rei não obedece, nem consente, +Que não for mais que todos excelente. + +94 +"Por esta causa o Reino governou +O Conde Bolonhês, depois alçado +Por Rei, quando da vida se apartou +Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado. +Este, que Afonso o bravo, se chamou, +Depois de ter o Reino segurado, +Em dilatá-lo cuida, que em terreno +Não cabe o altivo peito, tão pequeno. + +95 +"Da terra dos Algarves, que lhe fora +Em casamento dada, grande parte +Recupera co'o braço, e deita fora +O Mouro, mal querido já de Marte. +Este de todo fez livre e senhora +Lusitânia, com força e bélica arte; +E acabou de oprimir a nação forte, +Na terra que aos de Luso coube em sorte. + +96 +"Eis depois vem Dinis, que bem parece +Do bravo Afonso estirpe nobre e dina, +Com quem a fama grande se escurece +Da liberalidade Alexandrina. +Com este o Reino próspero florece +(Alcançada já a paz áurea divina) +Em constituições, leis e costumes, +Na terra já tranquila claros lumes. + +97 +"Fez primeiro em Coimbra exercitar-se +O valeroso ofício de Minerva; +E de Helicona as Musas fez passar-se +A pisar do Monde-o a fértil erva. +Quanto pode de Atenas desejar-se, +Tudo o soberbo Apolo aqui reserva. +Aqui as capelas dá tecidas de ouro, +Do bácaro e do sempre verde louro. + +98 +"Nobres vilas de novo edificou +Fortalezas, castelos mui seguros, +E quase o Reino todo reformou +Com edifícios grandes, e altos muros. +Mas depois que a dura Átropos cortou +O fio de seus dias já maduros, +Ficou-lhe o filho pouco obediente, +Quarto Afonso, mas forte e excelente. + +99 +"Este sempre as soberbas Castelhanas +Co'o peito desprezou firme e sereno, +Porque não é das forças Lusitanas, +Temer poder maior, por mais pequeno. +Mas porém, quando as gentes Mauritanas, +A possuir o Hespérico terreno +Entraram pelas terras de Castela, +Foi o soberbo Afonso a socorrê-la. + +100 +"Nunca com Semirâmis gente tanta +Veio os campos idáspicos enchendo, +Nem Atila, que Itália toda espanta, +Chamando-se de Deus açoute horrendo, +Gótica gente trouxe tanta, quanta +Do Sarraceno bárbaro estupendo, +Co'o poder excessivo de Granada, +Foi nos campos Tartésios ajuntada. + +101 +"E vendo o Rei sublime Castelhano +A força inexpugnábil, grande e forte, +Temendo mais o fim do povo hispano, +Já perdido uma vez, que a própria morte, +Pedindo ajuda ao forte Lusitano, +Lhe mandava a caríssima consorte, +Mulher de quem a manda, e filha amada +Daquele a cujo Reino foi mandada. + +102 +"Entrava a formosíssima Maria +Pelos paternais paços sublimados, +Lindo o gesto, mas fora de alegria, +E seus olhos em lágrimas banhados; +Os cabelos angélicos trazia +Pelos ebúrneos ombros espalhados: +Diante do pai ledo, que a agasalha, +Estas palavras tais, chorando, espalha: + +103 +--"Quantos povos a terra produziu +De África toda, gente fera e estranha, +O grão Rei de Marrocos conduziu +Para vir possuir a nobre Espanha: +Poder tamanho junto não se viu, +Depois que o salso mar a terra banha. +Trazem ferocidade, e furor tanto, +Que a vivos medo, e a mortos faz espanto. + +104 +--"Aquele que me deste por marido, +Por defender sua terra amedrontada, +Co'o pequeno poder, oferecido +Ao duro golpe está da Maura espada; +E se não for contigo socorrido, +Ver-me-ás dele e do Reino ser privada, +Viúva e triste, e posta em vida escura, +Sem marido, sem Reino, e sem ventura. + +105 +"Portanto, ó Rei, de quem com puro medo +O corrente Muluca se congela, +Rompe toda a tardança, acude cedo +A miseranda gente de Castela. +Se esse gesto, que mostras claro e ledo, +De pai o verdadeiro amor assela, +Acude e corre, pai, que se não corres, +Pode ser que não aches quem socorres."-- + +106 +"Não de outra sorte a tímida Maria +Falando está, que a triste Vénus, quando +A Júpiter, seu pai, favor pedia +Para Eneias, seu filho, navegando; +Que a tanta piedade o comovia +Que, caído das mãos o raio infando, +Tudo o clemente Padre lhe concede, +Pesando-lhe do pouco que lhe pede. + +107 +"Mas já co'os esquadrões da gente armada +Os Eborenses campos vão coalhados: +Lustra co'o Sol o arnês, a lança, a espada; +Vão rinchando os cavalos jaezados. +A canora trombeta embandeirada, +Os corações à paz acostumados +Vai às fulgentes armas incitando, +Pelas concavidades retumbando. + +108 +"Entre todos no meio se sublima, +Das insígnias Reais acompanhado, +O valeroso Afonso, que por cima +De todos leva o colo alevantado; +E somente co'o gesto esforça e anima +A qualquer coração amedrontado. +Assim entra nas terras de Castela +Com a filha gentil, Rainha dela. + +109 +"Juntos os dous Afonsos finalmente +Nos campos de Tarifa estão defronte +Da grande multidão da cega gente, +Para quem são pequenos campo e monte. +Não há peito tão alto e tão potente, +Que de desconfiança não se afronte, +Enquanto não conheça e claro veja +Que co'o braço dos seus Cristo peleja. + +110 +"Estão de Agar os netos quase rindo +Do poder dos Cristãos fraco e pequeno, +As terras como suas repartindo +Antemão, entre o exército Agareno, +Que com título falso possuindo +Está o famoso nome Sarraceno. +Assim também com falsa conta e nua, +À nobre terra alheia chamam sua. + +111 +"Qual o membrudo e bárbaro Gigante, +Do rei Saul, com causa, tão temido, +Vendo o pastor inerme estar diante, +Só de pedras e esforço apercebido, +Com palavras soberbas o arrogante +Despreza o fraco moço mal vestido, +Que, rodeando a funda, o desengana +Quanto mais pode a Fé que a força humana: + +112 +"Desta arte o Mouro pérfido despreza +O poder dos Cristãos, e não entende +Que está ajudado da Alta Fortaleza, +A quem o inferno horrífico se rende. +Co ela o Castelhano, e com destreza +De Marrocos o Rei comete e ofende. +O Português, que tudo estima em nada, +Se faz temer ao Reino de Granada. + +113 +"Eis as lanças e espadas retiniam +Por cima dos arneses: bravo estrago! +Chamam (segundo as leis que ali seguiam) +Uns Mafamede, e os outros Santiago. +Os feridos com grita o Céu feriam, +Fazendo de seu sangue bruto lago, +Onde outros meios mortos se afogavam, +Quando do ferro as vidas escapavam. + +114 +"Com esforço tamanho estrui e mata +O Luso ao Granadil, que, em pouco espaço, +Totalmente o poder lhe desbarata, +Sem lhe valer defesa ou peito de aço. +De alcançar tal vitória tão barata +Inda não bem contente o forte braço, +Vai ajudar ao bravo Castelhano, +Que pelejando está co'o Mauritano. + +115 +"Já se ia o Sol ardente recolhendo +Para a casa de Tethys, e inclinado +Para o Ponente, o Véspero trazendo, +Estava o claro dia memorado, +Quando o poder do Mauro grande e horrendo +Foi pelos fortes Reis desbaratado, +Com tanta mortandade, que a memória +Nunca no mundo viu tão grã vitória. + +116 +"Não matou a quarta parte o forte Mário +Dos que morreram neste vencimento, +Quando as águas co'o sangue do adversário +Fez beber ao exército sedento; +Nem o Peno asperíssimo contrário +Do Romano poder, de nascimento, +Quando tantos matou da ilustro Roma, +Que alqueires três de anéis dos mortos toma. + +117 +"E se tu tantas almas só pudeste +Mandar ao Reino escuro de Cocito, +Quando a santa Cidade desfizeste +Do povo pertinaz no antigo rito: +Permissão e vingança foi celeste, +E não força de braço, ó nobre Tito, +Que assim dos Vates foi profetizado, +E depois por Jesu certificado. + +118 +"Passada esta tão próspera vitória, +Tornando Afonso à Lusitana terra, +A se lograr da paz com tanta glória +Quanta soube ganhar na dura guerra, +O caso triste, e dino da memória, +Que do sepulcro os homens desenterra, +Aconteceu da mísera e mesquinha +Que depois de ser morta foi Rainha. + +119 +"Tu só, tu, puro Amor, com força crua, +Que os corações humanos tanto obriga, +Deste causa à molesta morte sua, +Como se fora pérfida inimiga. +Se dizem, fero Amor, que a sede tua +Nem com lágrimas tristes se mitiga, +É porque queres, áspero e tirano, +Tuas aras banhar em sangue humano. + +120 +"Estavas, linda Inês, posta em sossego, +De teus anos colhendo doce fruto, +Naquele engano da alma, ledo e cego, +Que a fortuna não deixa durar muito, +Nos saudosos campos do Mondego, +De teus fermosos olhos nunca enxuto, +Aos montes ensinando e às ervinhas +O nome que no peito escrito tinhas. + +121 +"Do teu Príncipe ali te respondiam +As lembranças que na alma lhe moravam, +Que sempre ante seus olhos te traziam, +Quando dos teus fermosos se apartavam: +De noite em doces sonhos, que mentiam, +De dia em pensamentos, que voavam. +E quanto enfim cuidava, e quanto via, +Eram tudo memórias de alegria. + +122 +"De outras belas senhoras e Princesas +Os desejados tálamos enjeita, +Que tudo enfim, tu, puro amor, despreza, +Quando um gesto suave te sujeita. +Vendo estas namoradas estranhezas +O velho pai sesudo, que respeita +O murmurar do povo, e a fantasia +Do filho, que casar-se não queria, + +123 +"Tirar Inês ao mundo determina, +Por lhe tirar o filho que tem preso, +Crendo co'o sangue só da morte indina +Matar do firme amor o fogo aceso. +Que furor consentiu que a espada fina, +Que pôde sustentar o grande peso +Do furor Mauro, fosse alevantada +Contra uma fraca dama delicada? + +124 +"Traziam-na os horríficos algozes +Ante o Rei, já movido a piedade: +Mas o povo, com falsas e ferozes +Razões, à morte crua o persuade. +Ela com tristes o piedosas vozes, +Saídas só da mágoa, e saudade +Do seu Príncipe, e filhos que deixava, +Que mais que a própria morte a magoava, + +125 +"Para o Céu cristalino alevantando +Com lágrimas os olhos piedosos, +Os olhos, porque as mãos lhe estava atando +Um dos duros ministros rigorosos; +E depois nos meninos atentando, +Que tão queridos tinha, e tão mimosos, +Cuja orfandade como mãe temia, +Para o avô cruel assim dizia: + +126 +--"Se já nas brutas feras, cuja mente +Natura fez cruel de nascimento, +E nas aves agrestes, que somente +Nas rapinas aéreas têm o intento, +Com pequenas crianças viu a gente +Terem tão piedoso sentimento, +Como coa mãe de Nino já mostraram, +E colos irmãos que Roma edificaram; + +127 +--"Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito +(Se de humano é matar uma donzela +Fraca e sem força, só por ter sujeito +O coração a quem soube vencê-la) +A estas criancinhas tem respeito, +Pois o não tens à morte escura dela; +Mova-te a piedade sua e minha, +Pois te não move a culpa que não tinha. + +128 +--"E se, vencendo a Maura resistência, +A morte sabes dar com fogo e ferro, +Sabe também dar vicia com clemência +A quem para perdê-la não fez erro. +Mas se to assim merece esta inocência, +Põe-me em perpétuo e mísero desterro, +Na Cítia f ria, ou lá na Líbia ardente, +Onde em lágrimas viva eternamente. + +129 +"Põe-me onde se use toda a feridade, +Entre leões e tigres, e verei +Se neles achar posso a piedade +Que entre peitos humanos não achei: +Ali com o amor intrínseco e vontade +Naquele por quem morro, criarei +Estas relíquias suas que aqui viste, +Que refrigério sejam da mãe triste."-- + +130 +--Morte de Inês de Castro +"Queria perdoar-lhe o Rei benino, +Movido das palavras que o magoam; +Mas o pertinaz povo, e seu destino +(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam. +Arrancam das espadas de aço fino +Os que por bom tal feito ali apregoam. +Contra uma dama, ó peitos carniceiros, +Feros vos amostrais, e cavaleiros? + +131 +"Qual contra a linda moça Policena, +Consolação extrema da mãe velha, +Porque a sombra de Aquiles a condena, +Co'o ferro o duro Pirro se aparelha; +Mas ela os olhos com que o ar serena +(Bem como paciente e mansa ovelha) +Na mísera mãe postos, que endoudece, +Ao duro sacrifício se oferece: + +132 +"Tais contra Inês os brutos matadores +No colo de alabastro, que sustinha +As obras com que Amor matou de amores +Aquele que depois a fez Rainha; +As espadas banhando, e as brancas flores, +Que ela dos olhos seus regadas tinha, +Se encarniçavam, férvidos e irosos, +No futuro castigo não cuidosos. + +133 +"Bem puderas, ó Sol, da vista destes +Teus raios apartar aquele dia, +Como da seva mesa de Tiestes, +Quando os filhos por mão de Atreu comia. +Vós, ó côncavos vales, que pudestes +A voz extrema ouvir da boca fria, +O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, +Por muito grande espaço repetisses! + +134 +"Assim como a bonina, que cortada +Antes do tempo foi, cândida e bela, +Sendo das mãos lascivas maltratada +Da menina que a trouxe na capela, +O cheiro traz perdido e a cor murchada: +Tal está morta a pálida donzela, +Secas do rosto as rosas, e perdida +A branca e viva cor, coa doce vida. + +135 +"As filhas do Mondego a morte escura +Longo tempo chorando memoraram, +E, por memória eterna, em fonte pura +As lágrimas choradas transformaram; +O nome lhe puseram, que inda dura, +Dos amores de Inês que ali passaram. +Vede que fresca fonte rega as flores, +Que lágrimas são a água, e o nome amores. + +136 +"Não correu muito tempo que a vingança +Não visse Pedro das mortais feridas, +Que, em tomando do Reino a governança, +A tomou dos fugidos homicidas. +Do outro Pedro cruíssimo os alcança, +Que ambos, imigos das humanas vidas, +O concerto fizeram, duro e injusto, +Que com Lépido e António fez Augusto. + +137 +"Este, castigador foi rigoroso +De latrocínios, mortes e adultérios: +Fazer nos maus cruezas, fero e iroso, +Eram os seus mais certos refrigérios. +As cidades guardando justiçoso +De todos os soberbos vitupérios, +Mais ladrões castigando à morte deu, +Que o vagabundo Aleides ou Teseu. + +138 +"Do justo e duro Pedro nasce o brando, +(Vede da natureza o desconcerto!) +Remisso, e sem cuidado algum, Fernando, +Que todo o Reino pôs em muito aperto: +Que, vindo o Castelhano devastando +As terras sem defesa, esteve perto +De destruir-se o Reino totalmente; +Que um fraco Rei f az fraca a forte gente. + +139 +"Ou foi castigo claro do pecado +De tirar Lianor a seu marido, +E casar-se com ela, de enlevado +Num falso parecer mal entendido; +Ou foi que o coração sujeito e dado +Ao vício vil, de quem se viu rendido, +Mole se fez e fraco; e bem parece, +Que um baixo amor os fortes enfraquece. + +140 +"Do pecado tiveram sempre a pena +Muitos, que Deus o quis, e permitiu: +Os que foram roubar a bela Helena, +E com Apio também Tarquilio o viu. +Pois por quem David Santo se condena? +Ou quem o Tribo ilustre destruiu +De Benjamim? Bem claro no-lo ensina +Por Sara Faraó, Siquém por Dina. + +141 +"E pois se os peitos fortes enfraquece +Um inconcesso amor desatinado, +Bem no filho de Alcmena se parece, +Quando em Ônfale andava transformado. +De Marco António a faina se escurece +Com ser tanto a Cleopatra afeiçoado. +Tu também, Peno próspero, o sentiste +Depois que uma moça vil na Apúlia viste. + +142 +"Mas quem pode livrar-se por ventura +Dos laços que Amor arma brandamente +Entre as rosas e a neve humana pura, +O ouro e o alabastro transparente? +Quem de uma peregrina formosura, +De um vulto de Medusa propriamente, +Que o coração converte, que tem preso, +Em pedra não, mas em desejo aceso? + +143 +"Quem viu um olhar seguro, um gesto brando, +Uma suave e angélica excelência, +Que em si está sempre as almas transformando, +Que tivesse contra ela resistência? +Desculpado por certo está Fernando, +Para quem tem de amor experiência; +Mas antes, tendo livre a fantasia, +Por muito mais culpado o julgaria. + +Canto Quarto + +1 +"Depois de procelosa tempestade, +Noturna sombra e sibilante vento, +Traz a manhã serena claridade, +Esperança de porto e salvamento; +Aparta o sol a negra escuridade, +Removendo o temor do pensamento: +Assim no Reino forte aconteceu, +Depois que o Rei Fernando faleceu. + +2 +"Porque, se muito os nossos desejaram +Quem os danos e ofensas vá vingando +Naqueles que tão bem se aproveitaram +Do descuido remisso de Fernando, +Depois de pouco tempo o alcançaram, +Joane, sempre ilustre, alevantando +Por Rei, como de Pedro único herdeiro, +(Ainda que bastardo) verdadeiro. + +3 +"Ser isto ordenação dos céus divina, +Por sinais muito claros se mostrou, +Quando em Évora a voz de uma menina, +Ante tempo falando o nomeou; +E como cousa enfim que o Céu destina, +No berço o corpo e a voz alevantou: +--"Portugal! Portugal!" alçando a mão +Disse "pelo Rei novo, Dom João."-- + +4 +"Alteradas então do Reino as gentes +Co'o ódio, que ocupado os peitos tinha, +Absolutas cruezas e evidentes +Faz do povo o furor por onde vinha; +Matando vão amigos e parentes +Do adúltero Conde e da Rainha, +Com quem sua incontinência desonesta +Mais (depois de viúva) manifesta. + +5 +"Mas ele enfim, com causa desonrado, +Diante dela a ferro frio morre, +De outros muitos na morte acompanhado, +Que tudo o fogo erguido queima e corre: +Quem, como Astianás, precipitado, +(Sem lhe valerem ordens) de alta torre, +A quem ordens, nem aras, nem respeito; +Quem nu por ruas, e em pedaços feito. + +6 +"Podem-se pôr em longo esquecimento +As cruezas mortais que Roma viu +Feitas do feroz Mário e do cruento +Sila, quando o contrário lhe fugiu. +Por isso Lianor, que o sentimento +Do morto Conde ao mundo descobriu, +Faz contra Lusitânia vir Castela, +Dizendo ser sua filha herdeira dela. + +7 +"Beatriz era a filha, que casada +Co'o Castelhano está, que o Reino pede, +Por filha de Fernando reputada, +Se a corrompida fama lhe concede. +Com esta voz Castela alevantada, +Dizendo que esta filha ao pai sucede, +Suas forças ajunta para as guerras +De várias regiões e várias terras. + +8 +Vem de toda a província que de um Brigo +(Se foi) já teve o nome derivado; +Das terras que Fernando e que Rodrigo +Ganharam do tirano e Mauro estado. +Não estimam das armas o perigo +Os que cortando vão co'o duro arado +Os campos Lioneses, cuja gente +C'os Mouros foi nas armas excelente. + +9 +"Os Vândalos, na antiga valentia +Ainda confiados, se ajuntavam +Da cabeça de toda Andaluzia, +Que do Guadalquibir as águas lavam. +A nobre Ilha também se apercebia, +Que antigamente os Tírios habitavam, +Trazendo por insígnias verdadeiras +As Hercúleas colunas nas bandeiras. + +10 +"Também vem lá do Reino de Toledo, +Cidade nobre e antiga, a quem cercando +O Tejo em torno vai suave e ledo +Que das serras de Conca vem manando. +A vós outros também não tolhe o medo, +Ó sórdidos Galegos, duro bando, +Que para resistirdes vos armastes, +Aqueles, cujos golpes já provasses. + +11 +"Também movem da guerra as negras fúrias +A gente Biscainha, que carece +De polidas razões, e que as injúrias +Muito mal dos estranhos compadece. +A terra de Guipúscua e das Astúrias, +Que com minas de ferro se enobrece, +Armou dele os soberbos moradores, +Para ajudar na guerra a seus senhores. + +12 +"Joane, a quem do peito o esforço cresce, +Como a Sansão Hebréio da guedelha, +Posto que tudo pouco lhe parece, +Co'os poucos de seu Reino se aparelha; +E não porque conselho lhe falece, +Co'os principais senhores se aconselha, +Mas só por ver das gentes as sentenças: +Que sempre houve entre muitos diferenças. + +13 +"Não falta com razões quem desconcerte +Da opinião de todos, na vontade, +Em quem o esforço antigo se converte +Em desusada e má deslealdade; +Podendo o temor mais, gelado, inerte, +Que a própria e natural fidelidade: +Negam o Rei e a pátria, e, se convém, +Negarão (como Pedro) o Deus que têm. + +14 +"Mas nunca foi que este erro se sentisse +No forte Dom Nuno Alvares; mas antes, +Posto que em seus irmãos tão claro o visse, +Reprovando as vontades inconstantes, +Aquelas duvidosas gentes disse, +Com palavras mais duras que elegantes, +A mão na espada, irado, e não facundo, +Ameaçando a terra, o mar e o mundo: + +15 +--"Como! Da gente ilustre Portuguesa +Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?, +Como! Desta província, que princesa +Foi das gentes na guerra em toda a parte, +Há-de sair quem negue ter defesa? +Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte +De Português, e por nenhum respeito +O próprio Reino queira ver sujeito? + +16 +--"Como! Não seis vós inda os descendentes +Daqueles, que debaixo da bandeira +Do grande Henriques, feros e valentes, +Vencestes esta gente tão guerreira? +Quando tantas bandeiras, tantas gentes +Puseram em fugida, de maneira +Que sete ilustres Condes lhe trouxeram +Presos, afora a presa que tiveram? + +17 +--"Com quem foram contino sopeados +Estes, de quem o estais agora vós, +Por Dinis e seu filho, sublimados, +Senão co'os vossos fortes pais, e avôs? +Pois se com seus descuidos, ou pecados, +Fernando em tal fraqueza assim vos pôs, +Torne-vos vossas forças o Rei novo: +Se é certo que co'o Rei se muda o povo. + +18 +--"Rei tendes tal, que se o valor tiverdes +Igual ao Rei que agora alevantastes, +Desbaratareis tudo o que quiserdes, +Quanto mais a quem já desbaratasses. +E se com isto enfim vos não moverdes +Do penetrante medo que tomastes, +Atai as mãos a vosso vão receio, +Que eu só resistirei ao jugo alheio. + +19 +--"Eu só com meus vassalos, e com esta +(E dizendo isto arranca meia espada) +Defenderei da força dura e infesta +A terra nunca de outrem sojugada. +Em virtude do Rei, da pátria mesta, +Da lealdade já por vós negada, +Vencerei (não só estes adversários) +Mas quantos a meu Rei forem contrários."-- + +20 +Bem como entre os mancebos recolhidos +Em Canúsio, relíquias sós de Canas, +Já para se entregar quase movidos +A fortuna das forças Africanas, +Cornélio moço os faz que, compelidos +Da sua espada, jurem que as Romanas +Armas não deixarão, enquanto a vida +Os não deixar, ou nelas for perdida: + +21 +"Destarte a gente força e esforça Nuno, +Que, com lhe ouvir as últimas razões, +Removem o temor frio, importuno, +Que gelados lhe tinha os corações. +Nos animais cavalgam de Neptuno, +Brandindo e volteando arremessões; +Vão correndo e gritando a boca aberta: +--"Viva o famoso Rei que nos liberta!"-- + +22 +"Das gentes populares, uns aprovam +A guerra com que a pátria se sustinha; +Uns as armas alimpam e renovam, +Que a ferrugem da paz gastadas tinha; +Capacetes estofam, peitos provam, +Arma-se cada um como convinha; +Outros fazem vestidos de mil cores, +Com letras e tenções de seus amores. + +23 +"Com toda esta lustrosa companhia +Joane forte sai da fresca Abrantes, +Abrantes, que também da fonte fria +Do Tejo logra as águas abundantes. +Os primeiros armígeros regia +Quem para reger era os mui possantes +Orientais exércitos, sem conto, +Com que passava Xerxes o Helesponto. + +24 +"Dom Nuno Alvares digo, verdadeiro +Açoute de soberbos Castelhanos +Como já o fero Huno o foi primeiro +Para Franceses, para Italianos. +Outro também famoso cavaleiro, +Que a ala direita tem dos Lusitanos, +Apto para mandá-los, e regê-los, +Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos. + +25 +"E da outra ala, que a esta corresponde, +Antão Vasques de Almada é capitão, +Que depois foi de Abranches nobre Conde, +Das gentes vai regendo a sestra mão. +Logo na retaguarda não se esconde +Das quinas e castelos o pendão, +Com Joane, Rei forte em toda parte, +Que escurecendo o preço vai de Alarte. + +26 +"Estavam pelos muros, temerosas, +E de um alegre medo quase frias, +Rezando as mães, irmãs, damas e esposas, +Prometendo jejuns e romarias. +Já chegam as esquadras belicosas +Defronte das amigas companhias, +Que com grita grandíssima os recebem, +E todas grande dúvida concebem. + +27 +"Respondem as trombetas mensageiras, +Pífaros sibilantes e atambores; +Alférezes volteam as bandeiras, +Que variadas são de muitas cores. +Era no seco tempo, que nas eiras +Ceres o fruto deixa aos lavradores, +Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto, +Baco das uvas tira o doce mosto. + +28 +"Deu sinal a trombeta Castelhana, +Horrendo, fero, ingente e temeroso; +Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana +Atrás tornou as ondas de medroso; +Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana; +Correu ao mar o Tejo duvidoso; +E as mães, que o som terríbil escutaram, +Aos peitos os filhinhos apertaram. + +29 +"Quantos rostos ali se vêem sem cor, +Que ao coração acode o sangue amigo! +Que, nos perigos grandes, o temor +É maior muitas vezes que o perigo; +E se o não é, parece-o; que o furor +De ofender ou vencer o duro amigo +Faz não sentir que é perda grande e rara, +Dos membros corporais, da vida cara. + +30 +"Começa-se a travar a incerta guerra; +De ambas partes se move a primeira ala; +Uns leva a defensão da própria terra, +Outros as esperanças de ganhá-la; +Logo o grande Pereira, em quem se encerra +Todo o valor, primeiro se assinala: +Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia +Dos que a tanto desejam, sendo alheia. + +31 +"Já pelo espesso ar os estridentes +Farpões, setas e vários tiros voam; +Debaixo dos pés duros dos ardentes +Cavalos treme a terra, os vales soam; +Espedaçam-se as lanças; e as frequentes +Quedas coas duras armas, tudo atroam; +Recrescem os amigos sobre a pouca +Gente do fero Nuno, que os apouca. + +32 +"Eis ali seus irmãos contra ele vão, +(Caso feio e cruel!) mas não se espanta, +Que menos é querer matar o irmão, +Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta: +Destes arrenegados muitos são +No primeiro esquadrão, que se adianta +Contra irmãos e parentes (caso estranho!) +Quais nas guerras civis de Júlio e Magno. + +33 +"Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano, +Catilina, e vós outros dos antigos, +Que contra vossas pátrias, com profano +Coração, vos fizestes inimigos, +Se lá no reino escuro de Sumano +Receberdes gravíssimos castigos, +Dizei-lhe que também dos Portugueses +Alguns tredores houve algumas vezes. + +34 +"Rompem-se aqui dos nossos os primeiros, +Tantos dos inimigos a eles vão! +Está ali Nuno, qual pelos outeiros +De Ceita está o fortíssimo leão, +Que cercado se vê dos cavaleiros +Que os campos vão correr de Tetuão: +Perseguem-no com as lanças, e ele iroso, +Torvado um pouco está, mas não medroso. + +35 +"Com torva vista os vê, mas a natura +Ferina e a ira não lhe compadecem +Que as costas dê, mas antes na espessura +Das lanças se arremessa, que recrescem. +Tal está o cavaleiro, que a verdura +Tinge co'o sangue alheio; ali perecem +Alguns dos seus, que o ânimo valente +Perde a virtude contra tanta gente. + +36 +"Sentiu Joane a afronta que passava +Nuno, que, como sábio capitão, +Tudo corria e via, e a todos dava, +Com presença e palavras, coração. +Qual parida leoa, fera e brava, +Que os filhos que no ninho sós estão, +Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara, +O pastor de Massília lhos furtara; + +37 +"Corre raivosa, e freme, e com bramidos +Os montes Sete Irmãos atroa e abala: +Tal Joane, com outros escolhidos +Dos seus, correndo acode à primeira ala: +-"Ó fortes companheiros, ó subidos +Cavaleiros, a quem nenhum se iguala, +Defendei vossas terras, que a esperança +Da liberdade está na vossa lança. + +38 +-"Vedes-me aqui, Rei vosso, e companheiro, +Que entre as lanças, e setas, e os arneses +Dos inimigos corro e vou primeiro: +Pelejai, verdadeiros Portugueses!"-- +Isto disse o magnânimo guerreiro, +E, sopesando a lança quatro vezes, +Com força tira; e, deste único tiro, +Muitos lançaram o último suspiro. + +39 +"Porque eis os seus acesos novamente +Duma nobre vergonha e honroso fogo, +Sobre qual mais com ânimo valente +Perigos vencerá do Márcio jogo, +Porfiam: tinge o ferro o sangue ardente; +Rompem malhas primeiro, e peitos logo: +Assim recebem junto e dão feridas, +Como a quem já não dói perder as vidas. + +40 +"A muitos mandam ver o Estígio lago, +Em cujo corpo a morte e o ferro entrava: +O Mestre morre ali de Santiago, +Que fortíssimamente pelejava; +Morre também, fazendo grande estrago, +Outro Mestre cruel de Calatrava; +Os Pereiras também arrenegados +Morrem, arrenegando o Céu e os fados. + +41 +"Muitos também do vulgo vil sem nome +Vão, e também dos nobres, ao profundo, +Onde o trifauce Cão perpétua fome +Tem das almas que passam deste mundo. +E porque mais aqui se amanse e dome +A soberba do amigo furibundo, +A sublime bandeira Castelhana +Foi derribada aos pés da Lusitana. + +42 +"Aqui a fera batalha se encruece +Com mortes, gritos, sangue e cutiladas; +A multidão da gente que perece +Tem as flores da própria cor mudadas; +Já as costas dão e as vidas; já falece +O furor e sobejam as lançadas; +Já de Castela o Rei desbaratado +Se vê, e de seu propósito mudado. + +43 +"O campo vai deixando ao vencedor, +Contente de lhe não deixar a vida. +Seguem-no os que ficaram, e o temor +Lhe dá, não pés, mas asas à fugida. +Encobrem no profundo peito a dor +Da morte, da fazenda despendida, +Da mágoa, da desonra, e triste nojo +De ver outrem triunfar de seu despojo. + +44 +"Alguns vão maldizendo e blasfemando +Do primeiro que guerra fez no mundo; +Outros a sede dura vão culpando +Do peito cobiçoso e sitibundo, +Que, por tomar o alheio, o miserando +Povo aventura às penas do profundo, +Deixando tantas mães, tantas esposas +Sem filhos, sem maridos, desditosas. + +45 +"O vencedor Joane esteve os dias +Costumados no campo, em grande glória; +Com ofertas depois, e romarias, +As graças deu a quem lhe deu vitória. +Mas Nuno, que não quer por outras vias +Entre as gentes deixar de si memória +Senão por armas sempre soberanas, +Para as terras se passa Transtaganas. + +46 +"Ajuda-o seu destino de maneira +Que fez igual o efeito ao pensamento, +Porque a terra dos Vândalos fronteira +Lhe concede o despojo e o vencimento. +Já de Sevilha a Bética bandeira +E de vários senhores num momento +Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa +Obrigados da força Portuguesa. + +47 +"Destas e outras vitórias longamente +Eram os Castelhanos oprimidos, +Quando a paz, desejada já da gente, +Deram os vencedores aos vencidos, +Depois que quis o Padre onipotente +Dar os Reis inimigos por maridos +As duas ilustríssimas Inglesas, +Gentis, formosas, ínclitas princesas. + +48 +"Não sofre o peito forte, usado à guerra, +Não ter amigo já a quem faça dano; +E assim não tendo a quem vencer na terra, +Vai cometer as ondas do Oceano. +Este é o primeiro Rei que se desterra +Da Pátria, por fazer que o Africano +Conheça, pelas armas, quanto excede +A lei de Cristo à lei de Mafamede. + +49 +"Eis mil nadantes aves pelo argento +Da furiosa Tethys inquieta +Abrindo as pandas asas vão ao vento, +Para onde Alcides pôs a extrema meta. +O monte Abila e o nobre fundamento +De Ceita toma, e o torpe Mahometa +Deita fora, e segura toda Espanha +Da Juliana, má, e desleal manha. + +50 +"Não consentiu a morte tantos anos +Que de Herói tão ditoso se lograsse +Portugal, mas os coros soberanos +Do Céu supremo quis que povoasse. +Mas para defensão dos Lusitanos +Deixou, quem o levou quem governasse, +E aumentasse a terra mais que dantes, +Inclita geração, altos Infantes. + +51 +"Não foi do Rei Duarte tão ditoso +O tempo que ficou na suma alteza, +Que assim vai alternando o tempo iroso +O bem co'o mal, o gosto coa tristeza. +Quem viu sempre um estado deleitoso? +Ou quem viu em fortuna haver firmeza? +Pois inda neste Reino e neste Rei +Não ousou ela tanto desta lei. + +52 +"Viu ser cativo o santo irmão Fernando, +Que a tão altas empresas aspirava, +Que, por salvar o povo miserando +Cercado, ao Sarraceno se entregava. +Só por amor da pátria está passando +A vida de senhora feita escrava, +Por não se dar por ele a forte Ceita: +Mais o público bem que o seu respeita. + +53 +"Codro, porque o inimigo não vencesse, +Deixou antes vencer da morte a vida; +Régulo, porque a pátria não perdesse, +Quis mais a liberdade ver perdida. +Este, porque se Espanha não temesse, +Ao cativeiro eterno se convida: +Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto, +Nem os Décios leais fizeram tanto. + +54 +"Mas Afonso, do Reino único herdeiro, +Nome em armas ditoso em nossa Hespéria, +Que a soberba do bárbaro fronteira +Tornou em baixa e humílima miséria, +Fora por certo invicto cavaleiro, +Se não quisera ir ver a terra Ibéria. +Mas África dirá ser impossíbil +Poder ninguém vencer o Rei terríbil. + +55 +"Este pôde colher as maçãs de ouro, +Que somente o Tiríntio colher pôde: +Do jugo que lhe pôs, o bravo Mouro +A cerviz inda agora não sacode. +Na fronte a palma leva e o verde louro +Das vitórias do Bárbaro, que acode +A defender Alcácer, forte vila, +Tângere populoso e a dura Arzila. + +56 +"Porém elas enfim por força entradas, +Os muros abaixaram de diamante +As Portuguesas forças, costumadas +A derribarem quanto acham diante. +Maravilhas em armas estremadas, +E de escritura dinas elegante, +Fizeram cavaleiros nesta empresa, +Mais afinando a fama Portuguesa. + +57 +"Porém depois, tocado de ambição +E glória de mandar, amara e bela, +Vai cometer Fernando de Aragão, +Sobre o potente Reino de Castela. +Ajunta-se a inimiga multidão +Das soberbas e várias gentes dela, +Desde Cádis ao alto Pireneu, +Que tudo ao Rei Fernando obedeceu. + +58 +"Não quis ficar nos Reinos ocioso +O mancebo Joane, e logo ordena +De ir ajudar o pai ambicioso, +Que então lhe foi ajuda não pequena. +Saiu-se enfim do trance perigoso +Com fronte não torvada, mas serena, +Desbaratado o pai sanguinolento +Mas ficou duvidoso o vencimento. + +59 +"Porque o filho sublime e soberano, +Gentil, forte, animoso cavaleiro, +Nos contrários fazendo imenso dano, +Todo um dia ficou no campo inteiro. +Desta arte foi vencido Octaviano, +E António vencedor, sem companheiro, +Quando daqueles que César mataram +Nos Filípicos campos se vingaram. + +60 +"Porém depois que a escura noite eterna +Afonso aposentou no Céu sereno, +O Príncipe, que o Reino então governa, +Foi Joane segundo e Rei trezeno. +Este, por haver fama sempiterna, +Mais do que tentar pode homem terreno +Tentou, que foi buscar da roxa Aurora +Os términos, que eu vou buscando agora. + +61 +"Manda seus mensageiros, que passaram +Espanha, França, Itália celebrada, +E lá no ilustre porto se embarcaram +Onde já foi Parténope enterra: +Nápoles, onde os Xados se mostraram, +Fazendo-a a várias gentes subjugada, +Pola ilustrar no fim de tantos anos +Co'o senhorio de ínclitos Hispanos. + +62 +"Pelo mar alto Sículo navegam; +Vão-se às praias de Rodes arenosas; +E dali às ribeiras altas chegam, +Que com morte de Magno são famosas; +Vão a Mênfis e às terras, que se regam +Das enchentes Nilóticas undosas; +Sobem à Etiópia, sobre Egito, +Que de Cristo lá guarda o santo rito. + +63 +"Passam também as ondas Eritreias, +Que o povo de Israel sem nau passou; +Ficam-lhe atrás as serras Nabateias, +Que o filho de Ismael co'o nome ornou. +As costas odoríferas Sabeias, +Que a mãe do belo Adónis tanto honrou, +Cercam, com toda a Arábia descoberta +Feliz, deixando a Pétrea e a Deserta. + +64 +"Entram no estreito Pérsico, onde dura +Da confusa Babel inda a memória; +Ali co'o Tigre o Eufrates se mistura, +Que as fontes onde nascem tem por glória. +Dali vão em demanda da água pura, +Que causa inda será de larga história, +Do Indo, pelas ondas do Oceano, +Onde não se atreveu passar Trajano. + +65 +"Viram gentes incógnitas e estranhas +Da Índia, da Carmânia e Gedrosia, +Vendo vários costumes, várias manhas, +Que cada região produze e cria. +Mas de vias tão ásperas, tamanhas, +Tornar-se facilmente não podia: +Lá morreram enfim, e lá ficaram, +Que à desejada pátria não tornaram. + +66 +"Parece que guardava o claro Céu +A Manuel, e seus merecimentos, +Esta empresa tão árdua, que o moveu +A subidos e ilustres movimentos: +Manuel, que a Joane sucedeu +No Reino e nos altivos pensamentos, +Logo, corno tornou do Reino o cargo, +Tomou mais a conquista do mar largo. + +67 +"O qual, como do nobre pensamento +Daquela obrigação, que lhe ficara +De seus antepassados, (cujo intento +Foi sempre acrescentar a terra cara) +Não deixasse de ser um só momento +Conquistado: no tempo que a luz clara +Foge, e as estrelas nítidas, que saem, +A repouso convidam quando caem, + +68 +"Estando já deitado no áureo leito, +Onde imaginações mais certas são? +Revolvendo contino no conceito +Seu ofício e sangue a obrigação, +Os olhos lhe ocupou o sono aceito, +Sem lhe desocupar o coração; +Porque, tanto que lasso se adormece, +Morfeu em várias formas lhe aparece. + +69 +"Aqui se lhe apresenta que subia +Tão alto, que tocava a prima Esfera, +Donde diante vários mundos via, +Nações de muita gente estranha e fera; +E lá bem junto donde nasce o dia, +Depois que os olhos longos estendera, +Viu de antigos, longínquos e altos montes +Nascerem duas claras e altas fontes. + +70 +"Aves agrestes, feras e alimárias, +Pelo monte selvático habitavam; +Mil árvores silvestres e ervas várias +O passo e o tracto às gentes atalhavam. +Estas duras montanhas, adversárias +De mais conversação, por si mostravam +Que, desque Adão pecou aos nossos anos, +Não as romperam nunca pés humanos. + +71 +"Das águas se lhe antolha que saíam, +Para ele os largos passos inclinando, +Dois homens, que mui velhos pareciam, +De aspecto, inda que agreste, venerando: +Das pontas dos cabelos lhe caíam +Gotas, que o corpo vão banhando; +A cor da pele baça e denegrida, +A barba hirsuta, intonsa, mas comprida. + +72 +"Dambos de dois a fronte coroada +Ramos não conhecidos e ervas tinha; +Um deles a presença traz cansada, +Como quem de mais longe ali caminha. +E assim a água, com ímpeto alterada, +Parecia que doutra parte vinha, +Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa +Vai buscar os abraços de Aretusa. + +73 +"Este, que era o mais grave na pessoa, +Destarte para o Rei de longe brada: +--"Ó tu, a cujos reinos e coroa +Grande parte do mundo está guardada, +Nós outros, cuja fama tanto voa, +Cuja cerviz bem nunca foi domada, +Te avisamos que é tempo que já mandes +A receber de nós tributos grandes. + +74 +--"Eu sou o ilustre Ganges, que na terra +Celeste tenho o berço verdadeiro; +Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra +Que vês, seu nascimento tem primeiro. +Custar-te-emos contudo dura guerra; +Mas insistindo tu, por derradeiro, +Com não vistas vitórias, sem receio, +A quantas gentes vês, porás o freio."-- + +75 +"Não disse mais o rio ilustre e santo, +Mas ambos desaparecem num momento. +Acorda Emanuel c'um novo espanto +E grande alteração de pensamento. +Estendeu nisto Febo o claro manto +Pelo escuro Hemisfério sonolento; +Veio a manhã no céu pintando as cores +De pudibunda rosa e roxas flores. + +76 +"Chama o Rei os senhores a conselho, +E propõe-lhe as figuras da visão; +As palavras lhe diz do santo velho, +Que a todos foram grande admiração. +Determinam o náutico aparelho, +Para que com sublime coração +Vá a gente que mandar cortando os mares +A buscar novos climas, novos ares. + +77 +"Eu, que bem mal cuidava que em efeito +Se pusesse o que o peito me pedia, +Que sempre grandes cousas deste jeito +Pressago o coração me prometia, +Não sei por que razão, por que respeito, +Ou por que bom sinal que em mi se via, +Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave +Deste cometimento grande e grave. + +78 +"E com rogo o palavras amorosas, +Que é um mando nos Reis, que a mais obriga, +Me disse:--"As cousas árduas e lustrosas +Se alcançam com trabalho e com fadiga; +Faz as pessoas altas e famosas +A vida que se perde e que periga; +Que, quando ao medo infame não se rende, +Então, se menos dura, mais se estende. + +79 +--"Eu vos tenho entre todos escolhido +Para uma empresa, qual a vós se deve, +Trabalho ilustre, duro e esclarecido, +O que eu sei que por mi vos será leve."-- +Não sofri mais, mas logo:--"Ó Rei subido, +Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve, +É tão pouco por vós, que mais me pena +Ser esta vida cousa tão pequena. + +80 +--"Imaginai tamanhas aventuras, +Quais Euristeu a Alcides inventava, +O leão Cleoneu, Harpias duras, +O porco de Erimanto, a Hidra brava, +Descer enfim às sombras vãs e escuras +Onde os campos de Dite a Estige lava; +Porque a maior perigo, a mor afronta, +Por vós, ó Rei, o espírito e a carne é pronta." + +81 +"Com mercês sumptuosas me agradece +E com razões me louva esta vontade; +Que a virtude louvada vive e cresce, +E o louvor altos casos persuade. +A acompanhar-me logo se oferece, +Obrigado d'amor e d'amizade, +Não menos cobiçoso de honra e fama, +O caro meu irmão Paulo da Gama. + +82 +"Mais se me ajunta Nicolau Coelho, +De trabalhos mui grande sofredor; +Ambos são de valia e de conselho, +De experiência em armas e furor. +Já de manceba gente me aparelho, +Em que cresce o desejo do valor; +Todos de grande esforço; e assim parece +Quem a tamanhas cousas se oferece. + +83 +"Foram de Emanuel remunerados, +Porque com mais amor se apercebessem, +E com palavras altas animados +Para quantos trabalhos sucedessem. +Assim foram os Mínias ajuntados, +Para que o Véu dourado combatessem, +Na fatídica Nau, que ousou primeira +Tentar o mar Euxínio, aventureira. + +84 +"E já no porto da ínclita Ulisseia +C'um alvoroço nobre, e é um desejo, +(Onde o licor mistura e branca areia +Co'o salgado Neptuno o doce Tejo) +As naus prestes estão; e não refreia +Temor nenhum o juvenil despejo, +Porque a gente marítima e a de Marte +Estão para seguir-me a toda parte. + +85 +"Pelas praias vestidos os soldados +De várias cores vêm e várias artes, +E não menos de esforço aparelhados +Para buscar do inundo novas partes. +Nas fortes naus os ventos sossegados +Ondeam os aéreos estandartes; +Elas prometem, vendo os mares largos, +De ser no Olimpo estrelas como a de Argos. + +86 +"Depois de aparelhados desta sorte +De quanto tal viagem pede e manda, +Aparelhamos a alma para a morte, +Que sempre aos nautas ante os olhos anda. +Para o sumo Poder que a etérea corte +Sustenta só coa vista veneranda, +Imploramos favor que nos guiasse, +E que nossos começos aspirasse. + +87 +"Partimo-nos assim do santo templo +Que nas praias do mar está assentado, +Que o nome tem da terra, para exemplo, +Donde Deus foi em carne ao mundo dado. +Certifico-te, ó Rei, que se contemplo +Como fui destas praias apartado, +Cheio dentro de dúvida e receio, +Que apenas nos meus olhos ponho o freio. + +88 +"A gente da cidade aquele dia, +(Uns por amigos, outros por parentes, +Outros por ver somente) concorria, +Saudosos na vista e descontentes. +E nós coa virtuosa companhia +De mil Religiosos diligentes, +Em procissão solene a Deus orando, +Para os batéis viemos caminhando. + +89 +"Em tão longo caminho e duvidoso +Por perdidos as gentes nos julgavam; +As mulheres c'um choro piedoso, +Os homens com suspiros que arrancavam; +Mães, esposas, irmãs, que o temeroso +Amor mais desconfia, acrescentavam +A desesperarão, e frio medo +De já nos não tornar a ver tão cedo. + +90 +"Qual vai dizendo:--"Ó filho, a quem eu tinha +Só para refrigério, e doce amparo +Desta cansada já velhice minha, +Que em choro acabará, penoso e amaro, +Por que me deixas, mísera e mesquinha? +Por que de mim te vás, ó filho caro, +A fazer o funéreo enterramento, +Onde sejas de peixes mantimento!"-- + +91 +"Qual em cabelo:--"Ó doce e amado esposo, +Sem quem não quis Amor que viver possa, +Por que is aventurar ao mar iroso +Essa vida que é minha, e não é vossa? +Como por um caminho duvidoso +Vos esquece a afeição tão doce nossa? +Nosso amor, nosso vão contentamento +Quereis que com as velas leve o vento?"-- + +92 +"Nestas e outras palavras que diziam +De amor e de piedosa humanidade, +Os velhos e os meninos os seguiam, +Em quem menos esforço põe a idade. +Os montes de mais perto respondiam, +Quase movidos de alta piedade; +A branca areia as lágrimas banhavam, +Que em multidão com elas se igualavam. + +93 +"Nós outros sem a vista alevantarmos +Nem a mãe, nem a esposa, neste estado, +Por nos não magoarmos, ou mudarmos +Do propósito firme começado, +Determinei de assim nos embarcarmos +Sem o despedimento costumado, +Que, posto que é de amor usança boa, +A quem se aparta, ou fica, mais magoa. + +94 +"Mas um velho d'aspeito venerando, +Que ficava nas praias, entre a gente, +Postos em nós os olhos, meneando +Três vezes a cabeça, descontente, +A voz pesada um pouco alevantando, +Que nós no mar ouvimos claramente, +C'um saber só de experiências feito, +Tais palavras tirou do experto peito: + +95 +--"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça +Desta vaidade, a quem chamamos Fama! +Ó fraudulento gosto, que se atiça +C'uma aura popular, que honra se chama! +Que castigo tamanho e que justiça +Fazes no peito vão que muito te ama! +Que mortes, que perigos, que tormentas, +Que crueldades neles experimentas! + +96 +--"Dura inquietação d'alma e da vida, +Fonte de desamparos e adultérios, +Sagaz consumidora conhecida +De fazendas, de reinos e de impérios: +Chamam-te ilustre, chamam-te subida, +Sendo dina de infames vitupérios; +Chamam-te Fama e Glória soberana, +Nomes com quem se o povo néscio engana! + +97 +--"A que novos desastres determinas +De levar estes reinos e esta gente? +Que perigos, que mortes lhe destinas +Debaixo dalgum nome preminente? +Que promessas de reinos, e de minas +D'ouro, que lhe farás tão facilmente? +Que famas lhe prometerás? que histórias? +Que triunfos, que palmas, que vitórias? + +98 +--"Mas ó tu, geração daquele insano, +Cujo pecado e desobediência, +Não somente do reino soberano +Te pôs neste desterro e triste ausência, +Mas inda doutro estado mais que humano +Da quieta e da simples inocência, +Idade d'ouro, tanto te privou, +Que na de ferro e d'armas te deitou: + +99 +--"Já que nesta gostosa vaidade +Tanto enlevas a leve fantasia, +Já que à bruta crueza e feridade +Puseste nome esforço e valentia, +Já que prezas em tanta quantidades +O desprezo da vida, que devia +De ser sempre estimada, pois que já +Temeu tanto perdê-la quem a dá: + +100 +--"Não tens junto contigo o Ismaelita, +Com quem sempre terás guerras sobejas? +Não segue ele do Arábio a lei maldita, +Se tu pela de Cristo só pelejas? +Não tem cidades mil, terra infinita, +Se terras e riqueza mais desejas? +Não é ele por armas esforçado, +Se queres por vitórias ser louvado? + +101 +--"Deixas criar às portas o inimigo, +Por ires buscar outro de tão longe, +Por quem se despovoe o Reino antigo, +Se enfraqueça e se vá deitando a longe? +Buscas o incerto e incógnito perigo +Por que a fama te exalte e te lisonge, +Chamando-te senhor, com larga cópia, +Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia? + +102 +--"Ó maldito o primeiro que no mundo +Nas ondas velas pôs em seco lenho, +Dino da eterna pena do profundo, +Se é justa a justa lei, que sigo e tenho! +Nunca juízo algum alto e profundo, +Nem cítara sonora, ou vivo engenho, +Te dê por isso fama nem memória, +Mas contigo se acabe o nome e glória. + +103 +--"Trouxe o filho de Jápeto do Céu +O fogo que ajuntou ao peito humano, +Fogo que o mundo em armas acendeu +Em mortes, em desonras (grande engano). +Quanto melhor nos fora, Prometeu, +E quanto para o mundo menos dano, +Que a tua estátua ilustre não tivera +Fogo de altos desejos, que a movera! + +104 +--"Não cometera o moço miserando +O carro alto do pai, nem o ar vazio +O grande Arquiteto co'o filho, dando +Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio. +Nenhum cometimento alto e nefando, +Por fogo, ferro, água, calma e frio, +Deixa intentado a humana geração. +Mísera sorte, estranha condição!"-- + +Canto Quinto + +1 +"Estas sentenças tais o velho honrado +Vociferando estava, quando abrimos +As asas ao sereno e sossegado +Vento, e do porto amado nos partimos. +E, como é já no mar costume usado, +A vela desfraldando, o céu ferimos, +Dizendo: "Boa viagem", logo o vento +Nos troncos fez o usado movimento. + +2 +"Entrava neste tempo o eterno lume +No animal Nemeio truculento, +E o mundo, que com tempo se consume, +Na sexta idade andava enfermo e lento: +Nela vê, como tinha por costume, +Cursos do sol quatorze vezes cento, +Com mais noventa e sete, em que corria, +Quando no mar a armada se estendia. + +3 +"Já a vista pouco e pouco se desterra +Daqueles pátrios montes que ficavam; +Ficava o caro Tejo, e a fresca serra +De Sintra, e nela os olhos se alongavam. +Ficava-nos também na amada terra +O coração, que as mágoas lá deixavam; +E já depois que toda se escondeu, +Não vimos mais enfim que mar e céu. + +4 +"Assim fomos abrindo aqueles mares, +Que geração alguma não abriu, +As novas ilhas vendo e os novos ares, +Que o generoso Henrique descobriu; +De Mauritânia os montes e lugares, +Terra que Anteu num tempo possuiu, +Deixando à mão esquerda; que à direita +Não há certeza doutra, mas suspeita. + +5 +"Passamos a grande Ilha da Madeira, +Que do muito arvoredo assim se chama, +Das que nós povoamos, a primeira, +Mais célebre por nome que por fama: +Mas nem por ser do mundo a derradeira +Se lhe aventajam quantas Vénus ama, +Antes, sendo esta sua, se esquecera +De Cipro, Gnido, Pafos e Citera. + +6 +"Deixamos de Massília a estéril costa, +Onde seu gado os Azenegues pastam, +Gente que as frescas águas nunca gosta +Nem as ervas do campo bem lhe abastam: +A terra a nenhum fruto enfim disposta, +Onde as aves no ventre o ferro gastam, +Padecendo de tudo extrema inópia, +Que aparta a Barbaria de Etiópia. + +7 +"Passamos o limite aonde chega +O Sol, que para o Norte os carros guia, +Onde jazem os povos a quem nega +O filho de Climene a cor do dia. +Aqui gentes estranhas lava e rega +Do negro Sanagá a corrente fria, +Onde o Cabo Arsinário o nome perde, +Chamando-se dos nossos Cabo Verde. + +8 +"Passadas tendo já as Canárias ilhas, +Que tiveram por nome Fortunadas, +Entramos, navegando, pelas filhas +Do velho Hespério, Hespérides chamadas; +Terras por onde novas maravilhas +Andaram vendo já nossas armadas. +Ali tomamos porto com bom vento, +Por tomarmos da terra mantimento. + +9 +"Aquela ilha apartamos, que tomou +O nome do guerreiro Santiago, +Santo que os Espanhóis tanto ajudou +A fazerem nos Mouros bravo estrago. +Daqui, tanto que Bóreas nos ventou, +Tornamos a cortar o imenso lago +Do salgado Oceano, e assim deixamos +A terra onde o refresco doce achamos. + +10 +"Por aqui rodeando a larga parte +De África, que ficava ao Oriente, +A província Jalofo, que reparte +Por diversas nações a negra gente; +A mui grande Mandinga, por cuja arte +Logramos o metal rico e luzente, +Que do curvo Gambeia as águas bebe, +As quais o largo Atlântico recebe. + +11 +"As Dórcadas passamos, povoadas +Das Irmãs, que outro tempo ali viviam, +Que de vista total sendo privadas, +Todas três dum só olho se serviam. +Tu só, tu, cujas tranças encrespadas +Netuno lá nas águas acendiam, +Tornada já de todas a mais feia, +De bívoras encheste a ardente areia. + +12 +"Sempre enfim para o Austro a aguda proa +No grandíssimo gólfão nos metemos, +Deixando a serra aspérrima Leoa, +Co'o cabo a quem das Palmas nome demos. +O grande rio, onde batendo soa +O mar nas praias notas que ali temos, +Ficou, com a Ilha ilustre que tomou +O nome dum que o lado a Deus tocou. + +13 +"Ali o mui grande reino está de Congo, +Por nós já convertido à fé de Cristo, +Por onde o Zaire passa, claro e longo, +Rio pelos antigos nunca visto. +Por este largo mar enfim me alongo +Do conhecido pólo de Calisto, +Tendo o término ardente já passado, +Onde o meio do mundo é limitado. + +14 +"Já descoberto tínhamos diante, +Lá no novo Hemisfério, nova estrela, +Não vista de outra gente, que ignorante +Alguns tempos esteve incerta dela. +Vimos a parte menos rutilante, +E, por falta de estrelas, menos bela, +Do Pólo fixo, onde ainda se não sabe +Que outra terra comece, ou mar acabe. + +15 +"Assim passando aquelas regiões +Por onde duas vezes passa Apolo, +Dois invernos fazendo e dois verões, +Enquanto corre dum ao outro Pólo, +Por calmas, por tormentas e opressões, +Que sempre f az no mar o irado Eolo, +Vimos as Ursas, apesar de Juno, +Banharem-se nas águas de Netuno. + +16 +"Contar-te longamente as perigosas +Coisas do mar, que os homens não entendem: +Súbitas trovoadas temerosas, +Relâmpados que o ar em fogo acendem, +Negros chuveiros, noites tenebrosas, +Bramidos de trovões que o mundo fendem, +Não menos é trabalho, que grande erro, +Ainda que tivesse a voz de ferro. + +17 +"Os casos vi que os rudos marinheiros, +Que têm por mestra a longa experiência, +Contam por certos sempre e verdadeiros, +Julgando as cousas só pela aparência, +E que os que têm juízos mais inteiros, +Que só por puro engenho e por ciência, +Vêem do mundo os segredos escondidos, +Julgam por falsos, ou mal entendidos. + +18 +"Vi, claramente visto, o lume vivo +Que a marítima gente tem por santo +Em tempo de tormenta e vento esquivo, +De tempestade escura e triste pranto. +Não menos foi a todos excessivo +Milagre, e coisa certo de alto espanto, +Ver as nuvens do mar com largo cano +Sorver as altas águas do Oceano. + +19 +"Eu o vi certamente (e não presumo +Que a vista me enganava) levantar-se +No ar um vaporzinho e subtil fumo, +E, do vento trazido, rodear-se: +Daqui levado um cano ao pólo sumo +Se via, tão delgado, que enxergar-se +Dos olhos facilmente não podia: +Da matéria das nuvens parecia. + +20 +"Ia-se pouco e pouco acrescentando +E mais que um largo masto se engrossava; +Aqui se estreita, aqui se alarga, quando +Os golpes grandes de água em si chupava; +Estava-se coas ondas ondeando: +Em cima dele uma nuvem se espessava, +Fazendo-se maior, mais carregada +Co'o cargo grande d'água em si tomada. + +21 +"Qual roxa sanguessuga se veria +Nos beiços da alimária (que imprudente, +Bebendo a recolheu na fonte fria) +Fartar co'o sangue alheio a sede ardente; +Chupando mais e mais se engrossa e cria, +Ali se enche e se alarga grandemente: +Tal a grande coluna, enchendo, aumenta +A si, e a nuvem negra que sustenta. + +22 +"Mas depois que de todo se fartou, +O pó que tem no mar a si recolhe, +E pelo céu chovendo enfim voou, +Porque coa água a jacente água molhe: +As ondas torna as ondas que tomou, +Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe. +Vejam agora os sábios na escritura, +Que segredos são estes de Natura. + +23 +"Se os antigos filósofos, que andaram +Tantas terras, por ver segredos delas, +As maravilhas que eu passei, passaram, +A tão diversos ventos dando as velas, +Que grandes escrituras que deixaram! +Que influição de signos e de estrelas! +Que estranhezas, que grandes qualidades! +E tudo sem mentir, puras verdades. + +24 +"Mas já o Planeta que no céu primeiro +Habita, cinco vezes apressada, +Agora meio rosto, agora inteiro +Mostrara, enquanto o mar cortava a armada, +Quando da etérea gávea um marinheiro, +Pronto coa vista, "Terra! Terra!" brada. +Salta no bordo alvoroçada a gente +Co'os olhos no horizonte do Oriente. + +25 +"A maneira de nuvens se começam +A descobrir os montes que enxergamos; +As âncoras pesadas se adereçam; +As velas, já chegados, amainamos. +E para que mais certas se conheçam +As partes tão remotas onde estamos, +Pelo novo instrumento do Astrolábio, +Invenção de subtil juízo e sábio, + +26 +"Desembarcamos logo na espaçosa, +Parte, por onde a gente se espalhou, +De ver eousas estranhas desejosa +Da terra que outro povo não pisou; +Porém eu co'os pilotos na arenosa +Praia, por vermos em que parte estou, +Me detenho em tomar do Sol a altura +E compassar a universal pintura. + +27 +"Achamos ter de todo já passado +Do Semicapro peixe a grande meta, +Estando entre ele e o círculo gelado +Austral, parte do mundo mais secreta. +Eis, de meus companheiros rodeado, +Vejo um estranho vir de pele preta, +Que tomaram por força, enquanto apanha +De mel os doces favos na montanha. + +28 +"Torvado vem na vista, como aquele +Que não se vira nunca em tal extremo; +Nem ele entende a nós, nem nós a ele, +Selvagem mais que o bruto Polifemo. +Começo-lhe a mostrar da rica pelo +De Colcos o gentil metal supremo, +A prata fina, a quente especiaria: +A nada disto o bruto se movia. + +29 +"Mando mostrar-lhe peças mais somenos: +Contas de cristalino transparente, +Alguns soantes cascavéis pequenos, +Um barrete vermelho, cor contente. +Vi logo, por sinais e por acenos, +Que com isto se alegra grandemente. +Mando-o soltar com tudo, e assim caminha +Para a povoação que perto tinha. + +30 +"Mas logo ao outro dia, seus parceiros, +Todos nus, e da cor da escura treva, +Descendo pelos ásperos outeiros, +As peças vêm buscar que estoutro leva: +Domésticos já tanto e companheiros +Se nos mostram, que fazem que se atreva +Fernão Veloso a ir ver da terra o trato +E partir-se com eles pelo mato. + +31 +"É Veloso no braço confiado, +E de arrogante crê que vai seguro; +Mas, sendo um grande espaço já passado, +Em que algum bom sinal saber procuro, +Estando, a vista alçada, co'o cuidado +No aventureiro, eis pelo monto duro +Aparece, e, segundo ao mar caminha, +Mais apressado do que fora, vinha. + +32 +"O batel de Coelho foi depressa +Pelo tomar; mas, antes que chegasse, +Um Etíope ousado se arremessa +A ele, por que não se lhe escapasse; +Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa +Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse; +Acudo eu logo, e enquanto o remo aperto, +Se mostra um bando negro descoberto. + +33 +"Da espessa nuvem setas e pedradas +Chovem sobre nós outros sem medida; +E não foram ao vento em vão deitadas, +Que esta perna trouxe eu dali ferida; +Mas nós, como pessoas magoadas, +A resposta lhe demos tão tecida, +Que, em mais que nos barretes, se suspeita +Que a cor vermelha levam desta feita. + +34 +"E sendo já, Veloso em salvamento, +Logo nos recolhemos para a armada, +Vendo a malícia feia e rudo intento +Da gente bestial, bruta e malvada, +De quem nenhum melhor conhecimento +Pudemos ter da índia desejada +Que estarmos ainda muito longe dela; +E assim tornei a dar ao vento a vela. + +35 +"Disse então a Veloso um companheiro +(Começando-se todos a sorrir) +-"Ó lá, Veloso amigo, aquele outeiro +É melhor de descer que de subir." +--"Sim, é, (responde o ousado aventureiro) +Mas quando eu para cá vi tantos vir +Daqueles cães, depressa um pouco vim, +Por me lembrar que estáveis cá sem + +36 +"Contou então que, tanto que passaram +Aquele monte, os negros de quem falo, +Avante mais passar o não deixaram, +Querendo, se não torna, ali matá-lo; +E tornando-se, logo se emboscaram, +Por que, saindo nós para tomá-lo, +Nos pudessem mandar ao reino escuro, +Por nos roubarem mais a seu seguro. + +37 +"Porém já cinco Sóis eram passados +Que dali nos partíramos, cortando +Os mares nunca doutrem navegados, +Prósperamente os ventos assoprando, +Quando uma noite estando descuidados, +Na cortadora proa vigiando, +Uma nuvem que os ares escurece +Sobre nossas cabeças aparece. + +38 +"Tão temerosa vinha e carregada, +Que pôs nos corações um grande medo; +Bramindo o negro mar, de longe brada +Como se desse em vão nalgum rochedo. +--"Ó Potestade, disse, sublimada! +Que ameaço divino, ou que segredo +Este clima e este mar nos apresenta, +Que mor cousa parece que tormenta?"-- + +39 +"Não acabava, quando uma figura +Se nos mostra no ar, robusta e válida, +De disforme e grandíssima estatura, +O rosto carregado, a barba esquálida, +Os olhos encovados, e a postura +Medonha e má, e a cor terrena e pálida, +Cheios de terra e crespos os cabelos, +A boca negra, os dentes amarelos. + +40 +"Tão grande era de membros, que bem posso +Certificar-te, que este era o segundo +De Rodes estranhíssimo Colosso, +Que um dos sete milagres foi do mundo: +Com um tom de voz nos fala horrendo e grosso, +Que pareceu sair do mar profundo: +Arrepiam-se as carnes e o cabelo +A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo. + +41 +"E disse:--"Ó gente ousada, mais que quantas +No mundo cometeram grandes cousas, +Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, +E por trabalhos vãos nunca repousas, +Pois os vedados términos quebrantas, +E navegar meus longos mares ousas, +Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho, +Nunca arados d'estranho ou próprio lenho: + +42 +--"Pois vens ver os segredos escondidos +Da natureza e do úmido elemento, +A nenhum grande humano concedidos +De nobre ou de imortal merecimento, +Ouve os danos de mim, que apercebidos +Estão a teu sobejo atrevimento, +Por todo o largo mar e pela terra, +Que ainda hás de sojugar com dura guerra. + +43 +--"Sabe que quantas naus esta viagem +Que tu fazes, fizerem de atrevidas, +Inimiga terão esta paragem +Com ventos e tormentas desmedidas. +E da primeira armada que passagem +Fizer por estas ondas insofridas, +Eu farei d'improviso tal castigo, +Que seja mor o dano que o perigo. + +44 +--"Aqui espero tomar, se não me engano, +De quem me descobriu, suma vingança. +E não se acabará só nisto o dano +Da vossa pertinace confiança; +Antes em vossas naus vereis cada ano, +Se é verdade o que meu juízo alcança, +Naufrágios, perdições de toda sorte, +Que o menor mal de todos seja a morte. + +45 +--"É do primeiro Ilustre, que a ventura +Com fama alta fizer tocar os Céus, +Serei eterna e nova sepultura, +Por juízos incógnitos de Deus. +Aqui porá da Turca armada dura +Os soberbos e prósperos troféus; +Comigo de seus danos o ameaça +A destruída Quíloa com Mombaça. + +46 +--"Outro também virá de honrada fama, +Liberal, cavaleiro, enamorado, +E consigo trará a formosa dama +Que Amor por grã mercê lhe terá dado. +Triste ventura e negro fado os chama +Neste terreno meu, que duro e irado +Os deixará dum cru naufrágio vivos +Para verem trabalhos excessivos. + +47 +--"Verão morrer com fome os filhos caros, +Em tanto amor gerados e nascidos; +Verão os Cafres ásperos e avaros +Tirar à linda dama seus vestidos; +Os cristalinos membros e perclaros +A calma, ao frio, ao ar verão despidos, +Depois de ter pisada longamente +Co'os delicados pés a areia ardente. + +48 +--"E verão mais os olhos que escaparem +De tanto mal, de tanta desventura, +Os dois amantes míseros ficarem +Na férvida e implacável espessura. +Ali, depois que as pedras abrandarem +Com lágrimas de dor, de mágoa pura, +Abraçados as almas soltarão +Da formosa e misérrima prisão."-- + +49 +"Mais ia por diante o monstro horrendo +Dizendo nossos fados, quando alçado +Lhe disse eu:--Quem és tu? que esse estupendo +Corpo certo me tem maravilhado.-- +A boca e os olhos negros retorcendo, +E dando um espantoso e grande brado, +Me respondeu, com voz pesada e amara, +Como quem da pergunta lhe pesara: + +50 +--"Eu sou aquele oculto e grande Cabo, +A quem chamais vós outros Tormentório, +Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo, +Plínio, e quantos passaram, fui notório. +Aqui toda a Africana costa acabo +Neste meu nunca visto Promontório, +Que para o Pólo Antarctico se estende, +A quem vossa ousadia tanto ofende. + +51 +--"Fui dos filhos aspérrimos da Terra, +Qual Encélado, Egeu e o Centimano; +Chamei-me Adamastor, e fui na guerra +Contra o que vibra os raios de Vulcano; +Não que pusesse serra sobre serra, +Mas conquistando as ondas do Oceano, +Fui capitão do mar, por onde andava +A armada de Netuno, que eu buscava. + +52 +--"Amores da alta esposa de Peleu +Me fizeram tomar tamanha empresa. +Todas as Deusas desprezei do céu, +Só por amar das águas a princesa. +Um dia a vi coas filhas de Nereu +Sair nua na praia, e logo presa +A vontade senti de tal maneira +Que ainda não sinto coisa que mais queira. + +53 +--"Como fosse impossível alcançá-la +Pela grandeza feia de meu gesto, +Determinei por armas de tomá-la, +E a Doris este caso manifesto. +De medo a Deusa então por mim lhe fala; +Mas ela, com um formoso riso honesto, +Respondeu:--"Qual será o amor bastante +De Ninfa que sustente o dum Gigante? + +54 +--"Contudo, por livrarmos o Oceano +De tanta guerra, eu buscarei maneira, +Com que, com minha honra, escuse o dano." +Tal resposta me torna a mensageira. +Eu, que cair não pude neste engano, +(Que é grande dos amantes a cegueira) +Encheram-me com grandes abondanças +O peito de desejos e esperanças. + +55 +--"Já néscio, já da guerra desistindo, +Uma noite de Dóris prometida, +Me aparece de longe o gesto lindo +Da branca Tétis única despida: +Como doido corri de longe, abrindo +Os braços, para aquela que era vida +Deste corpo, e começo os olhos belos +A lhe beijar, as faces e os cabelos. + +56 +--"Ó que não sei de nojo como o conte! +Que, crendo ter nos braços quem amava, +Abraçado me achei com um duro monte +De áspero mato e de espessura brava. +Estando com um penedo fronte a fronte, +Que eu pelo rosto angélico apertava +Não fiquei homem não, mas mudo e quedo, +E junto dum penedo outro penedo. + +57 +--"Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano, +Já que minha presença não te agrada, +Que te custava ter-me neste engano, +Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada? +Daqui me parto irado, e quase insano +Da mágoa e da desonra ali passada, +A buscar outro inundo, onde não visse +Quem de meu pranto e de meu mal se risse, + +58 +--"Eram já neste tempo meus irmãos +Vencidos e em miséria extrema postos; +E por mais segurar-se os Deuses vãos, +Alguns a vários montes sotopostos: +E como contra o Céu não valem mãos, +Eu, que chorando andava meus desgostos, +Comecei a sentir do fado inimigo +Por meus atrevimentos o castigo. + +59 +--"Converte-se-me a carne em terra dura, +Em penedos os ossos sefizeram, +Estes membros que vês e esta figura +Por estas longas águas se estenderam; +Enfim, minha grandíssima estatura +Neste remoto cabo converteram +Os Deuses, e por mais dobradas mágoas, +Me anda Tétis cercando destas águas."-- + +60 +"Assim contava, e com um medonho choro +Súbito diante os olhos se apartou; +Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoro +Bramido muito longe o mar soou. +Eu, levantando as mãos ao santo coro +Dos anjos, que tão longe nos guiou, +A Deus pedi que removesse os duros +Casos, que Adamastor contou futuros. + +61 +"Já Flegon e Piróis vinham tirando +Com os outros dois o carro radiante, +Quando a terra alta se nos foi mostrando, +Em que foi convertido o grão Gigante. +Ao longo desta costa, começando +Já de cortar as ondas do Levante, +Por ela abaixo um pouco navegamos, +Onde segunda vez terra tomamos. + +62 +"A gente que esta terra possuía, +Posto que todos Etíopes eram, +Mais humana no trato parecia +Que os outros, que tão mal nos receberam. +Com bailos e com festas de alegria +Pela praia arenosa a nós vieram, +As mulheres consigo e o manso gado +Que apascentavam, gordo e bem criado. + +63 +"As mulheres queimadas vêm em cima +Dos vagarosos bois, ali sentadas, +Animais que eles têm em mais estima +Que todo o outro gado das manadas. +Cantigas pastoris, ou prosa ou rima, +Na sua língua cantam concertadas +Com o doce som das rústicas avenas, +Imitando de Títiro as Camenas. + +64 +"Estes, como na vista prazenteiros +Fossem, humanamente nos trataram, +Trazendo-nos galinhas e carneiros, +A troco doutras peças, que levaram. +Mas como nunca enfim meus companheiros +Palavra sua alguma lhe alcançaram +Que desse algum sinal do que buscamos, +As velas dando, as âncoras levamos. + +65 +"Já aqui tínhamos dado um grã rodeio +A costa negra de África, e tornava +A proa a demandar o ardente meio +Do Céu, e o pólo Antarctico ficava: +Aquele ilhéu deixamos, onde veio +Outra armada primeira, que buscava +O Tormentório cabo, e descoberto, +Naquele ilhéu fez seu limite certo. + +66 +Daqui fomos cortando muitos dias +Entre tormentas tristes e bonanças, +No largo mar fazendo novas vias, +Só conduzidos de árduas esperanças. +Colo mar um tempo andamos em porfias, +Que, como tudo nele são mudanças. +Corrente nele achamos tão possante +Que passar não deixava por diante. + +67 +"Era maior a força em demasia, +Segundo para trás nos obrigava, +Do mar, que contra nós ali corria, +Que por nós a do vento que assoprava. +Injuriado Noto da porfia +Em que colo mar (parece) tanto estava, +Os assopros esforça iradamente, +Com que nos fez vencer a grão corrente. + +68 +"Trazia o Sol o dia celebrado, +Em que três Reis das partes do Oriento +Foram buscar um Rei de pouco nado, +No qual Rei outros três há juntamente. +Neste dia outro porto foi tomado +Por nós, da mesma já contada gente, +Num largo rio, ao qual o no e demos +Do dia, em que por ele nos metemos. + +69 +"Desta gente refresco algum tomamos, +E do rio fresca água; mas contudo +Nenhum sinal aqui da Índia achamos +No Povo, com nós outros quase mudo. +Ora vê, Rei, que tamanha terra andamos, +Sem sair nunca deste povo rudo, +Sem vermos nunca nova nem sinal +Da desejada parte Oriental. + +70 +"Ora imagina agora coitados +Andaríamos todos, perdidos, +De fomes, de tormentas quebrantados, +Por climas e por mares não sabidos, +E do esperar comprido tão cansados, +Quanto a desesperar já compelidos, +Por céus não naturais, de qualidade +Inimiga de nossa humanidade. + +71 +"Corrupto já e danado o mantimento, +Danoso e mau ao fraco corpo humano, +E além disso nenhum contentamento, +Que sequer da esperança fosse engano. +Crês tu que, se este nosso ajuntamento +De soldados não fora Lusitano, +Que durara ele tanto obediente +Por ventura a seu Rei e a seu regente? + +72 +"Crês tu que já não foram levantados +Contra seu Capitão, se os resistira, +Fazendo-se piratas, obrigados +De desesperação, de fome, de ira? +Grandemente, por certo, estão provados, +Pois que nenhum trabalho grande os tira +Daquela Portuguesa alta excelência +De lealdade firme, e obediência. + +73 +"Deixando o porto enfim do doce rio +E tornando a cortar a água salgada, +Fizemos desta costa algum desvio, +Deitando para o pego toda a armada; +Porque, ventando Noto manso e frio, +Não nos apanhasse a água da enseada, +Que a costa faz ali daquela banda +Donde a rica Sofala o ouro manda. + +74 +"Esta passada, logo o leve leme +Encomendado ao sacro Nicolau, +Para onde o mar na costa brada e geme, +A proa inclina duma e doutra nau; +Quando indo o coração que espera e teme +E que tanto fiou dum fraco pau +Do que esperava já desesperado, +Foi duma novidade alvoroçado + +75 +"E foi que, estando já da costa perto, +Onde as praias e vales bem se viam, +Num rio, que ali sai ao mar aberto, +Batéis à vela entravam e saíam. +Alegria muito grande foi por certo +Acharmos já pessoas que sabiam +Navegar, porque entre elas esperamos +De achar novas algumas, como achamos. + +76 +"Etíopes são todos, mas parece +Que com gente melhor comunicavam; +Palavra alguma Arábia se conhece +Entre a linguagem sua que falavam; +E com pano delgado, que se tece +De algodão, as cabeças apertavam; +Com outro, que de tinta azul se tinge, +Cada um as vergonhosas partes cinge. + +77 +"Pela Arábica língua, que mal falam, +E que Fernão Martins muito bem entende, +Dizem que por naus, que em grandeza igualam +As nossas, o seu mar se corta e fende; +Mas que lá donde sai o Sol, se abalam +Para onde a costa ao Sul se alarga e estende, +E do Sul para o Sol, terra onde havia +Gente, assim como nós, da cor do dia. + +78 +"Muito grandemente aqui nos alegramos +Com a gente, e com as novas muito mais: +Pelos sinais que neste rio achamos +O nome lhe ficou dos Bons Sinais. +Um padrão nesta terra alevantamos, +Que, para assinalar lugares tais, +Trazia alguns; o nome tem do belo +Guiador de Tobias a Gabelo. + +79 +"Aqui de limos, cascas e d'ostrinhos, +Nojosa criação das águas fundas, +Alimpamos as naus, que dos caminhos +Longos do mar, vêm sórdidas e imundas. +Dos hóspedes que tínhamos vizinhos, +Com mostras aprazíveis e jocundas, +louvemos sempre o usado mantimento, +Limpos de todo o falso pensamento. + +80 +"Mas não foi, da esperança grande e imensa +Que nesta terra houvemos, limpa e pura +A alegria; mas logo a recompensa +A Ramnúsia com nova desventura. +Assim no céu sereno se dispensa: +Com esta condição pesada e dura +Nascemos: o pesar terá firmeza, +Mas o bem logo muda a natureza. + +81 +"E foi que de doença crua e feia, +A mais que eu nunca vi, desampararam +Muitos a vida, e em terra estranha e alheia +Os ossos para sempre sepultaram. +Quem haverá que, sem o ver, o creia? +Que tão disformemente ali lhe incharam +As gengivas na boca, que crescia +A carne, e juntamente apodrecia. + +82 +"--Apodrecia com um fétido e bruto +Cheiro, que o ar vizinho inficionava; +Não tínhamos ali médico astuto, +Cirurgião subtil menos se achava; +Mas qualquer, neste ofício pouco instructo, +Pela carne já podre assim cortava +Como se fora morta, e bem convinha, +Pois que morto ficava quem a tinha. + +83 +"Enfim que nesta incógnita espessura +Deixamos para sempre os companheiros, +Que em tal caminho e em tanta desventura +Foram sempre conosco aventureiros. +Quão fácil é ao corpo a sepultura! +Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros +Estranhos, assim mesmo como aos nossos, +Receberão de todo o Ilustre os ossos. + +84 +"Assim que, deste porto nos partirmos +Com maior esperança e maior tristeza, +E pela costa abaixo o mar abrirmos +Buscando algum sinal de mais firmeza. +Na dura Moçambique enfim surgimos, +De cuja falsidade e má vileza +Já serás sabedor, e dos enganos +Dos povos de Mombaça pouco humanos. + +85 +"Até que aqui no teu seguro porto, +Cuja brandura e doce tratamento +Dará saúde a um vivo, e vida a um morto, +Nos trouxe a piedade do alto assento. +Aqui repouso, aqui doce conforto, +Nova quietação do pensamento +Nos deste: e vês aqui, se atento ouviste, +Te contei tudo quanto me pediste. + +86 +"Julgas agora, Rei, se houve no mundo +Gentes que tais caminhos cometessem? +Crês tu que tanto Eneias e o facundo +Ulisses pelo inundo se estendessem? +Ousou algum a ver do mar profundo, +Por mais versos que dele se escrevessem, +Do que eu vi, a poder de esforço e de arte, +E do que ainda hei de ver, a oitava parte? + +87 +"Esse que bebeu tanto da água Aónia, +Sobre quem tem contenda peregrina, +Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia, +Atenas, Ios, Argo e Salamina: +Esse outro que esclarece toda Ausónía, +A cuja voz altíssona e divina +Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece, +Mas o Tibre, com o som se ensoberbece; + +88 +Cantem, louvem e escrevam sempre extremos +Desses seus Semideuses, e encareçam, +Fingindo Magis Circes, Polifemos, +Sirenas que com o canto os adormeçam; +Dêem-lhe mais navegar à vela e remos +Os Cicones, e a torra onde se esqueçam +Os companheiros, em gostando o Loto; +Dêem-lhe perder nas águas o piloto; + +89 +"Ventos soltos lhe finjam, e imaginem +Dos odres e Calipsos namoradas; +Harpias que o manjar lhe contaminem; +Descer às sombras nuas já passadas: +Que por muito e por muito que se afinem +Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas, +A verdade que eu conto nua e pura +Vence toda grandíloqua escritura." + +90 +Da boca do facundo Capitão +Pendendo estavam todos embebidos, +Quando deu fim à longa narração +Dos altos feitos grandes e subidos. +Louva o Rei o sublime coração +Dos Reis em tantas guerras conhecidos; +Da gente louva a antiga fortaleza, +A lealdade de ânimo e nobreza. + +91 +Vai recontando o povo, que se admira, +O caso cada qual que mais notou; +Nenhum deles da gente os olhos tira, +Que tão longos caminhos rodeou. +Mas já o mancebo Délio as rédeas vira +Que o irmão de Lampécia mal guiou, +Por vir a descansar nos Tétios braços; +E el-Rei se vai do mar aos nobres paços. + +92 +Quão doce é o louvor e a justa glória +Dos próprios feitos, quando são soados! +Qualquer nobre trabalha que em memória +Vença ou iguale os grandes já passados. +As invejas da ilustre e alheia história +Fazem mil vezes feitos sublimados. +Quem valerosas obras exercita, +Louvor alheio muito o esperta e incita. + +93 +Não tinha em tanto os feitos gloriosos +De Aquiles, Alexandro na peleja, +Quanto de quem o canta, os numerosos +Versos; isso só louva, isso deseja. +Os troféus de Melcíades famosos +Temístoeles despertam só de inveja, +E diz que nada tanto o deleitava +Como a voz que seus feitos celebrava. + +94 +Trabalha por mostrar Vasco da Gama +Que essas navegações que o mundo canta +Não merecem tamanha glória e fama +Como a sua, que o céu e a terra espanta. +Si; mas aquele Herói, que estima e ama +Com dons, mercês, favores e honra tanta +A lira Mantuana, faz que soe +Eneias, e a Romana glória voe. + +95 +Dá a terra lusitana Cipiões, +Césares, Alexandros, e dá Augustos; +Mas não lhe dá contudo aqueles dois +Cuja falta os faz duros e robustos. +Octávio, entre as maiores opressões, +Compunha versos doutos e venustos. +Não dirá Fúlvia certo que é mentira, +Quando a deixava António por Glafira, + +96 +Vai César, sojugando toda França, +E as armas não lhe impedem a ciência; +Mas, numa mão a pena e noutra a lança, +Igualava de Cícero a eloquência. +O que de Cipião se sabe e alcança, +É nas comédias grande experiência. +Lia Alexandro a Homero de maneira +Que sempre se lhe sabe à cabeceira. + +97 +Enfim, não houve forte capitão, +Que não fosse também douto e ciente, +Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação, +Senão da Portuguesa tão somente. +Sem vergonha o não digo, que a razão +De algum não ser por versos excelente, +É não se ver prezado o verso e rima, +Porque, quem não sabe arte, não na estima. + +98 +Por isso, e não por falta de natura, +Não há também Virgílios nem Homeros; +Nem haverá, se este costume dura, +Pios Eneias, nem Aquiles feros. +Mas o pior de tudo é que a ventura +Tão ásperos os fez, e tão austeros, +Tão rudos, e de engenho tão remisso, +Que a muitos lhe dá pouco, ou nada disso. + +99 +As Musas agradeça o nosso Gama +o Muito amor da Pátria, que as obriga +A dar aos seus na lira nome e fama +De toda a ilustro e bélica fadiga: +Que ele, nem quem na estirpe seu se chama, +Calíope não tem por tão amiga, +Nem as filhas do Tejo, que deixassem +As telas douro fino, e que o cantassem. + +100 +Porque o amor fraterno e puro gosto +De dar a todo o Lusitano feito +Seu louvor, é somente o pressuposto +Das Tágides gentis, e seu respeito. +Porém não deixe enfim de ter disposto +Ninguém a grandes obras sempre o peito, +Que por esta, ou por outra qualquer via, +Não perderá seu preço, e sua valia. + +Canto Sexto + +1 +Não sabia em que modo festejasse +O Rei Pagão os fortes navegantes, +Para que as amizades alcançasse +Do Rei Cristão, das gentes tão possantes; +Pesa-lhe que tão longe o aposentasse +Das Européias terras abundantes +A ventura, que não no fez vizinho +Donde Hércules ao mar abriu caminho. + +2 +Com jogos, danças e outras alegrias, +A segundo a polícia Melindana, +Com usadas e ledas pescarias, +Com que a Lageia António alegra e engana +Este famoso Rei, todos os dias, +Festeja a companhia Lusitana, +Com banquetes, manjares desusados, +Com frutas, aves, carnes e pescados. + +3 +Mas vendo o Capitão que se detinha +Já mais do que devia, e o fresco vento +O convida que parta e tome asinha +Os pilotos da terra e mantimento, +Não se quer mais deter, que ainda tinha +Muito para cortar do salso argento; +Já do Pagão benigno se despede, +Que a todos amizade longa pede. + +4 +Pede-lhe mais que aquele porto seja +Sempre com suas frotas visitado, +Que nenhum outro bem maior deseja, +Que dar a tais barões seu reino e estado; +E que enquanto seu corpo o espírito reja, +Estará de contino aparelhado +A pôr a vida e reino totalmente +Por tão bom Rei, por tão sublime gente. + +5 +Outras palavras tais lhe respondia +O Capitão, o logo as velas dando, +Para as terras da Aurora se partia, +Que tanto tempo há já que vai buscando. +No piloto que leva não havia +Falsidade, mas antes vai mostrando +A navegação certa, e assim caminha +Já mais seguro do que dantes vinha. + +6 +As ondas navegavam do Oriente +Já nos mares da Índia, e enxergavam +Os tálamos do Sol, que nasce ardente; +Já quase seus desejos se acabavam. +Mas o mau de Tioneu, que na alma sente +As venturas, que então se aparelhavam +A gente Lusitana, delas dina, +Arde, morre, blasfema e desatina. + +7 +Via estar todo o Céu determinado +De fazer de Lisboa nova Roma; +Não no pode estorvar, que destinado +Está doutro poder que tudo doma. +Do Olimpo desce enfim desesperado; +Novo remédio em terra busca e toma: +Entra no úmido reino, e vai-se à corte +Daquele a quem o mar caiu em sorte. + +8 +No mais interno fundo das profundas +Cavernas altas, onde o mar se esconde, +Lá donde as ondas saem furibundas, +Quando às iras do vento o mar responde, +Netuno mora, e moram as jocundas +Nereidas, e outros Deuses do mar, onde +As águas campo deixam às cidades, +Que habitam estas úmidas deidades. + +9 +Descobre o fundo nunca descoberto +Das areias ali de prata fina; +Torres altas se vêem no campo aberto +Da transparente massa cristalina: +Quanto se chegam mais os olhos perto, +Tanto menos a vista determina +Se é cristal o que vê, se diamante, +Que assim se mostra claro e radiante. + +10 +As portas douro fino, e marchetadas +Do rico aljôfar que nas conchas nasce, +De escultura formosa estão lavradas, +Na qual o irado Baco a vista pasce; +E vê primeiro em cores variadas +Do velho Caos a tão confusa face; +Vêem-se os quatro elementos trasladados +Em diversos ofícios ocupados. + +11 +Ali sublime o Fogo estava em cima, +Que em nenhuma matéria se sustinha; +Daqui as coisas vivas sempre anima, +Depois que Prometeu furtado o tinha. +Logo após ele leve se sublima +O invisível Ar, que mais asinha +Tomou lugar, e nem por quente ou f rio, +Algum deixa no mundo estar vazio. + +12 +Estava a terra em montes revestida +De verdes ervas, e árvores floridas, +Dando pasto diverso e dando vida +As alimárias nela produzidas. +A clara forma ali estava esculpida +Das águas entre a terra desparzidas, +De pescados criando vários modos, +Com seu humor mantendo os corpos todos. + +13 +Noutra parte esculpida estava a guerra, +Que tiveram os Deuses com os Gigantes; +Está Tifeu debaixo da alta serra +De Etna, que as flamas lança crepitantes; +Esculpido se vê ferindo a terra +Netuno, quando as gentes ignorantes +Dele o cavalo houveram, e a primeira +De Minerva pacífica oliveira. + +14 +Pouca tardança faz Lieu irado +Na vista destas coisas, mas entrando +Nos paços de Netuno, que avisado +Da vinda sua, o estava já aguardando, +As portas o recebe, acompanhado +Das Ninfas, que se estão maravilhando +De ver que, cometendo tal caminho, +Entre no reino d'água o Rei do vinho. + +15 +"Ó Netuno, lhe disse, não te espantes +De Baco nos teus reinos receberes, +Porque também com os grandes e possantes +Mostra a Fortuna injusta seus poderes. +Manda chamar os Deuses do mar, antes +Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres; +Verão da desventura grandes modos: +Ouçam todos o mal, que toca a todos." + +16 +Julgando já Netuno que seria +Estranho caso aquele, logo manda +Tritão, que chame os Deuses da água fria, +Que o mar habitam duma e doutra banda. +Tritão, que de ser filho se gloria +Do Rei e de Salácia veneranda, +Era mancebo grande, negro e feio, +Trombeta de seu pai, e seu correio. + +17 +Os cabelos da barba, e os que descem +Da cabeça nos ombros, todos eram +Uns limos prenhes d'água, e bem parecem +Que nunca brando pentem conheceram; +Nas pontas pendurados não falecem +Os negros misilhões, que ali se geram, +Na cabeça por gorra tinha posta +Uma muito grande casca de lagosta. + +18 +O corpo nu, e os membros genitais, +Por não ter ao nadar impedimento, +Mas porém de pequenos animais +Do mar todos cobertos cento e cento: +Camarões e cangrejos, e outros mais +Que recebem de Febe crescimento, +Ostras, e camarões do musgo sujos, +As costas com a casca os caramujos. + +19 +Na mão a grande concha retorcida +Que trazia, com força, já tocava; +A voz grande canora foi ouvida +Por todo o mar, que longe retumbava. +Já toda a companhia apercebida +Dos Deuses para os paços caminhava +Do Deus, que fez os muros de Dardânia, +Destruídos depois da Grega insânia. + +20 +Vinha o padre Oceano acompanhado +Dos filhos e das filhas que gerara; +Vem Nereu, que com Dóris foi casado, +Que todo o mar de Ninfas povoara; +O profeta Proteu, deixando o gado +Marítimo pascer pela água amara, +Ali veio também, mas já sabia +O que o padre Lieu no mar queria. + +21 +Vinha por outra parte a linda esposa +De Netuno, de Celo e Vesta filha, +Grave e Ieda no gesto, e tão formosa +Que se amansava o mar de maravilha. +Vestida uma camisa preciosa +Trazia de delgada beatilha, +Que o corpo cristalino deixa ver-se, +Que tanto bem não é para esconder-se. + +22 +Anfitrite, formosa como as flores, +Neste caso não quis que falecesse; +O Delfim traz consigo, que aos amores +Do Rei lhe aconselhou que obedecesse. +Com os olhos, que de tudo são senhores, +Qualquer parecerá que o Sol vencesse: +Ambas vêm pela mão, igual partido, +Pois ambas são esposas dum marido. + +23 +Aquela que das fúrias de Atamante +Fugindo, veio a ter divino estado, +Consigo traz o filho, belo Infante, +No número dos Deuses relatado. +Pela praia brincando vem diante +Com as lindas conchinhas, que o salgado +Mar sempre cria, e às vezes pela areia +No colo o to a a bela Panopeia. + +24 +E o Deus que foi num tempo corpo humano, +E por virtude da erva poderosa +Foi convertido em peixe, e deste dano +Lhe resultou deidade gloriosa, +Inda vinha chorando o feio engano +Que Circe tinha usado com a formosa +Cila, que ele ama, desta sendo amado, +Que a mais obriga amor mal empregado. + +25 +Já finalmente todos assentados +Na grande sala, nobre e divinal; +As Deusas em riquíssimos estrados, +Os Deuses em cadeiras de cristal, +Foram todos do Padre agasalhados, +Que com o Tebano tinha assento igual. +De fumos enche a casa a rica massa +Que no mar nasce, e Arábia em cheiro passa. + +26 +Estando sossegado já o tumulto +Dos Deuses, e de seus recebimentos, +Começa a descobrir do peito oculto +A causa o Tioneu de seus tormentos: +Um pouco carregando-se no vulto, +Dando mostra de grandes sentimentos, +Só por dar aos de Luso triste morte +Com o ferro alheio, fala desta sorte: + +27 +"Príncipe, que de juro senhoreias +Dum Pólo ao outro Pólo o mar irado, +Tu, que as gentes da terra toda enfreias, +Que não passem o termo limitado; +E tu, padre Oceano, que rodeias +O inundo universal, e o tens cercado, +E com justo decreto assim permites +Que dentro vivam só de seus limites; + +28 +"E vós, Deuses do mar, que não sofreis +Injúria alguma em vosso reino grande, +Que com castigo igual vos não vingueis +De quem quer que por ele corra e ande: +Que descuido foi este em que viveis? +Quem pode ser que tanto vos abrande +Os peitos, com razão endurecidos +Contra os humanos fracos e atrevidos? + +29 +"Vistes que com grandíssima ousadia +Foram já cometer o Céu supremo; +Vistes aquela insana fantasia +De tentarem o mar com vela e reino; +Vistes, e ainda vemos cada dia, +Soberbas e insolências tais, que temo +Que do mar e do Céu em poucos anos +Venham Deuses a ser, e nós humanos. + +30 +"Vedes agora a fraca geração +Que dum vassalo meu o nome toma, +Com soberbo e altivo coração, +A vós, e a mi, e o mundo todo doma; +Vedes, o vosso mar cortando vão, +Mais do que fez a gente alta de Roma; +Vedes, o vosso reino devassando, +Os vossos estatutos vão quebrando. + +31 +"Eu vi que contra os Mínias, que primeiro +No vosso reino este caminho abriram, +Bóreas injuriado, e o companheiro +Aquilo, e os outros todos resistiram. +Pois se do ajuntamento aventureiro +Os ventos esta injúria assim sentiram, +Vós, a quem mais compete esta vingança, +Que esperais? Porque a pondes em tardança? + +32 +"E não consinto, Deuses, que cuideis +Que por amor de vós do céu desci, +Nem da mágoa da injúria que sofreis, +Mas da que se me faz também a mi; +Que aquelas grandes honras, que sabeis +Que no mundo ganhei, quando venci +As terras Indianas do Oriente, +Todas vejo abatidas desta gente. + +33 +"Que o grã Senhor e Fados que destinam, +Como lhe bem parece, o baixo mundo, +Famas mores que nunca determinam +De dar a estes barões no mar profundo. +Aqui vereis, ó Deuses, como ensinam +O mal também a Deuses: que, a segundo +Se vê, ninguém já tem menos valia, +Que quem com mais razão valer devia. + +34 +"E por isso do Olimpo já fugi, +Buscando algum remédio a meus pesares, +Por ver o preço que no Céu perdi, +Se por dita acharei nos vossos mares." +Mais quis dizer, e não passou daqui, +Porque as lágrimas já correndo a pares +Lhe saltaram dos olhos, com que logo +Se acendem as Deidades d'água em fogo. + +35 +A ira com que súbito alterado +O coração dos Deuses foi num ponto, +Não sofreu mais conselho bem cuidado, +Nem dilação, nem outro algum desconto. +Ao grande Eolo mandam já recado +Da parte de Netuno, que sem conto +Solte as fúrias dos ventos repugnantes, +Que não haja no mar mais navegantes. + +36 +Bem quisera primeiro ali Proteu +Dizer neste negócio o que sentia, +E segundo o que a todos pareceu, +Era alguma profunda profecia. +Porém tanto o tumulto se moveu +Súbito na divina companhia, +Que Tethys indignada lhe bradou: +"Netuno sabe bem o que mandou". + +37 +Já lá o soberbo Hipótades soltava +Do cárcere fechado os furiosos +Ventos, que com palavras animava +Contra os varões audazes e animosos. +Súbito o céu sereno se obumbrava, +Que os ventos, mais que nunca impetuosos, +Começam novas forças a ir tomando, +Torres, montes e casas derribando. + +38 +Enquanto este conselho se fazia +No fundo aquoso, a leda lassa frota +Com vento sossegado prosseguia, +Pelo tranquilo mar, a longa rota. +Era no tempo quando a luz do dia +Do Eôo Hemisfério está remota; +Os do quarto da prima se deitavam, +Para o segundo os outros despertavam. + +39 +Vencidos vêm do sono, e mal despertos; +Bocejando a miúdo se encostavam +Pelas antenas, todos mal cobertos +Contra os agudos ares, que assopravam; +Os olhos contra seu querer abertos, +Alas estregando, os membros estiravam; +Remédios contra o sono buscar querem, +Histórias contam, casos mil referem. + +40 +"Com que melhor podemos, um dizia, +Este tempo passar, que é tão pesado, +Senão com algum conto de alegria, +Com que nos deixe o sono carregado?" +Responde Leonardo, que trazia +Pensamentos de firme namorado: +"Que contos poderemos ter melhores, +Para passar o tempo, que de amores?" + +41 +"Não é, disse Veloso, coisa justa +Tratar branduras em tanta aspereza; +Que o trabalho do mar, que tanto custa, +Não sofre amores, nem delicadeza; +Antes de guerra férvida e robusta +A nossa história seja, pois dureza +Nossa vida há de ser, segundo entendo, +Que o trabalho por vir me está dizendo." + +42 +Consentem nisto todos, e encomendam +A Veloso que conte isto que aprova. +"Contarei, disse, sem que me repreendam +De contar cousa fabulosa ou nova; +E porque os que me ouvirem daqui aprendam +A fazer feitos grandes de alta prova, +Dos nascidos direi na nossa terra, +E estes sejam os doze de Inglaterra. + +43 +"No tempo que do Reino a rédea leve +João, filho de Pedro, moderava, +Depois que sossegado e livre o teve +Do vizinho poder, que o molestava, +Lá na grande Inglaterra, que da neve +Boreal sempre abunda, semeava +A fera Erínis dura e má cizânia, +Que lustre fosse a nossa Lusitânia. + +44 +"Entre as damas gentis da corte Inglesa +E nobres cortesãos, acaso um dia +Se levantou discórdia em ira acesa, +Ou foi opinião, ou foi porfia. +Os cortesãos, a quem tão pouco pesa +Soltar palavras graves de ousadia, +Dizem que provarão, que honras e famas +Em tais damas não há para ser damas; + +45 +"E que se houver alguém, com lança e espada, +Que queira sustentar a parte sua, +Que eles, em campo raso ou estacada, +Lhe darão feia infâmia, ou morte crua. +A feminil fraqueza Pouco usada, +Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua +De forças naturais convenientes, +Socorro pede a amigos e parentes. + +46 +"Mas como fossem grandes e possantes +No reino os inimigos, não se atrevem +Nem parentes, nem férvidos amantes, +A sustentar as damas, como devem. +Com lágrimas formosas e bastantes +A fazer que em socorro os Deuses levem +De todo o Céu, por rostos de alabastro, +Se vão todas ao duque de Alencastro. + +47 +"Era este Inglês potente, e militara +Com os Portugueses já contra Castela, +Onde as forças magnânimas provara +Dos companheiros, e benigna estrela: +Não menos nesta terra experimentara +Namorados afeitos, quando nela +A filha viu, que tinto o peito doma +Do forte Rei, que por mulher a toma. + +48 +"Este, que socorrer-lhe não queria, +Por não causar discórdias intestinas, +Lhe diz:--"Quando o direito pretendia +Do reino lá das terras Iberinas, +Nos Lusitanos vi tanta ousadia, +Tanto primor, e partes tão divinas, +Que eles sós poderiam, se não erro, +Sustentar vossa parte a fogo e ferro. + +49 +"E se, agravadas damas, sois servidas, +Por vós lhe mandarei embaixadores, +Que, por cartas discretas e polidas, +De vosso agravo os façam sabedores. +Também por vossa parto encarecidas +Com palavras de afagos e de amores +Lhe sejam vossas lágrimas, que eu creio +Que ali tereis socorro e forte esteio."-- + +50 +"Destarte as aconselha o Duque experto, +E logo lhe nomeia doze fortes; +E por que cada dama um tenha certo, +Lhe manda que sobre eles lancem sortes, +Que elas só doze são; e descoberto +Qual a qual tem caído das consertes, +Cada uma escreve ao seu por vários modos, +E todas a seu Rei, e o Duque a todos. + +51 +"Já chega a Portugal o mensageiro; +Toda a corte alvoroça a novidade; +Quisera o Rei sublime ser primeiro, +Mas não lhe sofre a Régia Majestade. +Qualquer dos cortesãos aventureiro +Deseja ser, com férvida vontade, +F, só fica por bem-aventurado +Quem já vem pelo Duque nomeado. + +52 +"Lá na leal Cidade, donde teve +Origem (como é fama) o nome eterno +De Portugal, armar madeiro leve +Manda o que tem o leme do governo. +Apercebem-se os doze, em tempo breve, +De armas, e roupas de uso mais moderno, +De elmos, cimeiras, letras, e primores, +Cavalos, e concertos de mil cores. + +53 +"Já do seu Rei tomado têm licença +Para partir do Douro celebrado +Aqueles, que escolhidos por sentença +Foram do Duque Inglês experimentado. +Não há na companhia diferença +De cavaleiro destro ou esforçado; +Mas um só, que Magriço se dizia, +Destarte fala à forte companhia: + +54 +--"Fortíssimos consócios, eu desejo +Há muito já de andar terras estranhas, +Por ver mais águas que as do Douro o Tejo, +Várias gentes, e leis, e várias manhas. +Agora, que aparelho certo vejo, +(Pois que do mundo as coisas são tamanhas) +Quero, se me deixais, ir só por terra, +Porque eu serei convosco em Inglaterra. + +55 +--"E quando caso for que eu impedido +Por quem das cousas é última linha, +Não for convosco ao prazo instituído, +Pouca falta vos faz a falta minha: +Todos por mim fareis o que é devido; +Mas, se a verdade o espírito me adivinha, +Rios, montes, fortuna, ou sua inveja, +Não farão que eu convosco lá não seja." + +56 +"Assim diz, e abraçados os amigos, +E tomada licença, enfim se parte: +Passa Lião, Castela, vendo antigos +Lugares, que ganhara o pátrio Marte; +Navarra, com os altíssimos perigos +Do Perineu, que Espanha e Gália parte; +Vistas enfim de França as coisas grandes, +No grande empório foi parar de Frandes. + +57 +"Ali chegado, ou fosse caso ou manha, +Sem passar se deteve muitos dias: +Mas dos onze a ilustríssima companha +Cortam do mar do Norte as ondas frias. +Chegados de Inglaterra à costa estranha, +Para Londres já fazem todos vias. +Do Duque são com festa agasalhados, +E das damas servidos e amimados. + +58 +"Chega-se o prazo e dia assinalado +De entrar em campo já com os doze Ingleses, +Que pelo Rei já tinham segurado: +Armam-se de elmos, grevas e de arneses: +Já as damas têm por si, fulgente e armado, +O Mavorte feroz dos Portugueses; +Vestem-se elas de cores e de sedas, +De ouro e de jóias mil, ricas e ledas. + +59 +"Mas aquela, a quem fora em sorte dado +Magriço, que não vinha, com tristeza +Se veste, por não ter quem nomeado +Seja seu cavaleiro nesta empresa; +Bem que os onze apregoam, que acabado +Será o negócio assim na corte Inglesa, +Que as damas vencedoras se conheçam, +Posto que dois e três dos seus faleçam. + +60 +"Já num sublime e público teatro +Se assenta o Rei Inglês com toda a corte: +Estavam três e três, e quatro e quatro, +Bem como a cada qual coubera em sorte. +Não são vistos do Sol, do Tejo ao Batro, +De força, esforço e de ânimo mais forte +Outros doze sair, como os Ingleses, +No campo, contra os onze Portugueses. + +61 +"Mastigam os cavalos, escumando, +Os áureos freios com feroz semblante; +Estava o Sol nas armas rutilando +Como em cristal ou rígido diamante; +Mas enxerga-se num e noutro bando +Partido desigual e dissonante +Dos onze contra os doze: quando a gente +Começa a alvoroçar-se geralmente. + +62 +"Viram todos o rosto aonde havia +A causa principal do reboliço: +Eis entra um cavaleiro, que trazia +Armas, cavalo, ao bélico serviço. +Ao Rei e às damas fala, e logo se ia +Para os onze, que este era o grã Magriço; +Abraça os companheiros como amigos, +A quem não falta certo nos perigos. + +63 +"A dama, como ouviu que este era aquele +Que vinha a defender seu nome e fama, +Se alegra, e veste ali do animal de Hele, +Que a gente bruta mais que virtude ama. +Já dão sinal, e o som da tuba impele +Os belicosos ânimos, que inflama: +Picam de esporas, largam rédeas logo, +Abaixam lanças, fere a terra fogo. + +64 +"Dos cavalos o estrépito parece +Que faz que o chão debaixo todo treme; +O coração no peito, que estremece +De quem os olha, se alvoroça e teme: +Qual do cavalo voa, que não desce; +Qual, com o cavalo em terra dando, geme; +Qual vermelhas as armas faz de brancas; +Qual com os penachos do elmo açouta as ancas. + +65 +"Algum dali tomou perpétuo sono +E fez da vida ao fim breve intervalo; +Correndo algum cavalo vai sem dono +E noutra parte o dono sem cavalo. +Cai a soberba Inglesa de seu trono, +Que dois ou três já fora vão do vale; +Os que de espada vêm fazer batalha, +Mais acham já que arnês, escudo e malha. + +66 +"Gastar palavras em contar extremos +De golpes feros, cruas estocadas, +É desses gastadores, que sabemos, +Maus do tempo, com fábulas sonhadas. +Basta, por fim do caso, que entendemos +Que com finezas altas e afamadas, +Com os nossos fica a palma da vitória, +E as damas vencedoras, e com glória. + +67 +"Recolhe o Duque os doze vencedores +Nos seus paços, com festas e alegria; +Cozinheiros ocupa e caçadores +Das damas a formosa companhia, +Que querem dar aos seus libertadores +Banquetes mil cada hora e cada dia, +Enquanto se detêm em Inglaterra, +Até tornar à doce e cara terra. + +68 +"Mas dizem que, contudo, o grã Magriço, +Desejoso de ver as coisas grandes, +Lá se deixou ficar, onde um serviço +Notável à condessa fez de Frandes; +E como quem não era já noviço +Em todo trance, onde tu, Marte, mandes, +Um Francês mata em campo, que o destino +Lá teve de Torcato e de Corvino. + +69 +"Outro também dos doze em Alemanha +Se lança, e teve um fero desafio +Com um Germano enganoso, que com manha +Não devida o quis pôr no extremo fio." +Contando assim Veloso, já a companha +Lhe pede que não f aça tal desvio +Do caso de Magriço, e vencimento, +Nem deixe o de Alemanha em esquecimento. + +70 +Mas, neste passo, assim prontos estando +Eis o mestre, que olhando os ares anda, +O apito toca; acordam despertando +Os marinheiros duma e doutra banda; +E porque o vento vinha refrescando, +Os traquetes das gáveas tomar manda: +"Alerta, disse, estai, que o vento cresce +Daquela nuvem negra que aparece." + +71 +Não eram os traquetes bem tomados, +Quando dá a grande e súbita procela: +"Amaina, disse o mestre a grandes brados, +Amaina, disse, amaina a grande vela!" +Não esperam os ventos indinados +Que amainassem; mas juntos dando nela, +Em pedaços a fazem, com um ruído +Que o mundo pareceu ser destruído. + +72 +O céu fere com gritos nisto a gente, +Com súbito temor e desacordo, +Que, no romper da vela, a nau pendente +Toma grã suma d'água pelo bordo: +"Alija, disse o mestre rijamente, +Alija tudo ao mar; não falte acordo. +Vão outros dar à bomba, não cessando; +A bomba, que nos imos alagando!" + +73 +Correm logo os soldados animosos +A dar à bomba; e, tanto que chegaram, +Os balanços que os mares temerosos +Deram à nau, num bordo os derribaram. +Três marinheiros, duros e forçosos, +A menear o leme não bastaram; +Talhas lhe punham duma e doutra parte, +Sem aproveitar dos homens força e arte. + +74 +Os ventos eram tais, que não puderam +Mostrar mais força do ímpeto cruel, +Se para derribar então vieram +A fortíssima torre de Babel. +Nos altíssimos mares, que cresceram, +A pequena grandura dum batel +Mostra a possante nau, que move espanto, +Vendo que se sustém nas ondas tanto. + +75 +A nau grande, em que vai Paulo da Gama, +Quebrado leva o masto pelo meio. +Quase toda alagada: a gente chama +Aquele que a salvar o mundo veio. +Não menos gritos vãos ao ar derrama +Toda a nau de Coelho, com receio, +Conquanto teve o mestre tanto tento, +Que primeiro amainou, que desse o vento. + +76 +Agora sobre as nuvens os subiam +As ondas de Netuno furibundo; +Agora a ver parece que desciam +As íntimas entranhas do Profundo. +Noto, Austro, Bóreas, Aquilo queriam +Arruinar a máquina do mundo: +A noite negra e feia se alumia +Com os raios, em que o Pólo todo ardia. + +77 +As Alcióneas aves triste canto +Junto da costa brava levantaram, +Lembrando-se do seu passado pranto, +Que as furiosas águas lhe causaram. +Os delfins namorados entretanto +Lá nas covas marítimas entraram, +Fugindo à tempestade e ventos duros, +Que nem no fundo os deixa estar segui-os. + +78 +Nunca tão vivos raios fabricou +Contra a fera soberba dos Gigantes +O grã ferreiro sórdido, que obrou +Do enteado as armas radiantes; +Nem tanto o grã Tonante arremessou +Relâmpagos ao mundo fulminantes, +No grã dilúvio, donde sós viveram +Os dois que em gente as pedras converteram. + +79 +Quantos montes, então, que derribaram +As ondas que batiam denodadas! +Quantas árvores velhas arrancaram +Do vento bravo as fúrias indinadas! +As forçosas raízes não cuidaram +Que nunca para o céu fossem viradas, +Nem as fundas areias que pudessem +Tanto os mares que em cima as revolvessem. + +80 +Vendo Vasco da Gama que tão perto +Do fim de seu desejo se perdia; +Vendo ora o mar até o inferno aberto, +Ora com nova fúria ao céu subia, +Confuso de temor, da vida incerto, +Onde nenhum remédio lhe valia, +Chama aquele remédio santo é forte, +Que o impossível pode, desta sorte: + +81 +"Divina Guarda, angélica, celeste, +Que os céus, o mar e terra senhoreias; +Tu, que a todo Israel refúgio deste +Por metade das águas Eritreias; +Tu, que livraste Paulo e o defendeste +Das Sirtes arenosas e ondas feias, +E guardaste com os filhos o segundo +Povoador do alagado e vácuo mundo; + +82 +"Se tenho novos modos perigosos +Doutra Cila e Caríbdis já passados, +Outras Sirtes e baixos arenosos, +Outros Acroceráunios infamados, +No fim de tantos casos trabalhosos, +Por que somos de ti desamparados, +Se este nosso trabalho não te ofende, +Mas antes teu serviço só pretende? + +83 +"Ó ditosos aqueles que puderam +Entre as agudas lanças Africanas +Morrer, enquanto fortes sostiveram +A santa Fé nas terras Mauritanas! +De quem feitos ilustres se souberam, +De quem ficam memórias soberanas, +De quem se ganha a vida com perdê-la, +Doce fazendo a morte as honras dela!" + +84 +Assim dizendo, os ventos que lutavam +Como touros indómitos bramando, +Mais e mais a tormenta acrescentavam +Pela miúda enxárcia assoviando. +Relâmpados medonhos não cessavam, +Feros trovões, que vêm representando +Cair o céu dos eixos sobre a terra, +Consigo os elementos terem guerra. + +85 +Mas já a amorosa estrela cintilava +Diante do Sol claro, no Horizonte, +Mensageira do dia, e visitava +A terra e o largo mar, com leda fronte. +A densa que nos céus a governava, +De quem foge o ensífero Orionte, +Tanto que o mar e a cara armada vira, +Tocada junto foi de medo e de ira. + +86 +"Estas obras de Baco são, por certo, +Disse; mas não será que avante leve +Tão danada tenção, que descoberto +Me será sempre o mil a que se atreve." +Isto dizendo, desce ao mar aberto, +No caminho gastando espaço breve, +Enquanto manda as Ninfas amorosas +Grinaldas nas cabeças pôr de rosas. + +87 +Grinaldas manda pôr de várias cores +Sobre cabelo; louros à porfia. +Quem não dirá que nascem roxas flores +Sobre ouro natural, que Amor enfia? +Abrandar determina, por amores, +Dos ventos a nojosa companhia, +Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas, +Que mais formosas vinham que as estrelas. + +88 +Assim foi; porque, tanto que chegaram +A vista delas, logo lhe falecem +As forças com que dantes pelejaram, +E já como rendidos lhe obedecem. +Os pés e mãos parece que lhe ataram +Os cabelos que os raios escurecem. +A Bóreas, que do peito mais queria, +Assim disse a belíssima Oritia: + +89 +"Não creias, fero Bóreas, que te creio +Que me tiveste nunca amor constante, +Que brandura é de amor mais certo arreio, +E não convém furor a firme amante. +Se já não pões a tanta insânia freio, +Não esperes de mi, daqui em diante, +Que possa mais amar-te, mas temer-te; +Que amor contigo em medo se converte." + +90 +Assim mesmo a formosa Galateia +Dizia ao fero Noto, que bem sabe +Que dias há que em vê-la se recreia, +E bem crê que com ele tudo acabe. +Não sabe o bravo tanto bem se o creia, +Que o coração no peito lhe não cabe, +De contente de ver que a dama o manda, +Pouco cuida que faz, se logo abranda. + +91 +Desta maneira as outras amansavam +Subitamente os outros amadores; +E logo à linda Vénus se entregavam, +Amansadas as iras e os furores. +Ela lhe prometeu, vendo que amavam, +Sempiterno favor em seus amores, +Nas belas mãos tomando-lhe homenagem +De lhe serem leais esta viagem. + +92 +Já a manhã clara dava nos outeiros +Por onde o Ganges murmurando soa, +Quando da celsa gávea os marinheiros +Enxergaram terra alta pela proa. +Já fora de tormenta, e dos primeiros +Mares, o temor vão do peito voa. +Disse alegre o piloto Melindano: +"Terra é de Calecu, se não me engano. + +93 +"Esta é por certo a terra que buscais +Da verdadeira Índia, que aparece; +E se do mundo mais não desejais, +Vosso trabalho longo aqui fenece." +Sofrer aqui não pode o Gama mais, +De ledo em ver que a terra se conhece: +Os geolhos no chão, as mãos ao céu, +A mercê grande a Deus agradeceu. + +94 +As graças a Deus dava, e razão tinha, +Que não somente a terra lhe mostrava, +Que com tanto temor buscando vinha, +Por quem tanto trabalho experimentava; +Mas via-se livrado tão asinha +Da morte, que no mar lhe aparelhava +O vento duro, fervido e medonho, +Como quem despertou de horrendo sonho. + +95 +Por meio destes hórridos perigos, +Destes trabalhos graves e temores, +Alcançam os que são de fama amigos +As honras imortais e graus maiores: +Não encostados sempre nos antigos +Troncos nobres de seus antecessores; +Não nos leitos dourados, entre os finos +Animais de Moscóvia zebelinos; + +96 +Não com os manjares novos e esquisitos, +Não com os passeios moles e ociosos, +Não com os vários deleites e infinitos, +Que afeminam os peitos generosos, +Não com os nunca vencidos apetitos +Que a Fortuna tem sempre tão mimosos, +Que não sofre a nenhum que o passo mude +Para alguma obra heróica de virtude; + +97 +Mas com buscar com o seu forçoso braço +As honras, que ele chame próprias suas; +Vigiando, e vestindo o forjado aço, +Sofrendo tempestades e ondas cruas; +Vencendo os torpes frios no regaço +Do Sul e regiões de abrigo nuas; +Engolindo o corrupto mantimento, +Temperado com um árduo sofrimento; + +98 +E com forçar o rosto, que se enfia, +A parecer seguro, ledo, inteiro, +Para o pelouro ardente, que assovia +E leva a perna ou braço ao companheiro. +Destarte, o peito um calo honroso cria, +Desprezador das honras e dinheiro, +Das honras e dinheiro, que a ventura +Forjou, e não virtude justa e dura. + +99 +Destarte se esclarece o entendimento, +Que experiências fazem repousado, +E fica vendo, corno de alto assento, +O baixo trato humano embaraçado. +Este, onde tiver força o regimento +Direito, e não de afeitos ocupado, +Subirá (como deve) a ilustre mando, +Contra vontade sua, e não rogando. + +Canto Sétimo + +1 +Já se viam chegados junto à terra, +Que desejada já de tantos fora, +Que entre as correntes Indicas se encerra, +E o Ganges, que no céu terreno mora. +Ora, sus, gente forte, que na guerra +Quereis levar a palma vencedora, +Já sois chegados, já tendes diante +A terra de riquezas abundante. + +2 +A vós, ó geração de Luso, digo, +Que tão pequena parte sois no inundo; +Não digo ainda no mundo, mas no amigo +Curral de quem governa o céu rotundo; +Vós, a quem não somente algum perigo +Estorva conquistar o povo imundo, +Mas nem cobiça, ou pouca obediência +Da Madre, que nos céus está em essência; + +3 +Vós, Portugueses, poucos quanto fortes, +Que o fraco poder vosso não pesais; +Vós, que à custa de vossas várias mortes +A lei da vida eterna dilatais: +Assim do céu deitadas são as sortes, +Que vós, por muito poucos que sejais, +Muito façais na santa Cristandade: +Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade! + +4 +Vede-los Alemães, soberbo gado, +Que por tão largos campos se apascenta, +Do sucessor de Pedro, rebelado, +Novo pastor, e nova seita inventa: +Vede-lo em feias guerras ocupado, +Que ainda com o cego error se não contenta, +Não contra o soberbíssimo Otomano, +Mas por sair do jugo soberano. + +5 +Vede-lo duro Inglês, que se nomeia +Rei da velha e santíssima cidade, +Que o torpe Ismaelita senhoreia, +(Quem viu honra tão longe da verdade?) +Entre as Boreais neves se recreia, +Nova maneira faz de Cristandade: +Para os de Cristo tem a espada nua, +Não por tomar a terra que era sua. + +6 +Guarda-lhe por entanto um falso Rei +A cidade Hierosólima terrestre, +Enquanto ele não guarda a santa lei +Da cidade Hierosólima celeste. +Pois de ti, Galo indigno, que direi? +Que o nome Cristianíssimo quiseste, +Não para defendê-lo, nem guardá-lo, +Mas para ser contra ele, e derrubá-lo! + +7 +Achas que tens direito em senhorios +De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto, +E não contra o Cinífio e Nilo, rios +Inimigos do antigo nome santo? +Ali se hão de provar da espada os fios +Em quem quer reprovar da Igreja o canto. +De Carlos, de Luís, o nome e a terra +Herdaste, e as causas não da justa guerra? + +8 +Pois que direi daqueles que em delícias, +Que o vil ócio no mundo traz consigo, +Gastam as vidas, logram as divícias, +Esquecidos de seu valor antigo? +Nascem da tirania inimicícias, +Que o povo forte tem de si inimigo: +Contigo, Itália, falo, já submersa +Em Vícios mil, e de ti mesma adversa. + +9 +Ó míseros Cristãos, pela ventura, +Sois os dentes de Cadmo desparzidos, +Que uns aos outros se dão a morte dura, +Sendo todos de um ventre produzidos? +Não vedes a divina sepultura +Possuída de cães, que sempre unidos +Vos vêm tomar a vossa antiga terra, +Fazendo-se famosos pela guerra? + +10 +Vedes que têm por uso e por decreto, +Do qual são tão inteiros observantes, +Ajuntarem o exército inquieto +Contra os povos que são de Cristo amantes; +Entre vós nunca deixa a fera Aleto +De semear cizânias repugnantes: +Olhai se estais seguros de perigos, +Que eles e vós sois vossos inimigos. + +11 +Se cobiça de grandes senhorios +Vos faz ir conquistar terras alheias, +Não vedes que Pactolo e Hermo, rios, +Ambos volvem auríferas areias? +Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios; +África esconde em si luzentes veias; +Mova-vos já sequer riqueza tanta, +Pois mover-vos não pode a Casa Santa. + +12 +Aquelas invenções feras e novas +De instrumentos mortais da artilharia, +Já devem de fazer as duras provas +Nos muros de Bizâncio e de Turquia. +Fazei que torne lá às silvestres covas +Dos Cáspios montes, e da Cítia fria +A Turca geração, que multiplica +Na polícia da vossa Europa rica. + +13 +Gregos, Traces, Arménios, Georgianos, +Bradando-vos estão que o povo bruto +Lhe obriga os caros filhos aos profanos +Preceptos do Alcorão (duro tributo!) +Em castigar os feitos inumanos +Vos gloriai de peito forte e astuto, +E não queirais louvores arrogantes +De serdes contra os vossos muito possantes. + +14 +Mas entanto que cegos o sedentos +Andais de vosso sangue, ó gente insana! +Não faltarão Cristãos atrevimentos +Nesta pequena casa Lusitana: +De África tem marítimos assentos, +É na Ásia mais que todas soberana, +Na quarta parte nova os campos ara, +E se mais mundo houvera, lá chegara. + +15 +E vejamos entanto que acontece +Aqueles tão famosos navegantes, +Depois que a branda Vénus enfraquece +O furor vão dos ventos repugnantes: +Depois que a larga terra lhe aparece, +Fim de suas porfias tão constantes, +E dar novo costume e novo Rei. + +16 +Tanto que à nova terra se chegaram, +Leves embarcações de pescadores +Acharam, que o caminho lhe mostraram +De Calecu, onde eram moradores. +Para lá logo as proas se inclinaram, +Porque esta era a cidade das melhores +Do Malabar melhor, onde vivia +O Rei que a terra toda possuía. + +17 +Além do Indo jaz, e aquém do Gange, +Um terreno muito grande e assaz famoso, +Que pela parte Austral o mar abrange, +E para o Norte o Emódio cavernoso. +Jugo de Reis diversos o constrange +A várias leis: alguns o vicioso +Mahoma, alguns os ídolos adoram, +Alguns os animais, que entre eles morri. + +18 +Lá bem no grande monte, que cortando +Tão larga terra, toda Ásia discorre, +Que nomes tão diversos vai tomando, +Segundo as regiões por onde corre, +As fontes saem, donde vêm manando +Os rios, cuja grã corrente morre +No mar Índico, e cercam todo o peso +Do terreno, fazendo-o Quersoneso. + +19 +Entro um e outro rio, em grande espaço, +Sai da larga terra uma loira ponta +Quase piramidal, que no regaço +Do mar com Ceilão ínsula confronta; +E junto donde nasce o largo braço +Gangético, o rumor antigo conta +Que os vizinhos, da terra moradores, +Do cheiro se mantêm das finas flores. + +20 +Mas agora de nomes e de usança +Novos e vários são os habitantes: +Os Delis, os Patanes, que em possança +De terra e gente, são mais abundantes; +Decanis, Oriás, que a esperança +Têm de sua salvação nas ressonantes +Águas do Gange, e a terra de Bengala +Fértil de sorte que outra não lhe iguala. + +21 +O Reino de Cambaia belicoso +(Dizem que foi de Poro, Rei potente) +O Reino de Narsinga, poderoso +Mais de ouro e pedras que de forte gente. +Aqui se enxerga lá do mar undoso +Um monte alto, que corre longamente, +Servindo ao Malabar de forte muro, +Com que do Canará vive seguro. + +22 +Da terra os naturais lhe chamam Gate, +Do pé do qual pequena quantidade +Se estende uma fralda estreita, que combate +Do mar a natural ferocidade. +Aqui de outras cidades, sem debate, +Calecu tem a ilustre dignidade +De cabeça de Império rica e bela: +Samorim se intitula o senhor dela. + +23 +Chegada a frota ao rico senhorio, +Um Português mandado logo parte + A fazer sabedor o Rei gentio +Da vinda sua a tão remota parte. +Entrando o mensageiro pelo rio, +Que ali nas ondas entra, a não vista arte, +A cor, o gesto estranho, o trajo novo +Fez concorrer a vê-lo todo o povo. + +24 +Entre a gente que a vê-lo concorria, +Se chega um Mahometa, que nascido +Fora na região da Berberia, +Lá onde fora Anteu obedecido: +Ou pela vizinhança já teria +O Reino Lusitano conhecido, +Ou foi já assinalado de seu ferro: +Fortuna o trouxe a tão loiro desterro. + +25 +Em vendo o mensageiro, com jocundo +Rosto, como quem sabe a língua Hispana, +Lhe disse: "Quem te trouxe a estoutro mundo, +Tão longe da tua pátria Lusitana?" +--"Abrindo, lhe responde, o mar profundo, +Por onde nunca veio gente humana, +Vimos buscar do Indo a grão corrente, +Por onde a Lei divina se acrescente." + +26 +Espantado ficou da grã viagem +O Mouro, que Monçaide se chamava, +Ouvindo as opressões que na passagem +Do mar, o Lusitano lhe contava: +Mas vendo enfim que a f orça da mensagem +Só para o Rei da terra relevava, +Lhe diz que estava f ora da cidade, +Mas de caminho pouca quantidade. + +27 +E que, entanto que a nova lhe chegasse +De sua estranha vinda, se queria, +Na sua pobre casa repousasse, +E do manjar da terra comeria, +E depois que se um pouco recreasse, +Com ele para a armada tornaria, +Que alegria não pode ser tamanha, +Que achar gente vizinha em terra estranha. + +28 +O Português aceita de vontade +O que o ledo Monçaide lhe oferece; +Como se longa fora já a amizade, +Com ele come, e bebe, e lhe obedece. +Ambos se tornam logo da cidade +Para a frota, que o Mouro bem conhece; +Sobem à capitania; e toda a gente +Monçaide recebeu benignamente. + +29 +O Capitão o abraça em cabo ledo, +Ouvindo clara a língua de Castela; +Junto de si o assenta, e pronto e quedo, +Pela terra pergunta, e cousas dela. +Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo, +Só por ouvir o amante da donzela +Eurídice, tocando a lira de ouro, +Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro. + +30 +Ele começa: "Ó gente, que a natura +Vizinha fez de meu paterno ninho, +Que destino tão grande ou que ventura +Vos trouxe a cometerdes tal caminho? +Não é sem causa, não, oculta e escura, +Vir do longínquo Tejo e ignoto Minho, +Por mares nunca doutro lenho arados, +A Reinos tão remotos e apartados. + +31 +"Deus por certo vos traz, porque pretende +Algum serviço seu por vós obrado; +Por isso só vos guia, e vos defende +Dos inimigos, do mar, do vento irado. +Sabei que estais na Índia, onde se estende +Diverso povo, rico e prosperado +De ouro luzente e fina pedraria, +Cheiro suave, ardente especiaria. + +32 +"Esta província, cujo porto agora +Tomado tendes, Malabar se chama: +Do culto antigo os ídolos adora, +Que cá por estas partes se derrama: +De diversos Reis é, mas dum só +Noutro tempo, segundo a antiga fama; +Saramá Perimal foi derradeiro +Rei, que este Reino teve unido e inteiro. + +33 +"Porém, como a esta terra então viessem +De lá do seio Arábico outras gentes, +Que o culto Mahomético trouxessem, +No qual me instituíram meus parentes, +Sucedeu que pregando convertessem +O Perimal: de sábios e eloquentes, +Fazem-lhe a lei tomar com fervor tanto, +Que pressupôs de nela morrer santo. + +34 +"Naus arma, e nelas mete curioso +Mercadoria, que ofereça rica, +Para ir nelas a ser religioso, +Onde o profeta jaz, que a Lei publica; +Antes que parta, o Reino poderoso +Com os seus reparte, porque não lhe fica +Herdeiro próprio, faz os mais aceitos +Ricos de pobres, livres de sujeitos. + +35 +"A um Cochim, e a outro Cananor, +A qual Chalé, a qual a ilha da Pimenta, +A qual Coulão, a qual dá Cranganor, +E os mais, a quem o mais serve e contenta, +Um só moço, a quem tinha muito amor, +Depois que tudo deu, se lhe apresenta: +Para este Calecu somente fica, +Cidade já por trato nobre e rica. + +36 +"Esta lhe dá com o título excelente +De Imperador, que sobre os outros mande. +Isto feito, se parte diligente +Para onde em santa vida acabe, e ande. +E daqui fica o nome de potente +Samori, mais que todos digno e grande, +Ao moço e descendentes; donde vem +Este, que agora o Império manda e tem. + +37 +"A Lei da gente toda, rica e pobre, +De fábulas composta se imagina: +Andam nus, e somente um pano cobre +As partes, que a cobrir natura ensina. +Dois modos há de gente, porque a nobre +Naires chamados são, e a menos digna +Poleás tem por nome, a quem obriga +A Lei não misturar a casta antiga. + +38 +"Porque os que usaram sempre um mesmo ofício, +De outro não podem receber consorte, +Nem os filhos terão outro exercício, +Senão o de seus passados, até morte. +Para os Naires é certo grande vício +Destes serem tocados; de tal sorte, +Que quando algum se toca, por ventura, +Com cerimónias mil se alimpa e apura. + +39 +"Desta sorte o Judaico povo antigo +Não tocava na gente de Samária. +Mais estranhezas ainda das que digo +Nesta terra vereis de usança vária. +Os Naires sós são dados ao perigo +Das armas; sós defendem da contrária +Banda o seu Rei, trazendo sempre usada +Na esquerda a adarga e na direita a espada. + +40 +"Brâmenes são os seus religiosos, +Nome antigo e de grande proeminência: +Observam os preceitos tão famosos +Dum que primeiro pôs nome à ciência: +Não matam coisa viva, e, temerosos, +Das carnes têm grandíssima abstinência; +Somente no venéreo ajuntamento +Têm mais licença e menos regimento. + +41 +"Gerais são as mulheres, mas somente +Para os da geração de seus maridos: +Ditosa condição, ditosa gente, +Que não são de ciúmes ofendidos! +Estes e outros costumes variamente +São pelos Malabares admitidos. +A terra é grossa em trato, em tudo aquilo +Que as ondas podem dar da China ao Nilo." + +42 +Assim contava o Mouro; mas vagando +Andava a fama já pela cidade +Da vinda desta gente estranha, quando +O Rei saber mandava da verdade. +Já vinham pelas ruas caminhando, +Rodeados de todo sexo e idade, +Os principais, que o Rei buscar mandara +O Capitão da armada, que chegara. + +43 +Mas ele, que do Rei já tem licença +Para desembarcar, acompanhado +Dos nobres Portugueses, sem detença +Parte, de ricos panos adornado. +Das cores a formosa diferença +A vista alegra ao povo alvoroçado. +O remo compassado fere frio +Agora o mar, depois o fresco rio. + +44 +Na praia um regedor do Reino estava, +Que na sua língua Catual se chama, +Rodeado de Naires, que esperava +Com desusada festa o nobre Gama. +Já na terra, nos braços o levava, +E num portátil leito uma rica cama +Lhe oferece, em que vá, costume usado, +Que nos ombros dos homens é levado. + +45 +Desta arte o Malabar, destarte o Luso +Caminham, lá para onde o Rei o espera: +Os outros Portugueses vão ao uso +Que infantaria segue, esquadra fera. +O povo que concorre vai confuso +De ver a gente estranha, e bem quisera +Perguntar: mas no tempo já passado +Na torre de Babel lhe foi vedado. + +46 +O Gama e o Catual iam falando +Nas coisas, que lhe o tempo oferecia; +Monçaide entre eles vai interpretando +As palavras que de ambos entendia. +Assim pela cidade caminhando, +Onde uma rica fábrica se erguia +De um sumptuoso templo, já chegavam, +Pelas portas do qual juntos entravam. + +47 +Ali estão das deidades as figuras +Esculpidas em pau e em pedra fria; +Vários de gestos, vários de pinturas, +A segundo o Demónio lhe fingia: +Vêem-se as abomináveis esculturas, +Qual a Quimera em membros se varia: +Os Cristãos olhos, a ver Deus usados +Em forma humana, estão maravilhados. + +48 +Um na cabeça cornos esculpidos, +Qual Júpiter Amon em Líbia estava; +Outro num corpo rostos tinha unidos, +Bem como o antigo Jano se pintava; +Outro com muitos braços divididos +A Briareu parece que imitava; +Outro fronte canina tem de fora, +Qual Anúbis Menfítico se adora. + +49 +Aqui feita do bárbaro gentio +A supersticiosa adoração, +Direitos vão, sem outro algum desvio, +Para onde estava o Rei do povo vão. +Engrossando-se vai da gente o fio, +Com os que vêm ver o estranho Capitão; +Estão pelos telhados e janelas +Velhos e moços, donas e donzelas. + +50 +Já chegam perto, e não com passos lentos, +Dos jardins odoríferos formosos, +Que em si escondem os régios aposentos, +Altos de torres não, mas sumptuosos. +Edificam-se os nobres seus assentos +Por entre os arvoredos deleitosos: +Assim vivem os Reis daquela gente, +No campo e na cidade juntamente. + +51 +Pelos portais da cerca a sutileza +Se enxerga da Dedálea facultade, +Em figuras mostrando, por nobreza, +Da Índia a mais remota antiguidade. +Afiguradas vão com tal viveza +As histórias daquela antiga idade, +Que quem delas tiver notícia inteira, +Pela sombra conhece a verdadeira. + +52 +Estava um grande exército que pisa +A terra Oriental, que o Idaspe lava; +Rege-o um capitão de fronte lisa, +Que com frondentes tirsos pelejava; +Por ele edificada estiva Nisa +Nas ribeiras do rio, que manava, +Tão próprio, que se ali estiver Semele, +Dirá, por certo, que é seu filho aquele. + +53 +Mais avante bebendo seca o rio +Mui grande multidão da Assíria gente, +Sujeita a feminino senhorio +De uma tão bela como incontinente. +Ali tem junto ao lado nunca frio, +Esculpido o feroz ginete ardente, +Com quem teria o filho competência: +Amor nefando, bruta incontinência! + +54 +Daqui mais apartadas tremulavam +As bandeiras de Grécia gloriosas, +Terceira Monarquia, e sojugavam +Até as águas Gangéticas undosas. +Dum capitão mancebo se guiavam, +De palmas rodeado valerosas, +Que já, não de Filipo, mas sem falta +De progénie de Júpiter se exalta. + +55 +Os Portugueses vendo estas memórias, +Dizia o Catual ao Capitão: +"Tempo cedo virá que outras vitórias +Estas, que agora olhais, abaterão; +Aqui se escreverão novas histórias +Por gentes estrangeiras que virão; +Que os nossos sábios magos o alcançaram +Quando o tempo futuro especularam. + +56 +"E diz-lhe mais a mágica ciência +Que, para se evitar força tamanha, +Não valerá dos homens resistência, +Que contra o Céu não val da gente manha; +Mas também diz que a bélica excelência, +Nas armas e na paz, da gente estranha +Será tal, que será no mundo ouvido +O vencedor, por glória do vencido," + +57 +Assim falando entravam já na sala, +Onde aquele potente Imperador +Numa camilha jaz, que não se iguala +De outra alguma no preço e no lavor. +No recostado gesto se assinala +Um venerando e próspero senhor; +Um pano de ouro cinge, e na cabeça +De preciosas gemas se adereça. + +58 +Bem junto dele um velho reverente, +Com os giolhos no chão, de quando em quando +Lhe dava a verde folha da erva ardente, +Que a seu costume estava ruminando. +Um Brâmene, pessoa proeminente, +Para o Gama vem com passo brando, +Para que ao grande Príncipe o apresente, +Que diante lhe acena que se assente. + +59 +Sentado o Gama junto ao rico leito, +Os seus mais afastados, pronto em vista +Estava o Samori no trajo e jeito +Da gente, nunca de antes dele vista. +Lançando a grave voz do sábio peito, +Que grande autoridade logo aquista +Na opinião do Rei e do povo todo, +O Capitão lhe fala deste modo: + +60 +"Um grande Rei, de lá das partes Onde +O céu volúvel, com perpétua roda, +Da terra a luz solar com a terra esconde, +Tingindo a que deixou de escura noda, +Ouvindo do rumor que lá responde +O eco, como em ti da Índia toda +O principado está, e a majestade, +Vínculo quer contigo de amizade. + +61 +"E por longos rodeios a ti manda, +Por te fazer saber que tudo aquilo +Que sobre o mar, que sobre as terras anda +De riquezas, de lá do Tejo ao Nilo, +E desde a fria plaga de Gelanda +Até bem donde o Sol não muda o estilo +Nos dias, sobre a gente de Etiópia, +Tudo tem no seu Reino em grande cópia. + +62 +"E se queres com pactos e alianças +De paz e de amizade sacra e nua +Comércio consentir das abastanças +Das fazendas da terra sua e tua, +Por que cresçam as rendas e abastanças, +Por quem a gente mais trabalha e sua, +De vossos Reinos, será certamente +De ti proveito, o dele glória ingente. + +63 +"E sendo assim, que o nó desta amizade +Entre vós firmemente permaneça, +Estará pronto a toda adversidade, +Que por guerra a teu Reino se ofereça, +Com gente, armas e naus, de qualidade +Que por irmão te tenha e te conheça; +E da vontade em ti sobre isto posta +Me dês a mim certíssima resposta." + +64 +Tal embaixada dava o Capitão, +A quem o Rei gentio respondia +Que, em ver embaixadores de nação +Tão remota, grã glória recebia; +Mas neste caso a última tenção +Com os de seu conselho tomaria, +Informando-se certo de quem era +O Rei, e a gente, e terra que dissera.. + +65 +E que entanto podia do trabalho +Passado ir repousar, e em tempo breve +Daria a seu despacho um justo talho, +Com que a seu Rei resposta alegre leve. +Já nisto punha a noite o usado atalho +As humanas canseiras, por que ceve +De doce sono os membros trabalhados, +Os olhos ocupando ao ócio dados. + +66 +Agasalhados foram juntamente +O Gama e Portugueses no aposento +Do nobre Regedor da Índica gente, +Com festas e geral contentamento. +O Catual, no cargo diligente +De seu Rei, tinha já por regimento +Saber da gente estranha donde vinha, +Que costumes, que lei, que terra tinha. + +67 +Tanto que os ígneos carros do formoso +Mancebo Délio viu, que a luz renova, +Manda chamar Monçaide, desejoso +De poder-se informar da gente nova. +Já lhe pergunta pronto e curioso, +Se tem notícia inteira e certa prova +Dos estranhos, quem são; que ouvido tinha +Que é gente de sua pátria muito vizinha; + +68 +Que particularmente ali lhe desse +Informação mui larga, pois faria +Nisso serviço ao Rei, por que soubesse +O que neste negócio se faria. +Monçaide torna:--"Posto que eu quisesse +Dizer-te disto mais, não saberia; +Somente sei que é gente lá de Espanha, +Onde o meu ninho e o Sol no mar se banha. + +69 +"Têm a lei dum Profeta, que gerado +Foi sem fazer na carne detrimento +Da mãe, tal que por bafo está aprovado +Do Deus, que tem do mundo o regimento, +O que entre meus antigos é vulgado +Deles, é que o valor sanguinolento +Das armas no seu braço resplandece, +O que em nossos passados se parece. + +70 +"Porque eles, com virtude sobre-humana, +Os deitaram dos campos abundosos +Do rico Tejo e fresco Goadiana, +Com feitos memoráveis e famosos: +E não contentes ainda, e na Africana +Parte, cortando os mares procelosos, +Nos não querem deixar viver seguros, +Tomando-nos cidades e altos muros. + +71 +"Não menos têm mostrado esforço e manha +Em quaisquer outras guerras que aconteças, +Ou das gentes belígeras de Espanha, +Ou lá dalguns que do Pírene desçam. +Assim que nunca enfim com lança estranha +Se tem, que por vencidos se conheçam, +Nem se sabe ainda, não, te afirmo e asselo, +Para estes Anibais nenhum Marcelo. + +72 +"E se esta informação não for inteira +Tanto quanto convém, deles pretende +Informar-te, que é gente verdadeira, +A quem mais falsidade enoja e ofende: +Vai ver-lhe a f rota, as armas e a maneira +Do fundido metal, que tudo rende, +E folgarás de veres a polícia +Portuguesa na paz e na milícia." + +73 +Já com desejos o Idolatra ardia +De ver isto, que o Mouro lhe contava. +Manda esquipar batéis que ir ver queria +Os lenhos em que o Gama navegava. +Ambos partem da praia, a quem seguia +A Naira geração, que o mar coalhava. +A capitania sobem forte e bela, +Onde Paulo os recebe a bordo dela. + +74 +Purpúreos são os toldos, e as bandeiras +Do rico fio são que o bicho gera; +Nelas estão pintadas as guerreiras +Obras, que o forte braço já fizera: +Batalhas tem campais, aventureiras, +Desafios cruéis, pintura fera, +Que, tanto que ao Gentio se apresenta, +A tento nela os olhos apascenta. + +75 +Pelo que vê pergunta; mas o Gama +Lhe pedia primeiro que se assente, +E que aquele deleite, que tanto ama +A seita Epicureia, experimente. +Dos espumantes vasos se derrama +O licor que Noé mostrara à gente: +Mas comer o Gentio não pretende, +Que a seita que seguia lho defende. + +76 +A trombeta que, em paz, no pensamento +Imagem faz de guerra, rompe os ares; +Com o fogo o diabólico instrumento +Se faz ouvir no fundo lá dos mares. +Tudo o Gentio nota; mas o intento +Mostrava sempre ter nos singulares +Feitos dos homens, que em retrato breve +A muda poesia ali descreve + +77 +Alça-se em pé, com ele o Gama junto, +Coelho de outra parti, e o Mauritano; +Os olhos põe no bélico transunto +De um velho branco, aspecto venerando +Cujo nome não pode ser defunto +Enquanto houver no mundo trato humano: +No trajo a Grega usança está perfeita, +Um ramo por insígnia na direita. + +78 +Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego! +Eu, que cometo insano e temerário, +Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego, +Por caminho tão árduo, longo e vário! +Vosso favor invoco, que navego +Por alto mar, com vento tão contrário, +Que, se não me ajudais, hei grande medo +Que o meu fraco batel se alague cedo. + +79 +Olhai que há tanto tempo que, cantando +O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, +A fortuna mo traz peregrinando, +Novos trabalhos vendo, e novos danos: +Agora o mar, agora experimentando +Os perigos Mavórcios inumanos, +Qual Canace, que à morte se condena, +Numa mão sempre a espada, e noutra a pena. + +80 +Agora, com pobreza avorrecida, +Por hospícios alheios degradado; +Agora, da esperança já adquirida, +De novo, mais que nunca, derribado; +Agora às costas escapando a vida, +Que dum fio pendia tão delgado +Que não menos milagre foi salvar-se +Que para o Rei Judaico acrescentar-se. + +81 +E ainda, Ninfas minhas, não bastava +Que tamanhas misérias me cercassem, +Senão que aqueles, que eu cantando andava +Tal prémio de meus versos me tornassem: +A troco dos descansos que esperava, +Das capelas de louro que me honrassem, +Trabalhos nunca usados me inventaram, +Com que em tão duro estado me deitaram. + +82 +Vede, Ninfas, que engenhos de senhores +O vosso Tejo cria valorosos, +Que assim sabem prezar com tais favores +A quem os faz, cantando, gloriosos! +Que exemplos a futuros escritores, +Para espertar engenhos curiosos, +Para porem as coisas em memória, +Que merecerem ter eterna glória! + +83 +Pois logo em tantos males é forçado, +Que só vosso favor me não faleça, +Principalmente aqui, que sou chegado +Onde feitos diversos engrandeça: +Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado +Que não o empregue em quem o não mereça, +Nem por lisonja louve algum subido, +Sob pena de não ser agradecido. + +84 +Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse +A quem ao bem comum e do seu Rei +Antepuser seu próprio interesse, +Inimigo da divina e humana Lei. +Nenhum ambicioso, que quisesse +Subir a grandes cargos, cantarei, +Só por poder com torpes exercícios +Usar mais largamente de seus vícios; + +85 +Nenhum que use de seu poder bastante, +Para servir a seu desejo feio, +E que, por comprazer ao vulgo errante, +Se muda em mais figuras que Proteio. +Nem, Camenas, também cuideis que canto +Quem, com hábito honesto e grave, veio, +Por contentar ao Rei no ofício novo, +A despir e roubar o pobre povo. + +86 +Nem quem acha que é justo e que é direito +Guardar-se a lei do Rei severamente, +E não acha que é justo e bom respeito, +Que se pague o suor da servil gente; +Nem quem sempre, com pouco experto peito, +Razões aprende, e cuida que é prudente, +Para taxar, com mão rapace e escassa, +Os trabalhos alheios, que não passa. + +87 +Aqueles sós direi, que aventuraram +Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida, +Onde, perdendo-a, em fama a dilataram, +Tão bem de suas obras merecida. +Apolo, e as Musas que me acompanharam, +Me dobrarão a fúria concedida, +Enquanto eu tomo alento descansado, +Por tornar ao trabalho, mais folgado. + +Canto Oitavo + +1 +Na primeira figura se detinha +O Catual que vira estar pintada, +Que por divisa um ramo na mão tinha, +A barba branca, longa e penteada: +"Quem era, e por que causa lhe convinha +A divisa, que tem na mão tomada?" +Paulo responde, cuja voz discreta +O Mauritano sábio lhe interpreta. + +2 +"Estas figuras todas que aparecem, +Bravos em vista e feros nos aspectos, +Mais bravos e mais feros se conhecem, +Pela fama, nas obras e nos feitos: +Antigos são, mas ainda resplandecem +Colo nome, entre os engenhos mais perfeito +Este que vês é Luso, donde a fama +O nosso Reino Lusitânia chama. + +3 +"Foi filho e companheiro do Tebano, +Que tão diversas partes conquistou; +Parece vindo ter ao ninho Hispano +Seguindo as armas, que contino usou; +Do Douro o Guadiana o campo ufano, +Já dito Elísio, tanto o contentou, +Que ali quis dar aos já cansados ossos +Eterna sepultura, e nome aos nossos. + +4 +"O ramo que lhe vês para divisa, +O verde tirso foi de Baco usado; +O qual à nossa idade amostra e avisa +Que foi seu companheiro e filho amido. +Vês outro, que do Tejo a terra pisa, +Depois de ter tão longo mar arado, +Onde muros perpétuos edifica, +E templo a Palas, que em memória fica? + +5 +"Ulisses é o que faz a santa casa +A Deusa, que lhe dá língua facunda; +Que, se lá na Ásia Tróia insigne abrasa, +Cá na Europa Lisboa ingente funda." +--"Quem será estoutro cá, que o campo arrasa +De mortos, com presença furibunda? +Grandes batalhas tem desbaratadas, +Que as águias nas bandeiras tem pintadas." + +6 +Assim o Gentio diz. Responde o Gama: +--"Este que vês, pastor já foi de gado; +Viriato sabemos que se chama, +Destro na lança mais que no cajado; +Injuriada tem de Roma a f ama, +Vencedor invencível afamado; +Não tem com ele, não, nem ter puderam +O primor que com Pirro já tiveram. + +7 +"Com força, não; com manha vergonhosa, +A vida lhe tiraram que os espanta: +Que o grande aperto, em gente ainda que honrosa, +As vezes leis magnânimas quebranta. +Outro está aqui que, contra a pátria irosa, +Degradado, conosco se alevanta: +Escolheu bem com quem se alevantasse, +Para que eternamente se ilustrasse. + +8 +"Vês? conosco também vence as bandeiras +Dessas aves de Júpiter validas; +Que já naquele tempo as mais Guerreiras +Gentes de nós souberam ser vencidas. +Olha tão subtis artes e maneiras, +Para adquirir os povos, tão fingidas, +A fatídica Cerva que o avisa: +Ele é Sertório, e ela a sua divisa. + +9 +"Olha estoutra bandeira, e vê pintado +O grã progenitor dos Reis primeiros. +Nós Úngaro o fazemos, porém nado +Crêem ser em Lotaríngia os estrangeiros. +Depois de ter com os Mouros superado, +Galegos e Leoneses cavaleiros, +A casa Santa passa o santo Henrique, +Por que o tronco dos Reis se santifique." + +10 +"Quem é, me diz, este outro que me espanta, +(Pergunta o Malabar maravilhado) +Que tantos esquadrões, que gente tanta, +Com tão pouca, tem roto e destroçado? +Tantos muros aspérrimos quebranta, +Tantas batalhas dá, nunca cansado, +Tantas coroas tem por tantas partes +A seus pés derribadas, e estandartes!" + +11 +--"Este é o primeiro Afonso, disse o Gama, +Que todo Portugal aos Mouros toma; +Por quem, no Estígio lago, jura a Fama +De mais não celebrar nenhum de Roma. +Este é aquele zeloso a quem Deus ama, +Com cujo braço o Mouro inimigo doma, +Para quem de seu Reino abaixa os muros, +Nada deixando já para os futuros, + +12 +"Se César, se Alexandre Rei, tiveram +Tão pequeno poder, tão pouca gente, +Contra tantos inimigos quantos eram +Os que desbaratava este excelente, +Não creias que seus nomes se estendera +Com glórias imortais tão largamente; +Mas deixa os feitos seus inexplicáveis, +Vê que os de seus vassalos são notáveis. + +13 +"Este que vês olhar com gesto irado +Para o rompido aluno mal sofrido, +Dizendo-lhe que o exército espalhado +Recolha, e torne ao campo defendido; +Torna o moço do velho acompanhado, +Que vencedor o torna de vencido: +Egas Moniz se chama o forte velho, +Para leais vassalos claro espelho. + +14 +"Vê-lo cá vai com os filhos a entregar-se, +A corda ao colo, nu de seda e pano, +Porque não quis o moço sujeitar-se, +Como ele prometera, ao Castelhano. +Fez com siso e promessas levantar-se +O cerco, que já estava soberano; +Os filhos e mulher obriga à pena: +Para que o senhor salve, a si condena. + +15 +"Não fez o Cônsul tanto, que cercado +Foi nas forças Caudinas, de ignorante, +Quando a passar por baixo foi forçado +Do Samnítico jugo triunfante. +Este, pelo seu povo injuriado, +A si se entrega só, firme e constante; +Estoutro a si, e os filhos naturais, +E a consorte sem culpa, que dói mais. + +16 +"Vês este que, saindo da cilada, +Dá sobre o Rei que cerca a vila forte? +Já o Rei tem preso e a vila descercada: +Ilustre feito, digno de Mavorte! +Vê-lo cá vai pintado nesta armada, +No mar também aos Mouros dando a morto, +Tomando-lhe as galés, levando a glória +Da primeira marítima vitória. + +17 +"É, Dom Fuas Roupinho, que na terra +E no mar resplandece juntamente, +Com o fogo que acendeu junto da serra +De Abila, nas galés da Maura gente. +Olha como, em tão justa e santa guerra, +De acabar pelejando está contente: +Das mãos dos Mouros entra a feliz alma, +Triunfando, nos céus, com justa palma. + +18 +"Não vês um ajuntamento, de estrangeiro +Trajo, sair da grande armada nova, +Que ajuda a combater o Rei primeiro +Lisboa, de si dando santa prova? +Olha Henrique, famoso cavaleiro, +A palma que lhe nasce junto à cova. +Por eles mostra Deus milagre visto: +Germanos são os mártires de Cristo. + +19 +"Um Sacerdote vê brandindo a espada +Contra Arronches, que toma, por vingança +De Leiria, que de antes foi tomada +Por quem por Mafamede enresta a lança: +É Teotónio, Prior. Mas vê cercada +Santarém, e verás a segurança +Da figura nos muros, que primeira +Subindo, ergueu das Quinis a bandeira. + +20 +"Vê-lo cá, donde Sancho desbarata +Os Mouros de Vandália em fera guerra; +Os inimigos rompendo, o alferes mata +E o Hispálico pendão derriba em terra: +Mem Moniz é, que em si o valor retrata, +Que o sepulcro do pai com os ossos cerra, +Digno destas bandeiras, pois sem falta +A contrária derriba e a sua exalta. + +21 +"Olha aquele que desce pela lança? +Com as duas cabeças dos vigias, +Onde a cilada esconde, com que alcança +A cidade por manhas e ousadias. +Ela por armas toma a semelhança +Do cavaleiro, que as cabeças frias +Na mão levava (feito nunca feito!) +Giraldo Sem-pavor é o forte peito. + +22 +"Não vês um Castelhano, que agravado +De Afonso nono rei, pelo ódio antigo +Dos de Lara, com os Mouros é deitado, +De Portugal fazendo-se inimigo? +Abrantes vila toma, acompanhado +Dos duros infiéis que traz consigo. +Mas vê que um Português com pouca gente +O desbarata e o prende ousadamente. + +23 +"Martim Lopes se chama o cavaleiro, +Que destes levar pode a palma e o louro. +Mas olha um Eclesiástico guerreiro, +Que em lança de aço torna o Bago de ouro. +Vê-lo entre os duvidosos tão inteiro +Em não negar batalha ao bravo Mouro; +Olha o sinal no céu que lhe aparece, +Com que nos poucos seus o esforço cresce. + +24 +"Vós? vão os Reis de Córdova e Sevilha +Rotos, com os outros dois, e não de espaço. +Rotos? mas antes mortos, maravilha +Feita de Deus, que não de humano braço. +Vês? já a vila de Alcáçare se humilha, +Sem lhe valer defesa, ou muro de aço, +A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa, +Que a coroa da palma ali coroa. + +25 +"Olha um Mestre que desce de Castela, +Português de nação, como conquista +A terra dos Algarves, e já nela +Não acha quem por armas lhe resista; +Com manha, esforço, e com benigna estrela, +Vilas, castelos toma à escala vista. +Vês Tavila tomada aos moradores, +Em vingança dos sete caçadores! + +26 +"Vês? com bélica astúcia ao Mouro ganha +Silves, que ele ganhou com força ingente: +É Dom Paio Correia, cuja manha +E grande esforço faz inveja à gente. +Mas não passes os três que em França e Espanha +Se fazem conhecer perpetuamente +Em desafios, justas e torneios, +Nelas deixando públicos troféus. + +27 +"Vê-los, com o nome vêm de aventureiros +A Castela, onde o preço sós levaram +Dos jogos de Belona verdadeiros, +Que com dano de alguns se exercitaram. +Vê mortos os soberbos cavaleiros, +Que o principal dos três desafiaram, +Que Gonçalo Ribeiro se nomeia, +Que pode não temer a lei Leteia. + +28 +"Atenta num, que a fama tanto estende, +Que de nenhum passado se contenta; +Que a pátria, que de um fraco fio pende, +Sobre seus duros ombros a sustenta. +Não no vês tinto de ira, que reprende +A vil desconfiança inerte e lenta +Do povo, e faz que tome o doce freio +De Rei seu natural, e não de alheio? + +29 +"Olha: por seu conselho e ousadia +De Deus guiada só, e de santa estrela, +Só pode o que impossível parecia: +Vencer o povo ingente de Castela. +Vês, por indústria, esforço e valentia, +Outro estrago e vitória clara e bela, +Na gente, assim feroz como infinita, +Que entre o Tarteso e Goadiana habita? + +30 +"Mas não vês quase já desbaratado +O poder Lusitano, pela ausência +Do Capitão devoto, que, apartado +Orando invoca a suma e trina Essência? +Vê-lo com pressa já dos seus achado, +Que lhe dizem que falta resistência +Contra poder tamanho, e que viesse, +Por que consigo esforço aos fracos desse? + +31 +"Mas olha com que santa confiança, +--Que inda não era tempo,--respondia, +Como quem tinha em Deus a seguraria +Da vitória que logo lhe daria. +Assim Pompílio, ouvindo que a possança +Dos inimigos a terra lhe corria, +A quem lhe a dura nova estava dando, +-"Pois eu, responde, estou sacrificando."-- + +32 +"Se quem com tanto esforço em Deus se atreve, +Ouvir quiseres como se nomeia, +Português Cipião chamar-se deve; +Mas mais de Dom Nuno Alvares se arreia: +Ditosa pátria que tal filho teve! +Mas antes pai, que enquanto o Sol rodeia +Este globo de Ceres e Netuno, +Sempre suspirará por tal aluno. + +33 +"Na mesma guerra vê que presas ganha +Estoutro Capitão de pouca gente; +Comendadores vence e o gado apanha, +Que levavam roubado ousadamente. +Outra vez vê que a lança em sangue banha +Destes, só por livrar com o amor ardente +O preso amigo, preso por leal: +Pêro Rodrigues é do Landroal. + +34 +"Olha este desleal o como paga +O perjúrio que fez e vil engano: +Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga, +E faz vir a passar o último dano: +De Xerez rouba o campo, e quase alaga +Com o sangue de seus donos Castelhano. +Mas olha Rui Pereira, que com o rosto +Faz escudo às galés, diante posto. + +35 +"Olha que dezessete Lusitanos, +Neste outeiro subidos se defendem, +Fortes, de quatrocentos Castelhanos, +Que em derredor, pelos tomar, se estendem; +Porém logo sentiram, com seus danos, +Que não só se defendem, mas ofendem: +Digno feito de ser no mundo eterno, +Grande no tempo antigo e no moderno. + +36 +"Sabe-se antigamente que trezentos +Já contra mil Romanos pelejaram, +No tempo que os viris atrevimentos +De Viriato tanto se ilustraram, +E deles alcançando vencimentos +Memoráveis, de herança nos deixaram +Que os muitos, por ser poucos, não temamos: +O que depois mil vezes amestramos. + +37 +"Olha cá dois infantes, Pedro e Henrique, +Progénie generosa de Joane: +Aquele faz que fama ilustre fique +Dele em Germânia, com que a morte engane; +Este, que ela nos mares o publique +Por seu descobridor, e desengane +De Ceita a Maura túmida vaidade, +Primeiro entrando as portas da cidade. + +38 +"Vês o conde Dom Pedro, que sustenta +Dois cercos contra toda a Barbaria? +Vês, outro Conde está, que representa +Em terra Marte, em forças e ousadia; +De poder defender se não contenta +Alcácere da ingente companhia; +Mas do seu Rei defende a cara vida, +Pondo por muro a sua, ali perdida. + +39 +"Outros muitos verias, que os pintores +Aqui também por certo pintariam; +Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores, +Honra, prémio, favor, que as artes criam: +Culpa dos viciosos sucessores, +Que degeneram, certo, e se desviam +Do lustre e do valor dos seus passados, +Em gostos e vaidades atolados. + +40 +"Aqueles pais ilustres que já deram +Princípio à geração que deles pende, +Pela virtude muito então fizeram, +E por deixar a casa, que descende. +Cegos, que dos trabalhos que tiveram, +Se alta fama e rumor deles se estende, +Escuros deixam sempre seus menores, +Com lhe deixar descansos corruptores. + +41 +"Outros também há grandes e abastados, +Sem nenhum tronco ilustre donde venham; +Culpa de Reis, que às vezes a privados +Dão mais que a mil, que esforço e saber tenham. +Estes os seus não querem ver pintados, +Crendo que cores vãs lhe não convenham, +E, como a seu contrairo natural, +A pintura, que fala, querem mal. + +42 +"Não nego que há contudo descendentes +Do generoso tronco, e casa rica, +Que com costumes altos e excelentes, +Sustentam a nobreza que lhe fica; +E se a luz dos antigos seus parentes +Neles mais o valor não clarifica, +Não falta ao menos, nem se faz escura. +Mas destes acha poucos a pintura." + +43 +Assim está declarando os grandes feitos +O Gama, que ali mostra a vária tinta, +Que a douta mão tão claros, tão perfeitos, +Do singular artífice ali pinta. +Os olhos tinha prontos e direitos +O Catual na história bem distinta; +Mil vezes perguntava e mil ouvia +As gostosas batalhas que ali via. + +44 +Mas já a luz se mostrava duvidosa, +Porque a a lâmpada grande se escondia +Debaixo do Horizonte e luminosa +Levava aos Antípodas o dia, +Quando o Gentio e a gente generosa +Dos Naires da nau forte se partia +A buscar o repouso que descansa +Os lassos animais, na noite mansa. + +45 +Entretanto os Arúspices famosos +Na falsa opinião, que em sacrifícios +Antevêem sempre os casos duvidosos, +Por sinais diabólicos e indícios, +Mandados do Rei próprio, estudiosos +Exercitavam a arte e seus ofícios +Sobre esta vinda desta gente estranha, +Que às suas terras vem da ignota Espanha. + +46 +Sinal lhe mostra o Demo verdadeiro, +De como a nova gente lhe seria +Jugo perpétuo, eterno cativeiro, +Destruição de gente, e de valia. +Vai-se espantado o atónito agoureiro +Dizer ao Rei (segundo o que entendia) +Os sinais temerosos que alcançara +Nas entranhas das vítimas que olhara. + +47 +A isto mais se ajunta que um devoto +Sacerdote da lei de Mafamede, +Dos ódios concebidos não remoto +Contra a divina Fé, que tudo excede, +Em forma do Profeta falso e noto, +Que do filho da escrava Agar procede, +Baco odioso em sonhos lhe aparece, +Que de seus ódios ainda se não desse. + +48 +E diz-lhe assim: "Guardai-vos, gente minha, +Do mal que se aparelha pelo inimigo +Que pelas águas úmidas caminha, +Antes que esteis mais perto do perigo." +Isto dizendo, acorda o Mouro asinha, +Espantado do sonho; mas consigo +Cuida que não é mais que sonho usado: +Torna a dormir quieto e sossegado. + +49 +Torna Baco, dizendo: "Não conheces +O grã legislador que a teus passados +Tem mostrado o preceito a que obedeces, +Sem o qual fôreis muitos batizados? +Eu por ti, rudo, velo; e tu adormeces! +Pois saberás que aqueles, que chegados +De novo são, serão muito grande dano +Da lei que eu dei ao néscio povo humano. + +50 +"Enquanto é fraca a força desta gente, +Ordena como em tudo se resista, +Porque, quando o Sol sai, facilmente +Se pode nele pôr a aguda vista; +Porém, depois que sobe claro e ardente, +Se agudeza dos olhos o conquista, +Tão cega fica, quanto ficareis, +Se raízes criar lhe não tolheis." + +51 +Isto dito, ele e o sono se despede. +Tremendo fica o atónito Agareno: +Salta da cama, lume ao servos pede, +Lavrando nele o fervido veneno. +Tanto que a nova luz que ao Sol precede +Mostrara rosto angélico e sereno, +Convoca os principais da torpe seita, +Aos quais do que sonhou dá conta estreita. + +52 +Diversos pareceres e contrários +Ali se dão, segundo o que entendiam; +Astutas traições, enganos vários, +Perfídias inventavam e teciam. +Mas, deixando conselhos temerários, +Destruição da gente pretendiam, +Por manhas mais subtis e ardis melhores, +Com peitas adquirindo os regedores; + +53 +Com peitas, ouro, e dádivas secretas +Conciliam da terra os principais, +E com razões notáveis e discretas +Mostram ser perdição dos naturais, +Dizendo que são gentes inquietas, +Que, os mares discorrendo ocidentais, +Vivem só de piráticas rapinas, +Sem Rei, sem leis humanas ou divinas + +54 +Ó quanto deve o Rei que bem governa, +De olhar que os conselheiros, ou privados, +De consciência e de virtude interna +E de sincero amor sejam dotados! +Porque, como este posto na suprema +Cadeira, pode mal dos apartados +Negócios ter notícia mais inteira, +Do que lhe der a língua conselheira. + +55 +Nem tão pouco direi que tome tanto +Em grosso a consciência limpa e certa, +Que se enleve num pobre e humilde manto, +Onde ambição acaso ande encoberta. +E quando um bom em tudo é justo e santo, +Em negócios do mundo pouco acerta, +Que mal com eles poderá ter conta +A quieta inocência, em só Deus pronta. + +56 +Mas aqueles avaros Catuais, +Que o Gentílico povo governavam, +Induzidos das gentes infernais, +O Português despacho dilatavam. +Mas o Gama, que não pretende mais, +De tudo quanto os Mouros ordenavam, +Que levar a seu Rei um sinal certo +Do mundo, que deixava descoberto. + +57 +Nisto trabalha só; que bem sabia +Que depois que levasse esta certeza, +Armas, o naus, e gente mandaria +Manuel, que exercita a suma alteza, +Com que a seu jugo e lei someteria +Das terras e do mar a redondeza; +Que ele não era mais que um diligente +Descobridor das terras do Oriente. + +58 +Falar ao Rei gentio determina, +Por que com seu despacho se tornasse, +Que já sentia em tudo da malina +Gente impedir-se quanto desejasse. +O Rei, que da notícia falsa e indina +Não era de espantar se se espantasse, +Que tão crédulo era em seus agouros, +E mais sendo afirmados pelos Mouros, + +59 +Este temor lhe esfria o baixo peito. +Por outra parte a força da cobiça, +A quem por natureza está sujeito, +Um desejo imortal lhe acende e atiça: +Que bem vê que grandíssimo proveito +Fará, se com verdade e com justiça +O contrato fizer por longos anos, +Que lhe comete o Rei dos Lusitanos. + +60 +Sobre isto, nos conselhos que tomava, +Achava muito contrários pareceres; +Que naqueles com quem se aconselhava +Executa o dinheiro seus poderes. +O grande Capitão chamar mandava, +A quem chegado disse:--"Se quiseres +Confessar-me a verdade limpa e nua, +Perdão alcançarás da culpa tua. + +61 +Fala do Samorim ao Gama +"Eu sou bem informado que a embaixada +Que de teu Rei me deste, que é fingida; +Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada, +Mas vagabundo vás passando a vida; +Que quem da Hespéria última alongada, +Rei ou senhor de insânia desmedida, +Há de vir cometer com naus e frotas +Tão incertas viagens e remotas? + +62 +"E se de grandes Reinos poderosos +O teu Rei tem a régia majestade, +Que presentes me trazes valerosos, +Sinais de tua incógnita verdade? +Com peças e dons altos, sumptuosos, +Se lia dos Reis altos a amizade; +Que sinal nem penhor não é bastante +As palavras dum vago navegante. + +63 +"Se porventura vindes desterrados, +Como já foram homens de alta sorte, +Em meu Reino sereis agasalhados, +Que toda a terra é pátria para o forte; +Ou se piratas sois ao mar usados, +Dizei-mo sem temor de infâmia ou morte, +Que por se sustentar em toda idade, +Tudo faz a vital necessidade." + +64 +Isto assim dito, o Gama, que já tinha +Suspeitas das insídias que ordenava +O Mallomético ódio, donde vinha +Aquilo que tão mal o Rei cuidava, +Com uma alta confiança, que convinha, +Com que seguro crédito alcançava, +Que Vénus Acidália lhe influía, +Tais palavras do sábio peito abria: + +65 +"Se os antigos delitos, que a malícia +Humana cometeu na prisca idade, +Não causaram que o vaso da niquícia, +Açoute tão cruel da Cristandade, +Viera pôr perpétua inimicícia +Na geração de Adão, coa falsidade, +Ó poderoso Rei da torpe seita, +Não conceberas tu tão má suspeita. + +66 +"Mas porque nenhum grande bem se alcança +Sem grandes opressões, e em todo o feito +Segue o temor os passos da esperança, +Que em suor vive sempre de seu peito, +Me mostras tu tão pouca confiança +Desta minha verdade, sem respeito +Das razões em contrário que acharias +Se não cresses a quem não crer devias. + +67 +"Porque, se eu de rapinas só vivesse, +Undívago, ou da pátria desterrado, +Como crês que tão longe me viesse +Buscar assento incógnito e apartado? +Por que esperanças, ou por que interesse +Viria experimentando o mar irado, +Os Antarcticos frios, e os ardores +Que sofrem do Carneiro os moradores? + +68 +"Se com grandes presentes de alta estima +O crédito me pedes do que digo, +Eu não vim mais que a achar o estranho clima +Onde a natura pôs teu Reino antigo. +Mas, se a Fortuna tanto me sublima +Que eu torne à minha pátria e Reino amigo, +Então verás o dom soberbo e rico, +Com que minha tornada certifico. + +69 +"Se te parece inopinado feito, +Que Rei da última Hespéria a ti me mande, +O coração sublime, o régio peito, +Nenhum caso possível tem por grande. +Bem parece que o nobre e grã conceito +Do Lusitano espírito demande +Maior crédito, e fé de mais alteza, +Que creia dele tanta fortaleza. + +70 +"Sabe que há muitos anos que os antigos +Reis nossos firmemente propuseram +De vencer os trabalhos e perigos, +Que sempre às grandes coisas se opuseram; +E, descobrindo os mares inimigos +Do quieto descanso, pretenderam +De saber que fim tinham, e onde estavam +As derradeiras praias que lavavam. + +71 +"Conceito digno foi do ramo claro +Do venturoso Rei, que arou primeiro +O mar, por ir deitar do ninho caro +O morador de Abila derradeiro. +Este, por sua indústria e engenho raro, +Num madeiro ajuntando outro madeiro, +Descobrir pôde a parte, que faz clara +De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara. + +72 +"Crescendo com os sucessos bons primeiros +No peito as ousadias, descobriram +Pouco e pouco caminhos estrangeiros, +Que uns, sucedendo aos outros, prosseguiram. +De África os moradores derradeiros +Austrais, que nunca as sete flamas viram, +Foram vistos de nós, atrás deixando +Quantos estão os Trópicos queimando. + +73 +"Assim com firme peito, e com tamanho +Propósito, vencemos a Fortuna, +Até que nós no teu terreno estranho +Viemos pôr a última coluna. +Rompendo a força do líquido estanho, +Da tempestade horrífica e importuna, +A ti chegamos, de quem só queremos +Sinal, que ao nosso Rei de ti levemos. + +74 +"Esta é a verdade, Rei; que não faria +Por tão incerto bem, tão fraco prémio, +Qual, não sendo isto assim, esperar podia, +Tão longo, tão fingido e vão proêmio; +Mas antes descansar me deixaria +No nunca descansado e fero grêmio +Da madre Tethys, qual pirata inico, +Dos trabalhos alheios feito rico. + +75 +"Assim que, ó Rei, se minha grã verdade +Tens por qual é, sincera e não dobrada, +Ajunta-me ao despacho brevidade, +Não me impeças o gosto da tornada. +E, se ainda te parece falsidade, +Cuida bem na razão que está provada, +Que com claro juízo pode ver-se, +Que fácil é a verdade de entender-se." + +76 +A tento estava o Rei na segurança +Com que provava o Gama o que dizia; +Concebe dele certa confiança, +Crédito firme em quanto proferia. +Pondera das palavras a abastança, +Julga na autoridade grão valia, +Começa de julgar por enganados +Os Catuais corruptos, mal julgados. + +77 +Juntamente a cobiça do proveito, +Que espera do contrato Lusitano, +O faz obedecer e ter respeito +Com o Capitão, e não com o Mauro engano. +Enfim ao Gama manda que direito +As naus se vá, e, seguro de algum dano, +Possa a terra mandar qualquer fazenda, +Que pela especiaria troque e venda. + +78 +Que mande da fazenda, enfim, lhe manda, +Que nos Reinos Gangéticos faleça; +Se alguma traz idónea lá da banda +Donde a terra se acaba e o mar começa. +Já da real presença veneranda +Se parte o Capitão, para onde peça +Ao Catual, que dele tinha cargo, +Embarcação, que a sua está de largo. + +79 +Embarcação que o leve às naus lhe pede; +Mas o mau Regedor, que novos laços +Lhe maquinava, nada lhe concede, +Interpondo tardanças e embaraços. +Com ele parte ao cais, por que o arrede +Longe quanto puder dos régios paços, +Onde, sem que seu Rei tenha notícia, +Faça o que lhe ensinar sua malícia. + +80 +Lá bem longe lhe diz que lhe daria +Embarcação bastante em que partisse, +Ou que para a luz crástina do dia +Futuro sua partida diferisse. +Já com tantas tardanças entendia +O Gama, que o Gentio consentisse +Na má tenção dos Mouros, torpe e fera, +O que dele atéli não entendera. + +81 +Era este Catual um dos que estavam +Corruptos pela Maumetana gente, +O principal por quem se governavam +As cidades do Samorim potente. +Dele somente os Mouros esperavam +Efeito a seus enganos torpemente. +Ele, que no conceito vil conspira, +De suas esperanças não delira. + +82 +O Gama com instância lhe requere +Que o mande pôr nas naus, e não lhe vai; +E que assim lhe mandara, lhe refere, +O nobre sucessor de Perimal. +Por que razão lhe impede e lhe difere +A fazenda trazer de Portugal? +Pois aquilo que os Reis já têm mandado +Não pode ser por outrem derrogado. + +83 +Pouco obedece o Catual corrupto +A tais palavras; antes revolvendo +Na fantasia algum subtil e astuto +Engano diabólico e estupendo, +Ou como banhar possa o ferro bruto +No sangue avorrecido, estava vendo; +Ou como as naus em fogo lhe abrasasse, +Por que nenhuma à pátria mais tornasse. + +84 +Que nenhum torne à pátria só pretende +O conselho infernal dos Maumetanos, +Por que não saiba nunca onde se estende +A terra Eoa o Rei dos Lusitanos. +Não parte o Gama enfim, que lho defende +O Regedor dos bárbaros profanos; +Nem sem licença sua ir-se podia, +Que as almadias todas lhe tolhia. + +85 +Aos brados o razões do Capitão +Responde o Idolatra que mandasse-- +Chegar à terra as naus, que longo estão, +Por que melhor dali fosse e tornasse. +"Sinal é de inimigo e de ladrão, +Que lá tão longe a frota se alargasse, +Lhe diz, porque do certo e fido amigo +É não temer do seu nenhum perigo." + +86 +Nestas palavras o discreto Gama +Enxerga bem que as naus deseja perto +O Catual, por que com f erro e flama, +Lhas assalte, por ódio descoberto. +Em vários pensamentos se derrama; +Fantasiando está remédio certo, +Que desse a quanto mal se lhe ordenava; +Tudo temia, tudo enfim cuidava. + +87 +Qual o reflexo lume do polido +Espelho de aço, ou de cristal formoso, +Que, do raio solar sendo ferido, +Vai ferir noutra parte luminoso, +E, sendo da ociosa mão movido +Pela casa do moço curioso, +Anda pelas paredes é telhado +Trêmulo, aqui e ali, e dessossegado: + +88 +Tal o vago juízo flutuava +Do Gama preso, quando lhe lembrara +Coelho, se por caso o esperava +Na praia com os batéis, como ordenara. +Logo secretamente lhe mandava, +"Que se tornasse à frota, que deixara; +Não fosse salteado dos enganos, +Que esperava dos feros Maumetanos." + +89 +Tal há de ser quem quer, com o dom de Marte, +Imitar os ilustres e igualá-los: +Voar com o pensamento a toda parte, +Adivinhar perigos, e evitá-los: +Com militar engenho e subtil arte +Entender os inimigos, e enganá-los; +Crer tudo, enfim, que nunca louvarei +O Capitão que diga: "Não cuidei". + +90 +Insiste o Malabar em tê-lo preso, +Se não manda chegar a terra a armada; +Ele constante, e de ira nobre aceso, +Os ameaços seus não teme nada; +Que antes quer sobre si tomar o peso +De quanto mal a vil malícia ousada +Lhe andar armando, que pôr em ventura +A frota de seu Rei, que tem segura. + +91 +Aquela noite esteve ali detido, +E parte do outro dia, quando ordena +De se tornar ao Rei; mas impedido +Foi da guarda que tinha, não pequena. +Comete-lhe o Gentio outro partido, +Temendo de seu Rei castigo ou pena, +Se sabe esta malícia, a qual asinha +Saberá, se mais tempo ali o detinha. + +92 +Diz-lhe "que mande vir toda a fazenda +Vendível, que trazia, para a terra, +Para que de vagar se troque e venda: +Que quem não quer comércio, busca guerra. +Posto que os maus propósitos entenda +O Gama, que o danado peito encerra, +Consente, porque sabe por verdade, +Que compra com a fazenda a liberdade. + +93 +Concertam-se que o negro mande dar +Embarcações idóneas com que venha; +Que os seus batéis não quer aventurar +Onde lhos tome o inimigo, ou lhos detenha. +Partem as almadias a buscar +Mercadoria Hispana, que convenha. +Escreve a seu irmão que lhe mandasse +A fazenda com que se resgatasse. + +94 +Vem a fazenda a terra, aonde logo +A agasalhou o infame Catual; +Com ela ficam Álvaro e Diogo, +Que a pudessem vender pelo que val. +Se mais que obrigação, que mando e rogo +No peito vil o prémio pode e val, +Bem o mostra o Gentio a quem o entenda, +Pois o Gama soltou pela fazenda. + +95 +Por ela o solta, crendo que ali tinha +Penhor bastante, donde recebesse +Interesse maior do que lhe vinha, +Se o Capitão mais tempo detivesse. +Ele, vendo que já lhe não convinha +Tornar a terra, por que não pudesse +Ser mais retido, sendo às naus chegado +Nelas estar se deixa descansado. + +96 +Nas naus estar se deixa vagaroso, +Até ver o que o tempo lhe descobre: +Que não se fia já do cobiçoso +Regedor corrompido e pouco nobre. +Veja agora o juízo curioso +Quanto no rico, assim como no pobre, +Pode o vil interesse e sede inimiga +Do dinheiro, que a tudo nos obriga. + +97 +A Polidoro mata o Ptei Treício, +Só por ficar senhor do grão tesouro; +Entra, pelo fortíssimo edifício, +Com a filha de Acriso a chuva d'ouro; +Pode tanto em Tarpeia avaro vício, +Que, a troco do metal luzente e louro, +Entrega aos inimigos a alta torre, +Do qual quase afogada em pago morre. + +98 +Este rende munidas fortalezas, +Faz tredores e falsos os amigos: +Este a mais nobres faz fazer vilezas, +E entrega Capitães aos inimigos; +Este corrompe virginais purezas, +Sem temer de honra ou fama alguns perigos: +Este deprava às vezes as ciências, +Os juízos cegando e as consciências; + +99 +Este interpreta mais que sutilmente. +Os textos; este faz e desfaz leis; +Este causa os perjúrios entre a gente, +E mil vezes tiranos torna os Reis. +Até os que só a Deus Onipotente +Se dedicam, mil vezes ouvireis +Que corrompe este encantador, e ilude; +Mas não sem cor, contudo, de virtude. + +Canto Nono + +1 +Tiveram longamente na cidade, +Sem vender-se, a fazenda os dois feitores +Que os infiéis, por manha e falsidade, +Fazem que não lha comprem mercadores; +Que todo seu propósito e vontade +Era deter ali os descobridores +Da Índia tanto tempo, que viessem +De Meca as naus, que as suas desfizessem. + +2 +Lá no seio Eritreu, onde fundada +Arsínoe foi do Egípcio Ptolomeu, +Do nome da irmã sua assim chamada, +Que depois em Suez se converteu, +Não longe o porto jaz da nomeada +Cidade Meca, que se engrandeceu +Com a superstição falsa e profana +Da religiosa água Maumetana. + +3 +Gidá se chama o porto, aonde o trato +De todo o Roxo mar mais florescia, +De que tinha proveito grande e grato +O Soldão que esse Reino possuía. +Daqui aos Malabares, por contrato +Dos infiéis, formosa companhia +De grandes naus, pelo Índico Oceano, +Especiaria vem buscar cada ano. + +4 +Por estas naus os Mouros esperavam, +Que, como fossem grandes e possantes, +Aquelas, que o comércio lhe tomavam, +Com flamas abrasassem crepitantes. +Neste socorro tanto confiavam, +Que já não querem mais dos navegantes, +Senão que tanto tempo ali tardassem, +Que da famosa Meca as naus chegassem. + +5 +Mas o Governador dos céus e gentes, +Que, para quanto tem determinado, +De longe os meios dá convenientes, +Por onde vem a ef eito o fim fadado, +Influiu piedosos acidentes +De afeição em Monçaide, que guardado +Estava para dar ao Gama aviso, +E merecer por isso o Paraíso. + +6 +Este, de quem se os Mouros não guardavam, +Por ser Mouro como eles, antes era +Participante em quanto maquinavam, +A tenção lhe descobre torpe e fera. +Muitas vezes as naus que longe estavam +Visita, o com piedade considera +O dano, sem razão, que se lhe ordena +Pela maligna gente Sarracena. + +7 +Informa o cauto Gama das armadas +Que de Arábica Meca vêm cada ano, +Que agora são dos seus tão desejadas, +Para ser instrumento deste dano. +Diz-lhe que vêm de gente carregadas, +E dos trovões horrendos de Vulcano, +E que pode ser delas oprimido, +Segundo estava mal apercebido. + +8 +O Gama, que também considerava +O tempo, que para a partida o chama, +E que despacho já não esperava +Melhor do Rei, que os Maumetanos ama, +Aos feitores, que em terra estão, mandava +Que se tornem às naus; e por que a fama +Desta súbita vinda os não impeça, +Lhe manda que a fizessem escondida. + +9 +Porém não tardou muito que, voando, +Um rumor não soasse com verdade: +Que foram presos os feitores, quando +Foram sentidos vir-se da cidade. +Esta fama as orelhas penetrando +Do sábio Capitão, com brevidade +Faz represaria nuns, que às naus vieram +A vender a pedraria que trouxeram. + +10 +Eram estes antigos mercadores +Ricos em Calecu, e conhecidos; +Da falta deles, logo entre os melhores +Sentido foi que estão no mar retidos. +Mas já nas naus os bons trabalhadores +Volvem o cabrestante, e repartidos +Pelo trabalho, uns puxam pela amarra, +Outros quebram com o peito duro a barra; + +11 +Outros pendem da verga, e já desatam +A vela, que com grita se soltava, +Quando com maior grita ao Rei relatam +A pressa com que a armada se levava. +As mulheres e filhos que se matam +Daqueles que vão presos, onde estava +O Samorim, se queixam que perdidos +Uns têm os pais, as outras os maridos. + +12 +Manda logo os feitores Lusitanos +Com toda sua fazenda livremente +Apesar dos inimigos Maumetanos, +Por que lhe torne a sua presa gente. +Desculpas manda o Rei de seus enganos; +Recebe o Capitão de melhor mente +Os presos que as desculpas, e tornando +Alguns negros, se parte as velas dando. + +13 +Parte-se costa abaixo, porque entende +Que em vão com o Rei gentio trabalhava +Em querer dele paz, a qual pretende +Por firmar o comércio que tratava. +Mas como aquela terra, que se estende +Pela Aurora, sabida já deixava, +Com estas novas torna à pátria cara, +Certos sinais levando do que achara. + +14 +Leva alguns Malabares, que tomou +Por força, dos que o Samorim mandara +Quando os presos feitores lhe tornou; +Leva pimenta ardente, que comprara; +A seca flor de Banda não ficou, +A noz, e o negro cravo, que faz clara +A nova ilha Maluco, com a canela, +Com que Ceilão é rica, ilustre e bela. + +15 +Isto tudo lhe houvera a diligência +De Monçaide fiel, que também leva, +Que, inspirado de angélica influência, +Quer no livro de Cristo que se escreva. +Ó ditoso Africano, que a clemência +Divina assim tirou de escura treva, +E tão longe da pátria achou maneira +Para subir à pátria verdadeira! + +16 +Apartadas assim da ardente costa +As venturosas naus, levando a proa +Para onde a Natureza tinha posta +A meta Austrina da esperança boa, +Levando alegres novas e resposta +Da parte Oriental para Lisboa, +Outra vez cometendo os duros medos +Do mar incerto, tímidos e ledos; + +17 +O prazer de chegar à pátria cara, +A seus penates caros e parentes, +Para contar a peregrina e rara +Navegação, os vários céus e gentes; +Vir a lograr o prémio, que ganhara +Por tão longos trabalhos e acidentes, +Cada um tem por gosto tão perfeito, +Que o coração para ele é vaso estreito. + +18 +Porém a deusa Cípria, que ordenada +Era para favor dos Lusitanos +Do Padre eterno, e por bom génio dada, +Que sempre os guia já de longos anos; +A glória por trabalhos alcançada, +Satisfação de bem sofridos danos, +Lhe andava já ordenando, e pretendia +Dar-lhe nos mares tristes alegria. + +19 +Depois de ter um pouco revolvido +Na mente o largo mar que navegaram, +Os trabalhos, que pelo Deus nascido +Nas Anfióneas Tebas se causaram; +Já trazia de longe no sentido, +Para prémio de quanto mal passaram, +Buscar-lhe algum deleite, algum descanso +No Reino de cristal líquido e manso; + +20 +Algum repouso, enfim, com que pudesse +Refocilar a lassa humanidade +Dos navegantes seus, como interesse +Do trabalho que encurta a breve idade. +Parece-lhe razão que conta desse +A seu filho, por cuja potestade +Os Deuses faz descer ao vil terreno +E os humanos subir ao céu sereno. + +21 +Isto bem revolvido, determina +De ter-lhe aparelhada, lá no meio +Das águas, alguma ínsula divina, +Ornada de esmaltado e verde arreio; +Que muitas tem no reino, que confina +Da mãe primeira com o terreno seio, +Afora as que possui soberanas +Para dentro das portas Herculanas. + +22 +Ali quer que as aquáticas donzelas +Esperem os fortíssimos barões, +Todas as que têm título de belas, +Glória dos olhos, dor dos corações, +Com danças e coreias, porque nelas +Influirá secretas afeições, +Para com mais vontade trabalharem +De contentar, a quem se afeiçoaram. + +23 +Tal manha buscou já, para que aquele +Que de Anquises pariu, bem recebido +Fosse no campo que a bovina pele +Tomou de espaço, por subtil partido. +Seu filho vai buscar, porque só nele +Tem todo seu poder, fero Cupido, +Que assim como naquela empresa antiga +Ajudou já, nestoutra a ajude e siga. + +24 +No carro ajunta as aves que na vida +Vão da morte as exéquias celebrando, +E aquelas em que já foi convertida +Perístera, as boninas apanhando. +Em derredor da Deusa já partida, +No ar lascivos beijos se vão dando. +Ela, por onde passa, o ar e o vento +Sereno faz, com brando movimento. + +25 +Já sobre os Idálios montes pende, +Onde o filho frecheiro estava então +Ajuntando outros muitos, que pretende +Fazer uma famosa expedição +Contra o mundo rebelde, por que emende +Erros grandes, que há dias nele estão, +Amando coisas que nos foram dadas, +Não para ser amadas, mas usadas. + +26 +Via Acteon na caça tão austero, +De cego na alegria bruta, insana, +Que por seguir um feio animal fero, +Foge da gente e bela forma humana; +E por castigo quer, doce e severo, +Mostrar-lhe a formosura de Diana; +E guarde-se não seja ainda comido +Desses cães que agora ama, e consumido. + +27 +E vê do mundo todo os principais, +Que nenhum no bem público imagina; +Vê neles que não têm amor a mais +Que a si somente, e a quem Filáucia ensina. +Vê que esses que frequentam os reais +Paços, por verdadeira e sã doutrina +Vendem adulação, que mal consente +Mondar-se o novo trigo florescente. + +28 +Vê que aqueles que devem à pobreza +Amor divino e ao povo caridade, +Amam somente mandos e riqueza, +Simulando justiça e integridade. +Da feia tirania e de aspereza +Fazem direito e vã severidade: +Leis em favor do Rei se estabelecem, +As em favor do povo só perecem. + +29 +Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, +Senão o que somente mal deseja; +Não quer que tanto tempo se releve +O castigo, que duro e justo seja. +Seus ministros ajunta, por que leve +Exércitos conformes à peleja, +Que espera ter com a mal regida gente, +Que lhe não for agora obediente. + +30 +Muitos destes meninos voadores +Estão em várias obras trabalhando: +Uns amolando ferros passadores, +Outros ásteas de setas delgaçando; +Trabalhando, cantando estão de amores, +Vários casos em verso modulando, +Melodia sonora e concertada, +Suave a letra, angélica a soada. + +31 +Nas frágoas imortais, onde forjavam +Para as setas as pontas penetrantes, +Por lenha corações ardendo estavam, +Vivas entranhas ainda palpitantes. +As águas onde os ferros temperavam, +Lágrimas são de míseros amantes; +A viva f lama, o nunca morto lume, +Desejo é só que queima, e não consume. + +32 +Alguns exercitando a mão andavam +Nos duros corações da plebe rude; +Crebros suspiros pelo ir soavam +Dos que feridos vão da seta aguda. +Formosas Ninfas são as que curavam +As chagas recebidas cuja ajuda +Não somente dá vida aos mal feridos, +Mas põe em vida os ainda não nascidos. + +33 +Formosas são algumas e outras feias, +Segundo a qualidade for das chagas; +Que o veneno espalhado pelas veias +Curam-no às vezes ásperas triagas. +Alguns ficam ligados em cadeias, +Por palavras subtis de sábias magas: +Isto acontece às vezes, quando as setas +Acertam de levar ervas secretas. + +34 +Destes tiros assim desordenados, +Que estes moços mal destros vão tirando, +Nascem amores mil desconcertados +Entre o povo ferido miserando; +E tamboril nos heróis de altos estados +Exemplos mil se vêem de amor nefando, +Qual o das moças Bíbli e Cinireia, +Um mancebo de Assíria, um de Judeia. + +35 +E vós, ó poderosos, por pastoras +Muitas vezes ferido o peito vedes; +E por baixos e rudos, vós, senhoras, +Também vos tomam nas Vulcâneas redes. +Uns esperando andais noturnas horas, +Outros subis telhados e paredes: +Mas eu creio que deste amor indino +É mais culpa a da mãe que a do menino. + +36 +Mas já no verde prado o carro leve +Punham os brancos cisnes mansamente, +E Dione, que as rosas entro a neve +No rosto traz, descia diligente. +O frecheiro, que contra o céu se atreve, +A recebê-la vem, ledo e contente; +Vêm todos os Cupidos servidores +Beijar a mão à Deusa dos amores. + +37 +Ela, por que não gaste o tempo em vão, +Nos braços tendo o filho, confiada +Lhe diz: "Amado filho, em cuja mão +Toda minha potência está fundada; +Filho, em quem minhas forças sempre estão; +Tu, que as armas Tifeias tens em nada, +A socorrer-me a tua potestade +Me triz especial necessidade. + +38 +"Bem vês as Lusitânicas fadigas, +Que eu já de muito longe favoreço, +Porque das Parcas sei, minhas amigas, +Que me hão de venerar e ter em preço. +E, porque tanto imitam as antigas +Obras de meus Romanos, me ofereço +A lhe dar tanta ajuda, em quanto posso, +A quanto se estender o poder nosso. + +39 +"E porque das insídias do odioso +Baco foram na Índia molestados, +E das injúrias sós do mar undoso +Puderam mais ser mortos que cansados, +No mesmo mar, que sempre temeroso +Lhe foi, quero que sejam repousados, +Tomando aquele prémio e doce glória +Do trabalho, que faz clara a memória. + +40 +"E para isso queria que, feridas +As filhas de Nereu, no ponto fundo, +De amor dos Lusitanos incendidas, +Que vêm de descobrir o novo mundo, +Todas numa ilha juntas e subidas, +Ilha, que nas entranhas do profundo +Oceano terei aparelhada, +De dons de Flora e Zéfiro adornada; + +41 +"Ali, com mil refrescos e manjares, +Com vinhos odoríferos e rosas, +Em cristalinos paços singulares +Formosos leitos, e elas mais formosas; +Enfim, com mil deleites não vulgares, +Os esperem as Ninfas amorosas, +De amor feridas, para lhes entregarem +Quanto delas os olhos cobiçarem. + +42 +"Quero que haja no reino Netunino, +Onde eu nasci, progénie forte e bela, +E tome exemplo o mundo vil, malino, +Que contra tua potência se rebela, +Por que entendam que muro adamantino, +Nem triste hipocrisia val contra ela: +Mal haverá na terra quem se guarde, +Se teu fogo imortal nas águas arde." + +43 +Assim Vénus propôs, e o filho inieo, +Para lhe obedecer, já se apercebe: +Manda trazer o arco ebúrneo rico, +Onde as setas de ponta de ouro embebe. +Com gesto ledo a Cípria, e impudico, +Dentro no carro o filho seu recebe; +A rédea larga às aves, cujo canto +A Factôntea morte chorou tanto. + +44 +Mas diz Cupido, que era necessária +Uma famosa e célebre terceira, +Que, posto que mil vezes lhe é contrária, +Outras muitas a tem por companheira: +A Deusa Giganteia, temerária, +Jactante, mentirosa, e verdadeira, +Que com cem olhos vê, e por onde voa, +O que vê, com mil bocas apregoa. + +45 +Vão-a buscar, e mandam adiante, +Que celebrando vá com tuba clara +Os louvores da gente navegante, +Mais do que nunca os d'outrem celebrara. +Já murmurando a Fama penetrante +Pelas fundas cavernas se espalhara: +Fala verdade, havida por verdade, +Que junto a Deusa traz Credulidade. + +46 +O louvor grande, o rumor excelente +No coração dos Deuses, que indignados +Foram por Baco contra a ilustre gente, +Mudando, os fez um pouco afeiçoados. +O peito feminil, que levemente +Muda quaisquer propósitos tomados, +Já julga por mau zelo e por crueza +Desejar mal a tanta fortaleza. + +47 +Despede nisto o fero moço as setas +Uma após outra: geme o mar com os tiros; +Direitas pelas ondas inquietas +Algumas vão, e algumas fazem giros; +Caem as Ninfas, lançam das secretas +Entranhas ardentíssimos suspiros; +Cai qualquer, sem ver o vulto que ama: +Que tanto, como a vista, pode a fama. + +48 +Os cornos ajuntou da ebúrnea lua +Com força o moço indómito excessiva, +Que Tethys quer ferir mais que nenhuma, +Porque mais que nenhuma lhe era esquiva. +Já não fica na aljava seta alguma, +Nem nos equóreos campos Ninfa viva; +E se feridas ainda estão vivendo, +Será para sentir que vão morrendo. + +49 +Dai lugar, altas e cerúleas ondas, +Que, vedes, Vénus traz a medicina, +Mostrando as brancas velas e redondas, +Que vêm por cima da água Netunina. +Para que tu recíproco respondas, +Ardente Amor, à flama feminina, +É, forçado que a pudicícia honesta +Faça quanto lhe Vénus amoesta. + +50 +Já todo o belo coro se aparelha +Das Nereidas, e junto caminhava +Em coreias gentis, usança velha, +Para a ilha, a que Vénus as guiava. +Ali a formosa Deusa lhe aconselha +O que ela fez mil vezes, quando amava. +Elas, que vão do doce amor vencidas, +Estão a seu conselho oferecidas. + +51 +Cortando vão as naus a larga via +Do mar ingente para a pátria amada, +Desejando prover-se de água fria, +Para a grande viagem prolongada, +Quando juntas, com súbita alegria, +Houveram vista da ilha namorada, +Rompendo pelo céu a mãe formosa +De Menónio, suave e deleitosa. + +52 +De longe a Ilha viram fresca e bela, +Que Vénus pelas ondas lha levava +(Bem como o vento leva branca vela) +Para onde a forte armada se enxergava; +Que, por que não passassem, sem que nela +Tomassem porto, como desejava, +Para onde as naus navegam a movia +A Acidália, que tudo enfim podia. + +53 +Mas firme a fez e imóvel, como viu +Que era dos Nautas vista e demandada; +Qual ficou Delos, tanto que pariu +Latona Febo e a Deusa à caça usada. +Para lá logo a proa o mar abriu, +Onde a costa fazia uma enseada +Curva e quieta, cuja branca areia, +Pintou de ruivas conchas Citereia. + +54 +Três formosos outeiros se mostravam +Erguidos com soberba graciosa, +Que de gramíneo esmalte se adornavam.. +Na formosa ilha alegre e deleitosa; +Claras fontes o límpidas manavam +Do cume, que a verdura tem viçosa; +Por entre pedras alvas se deriva +A sonorosa Ninfa fugitiva. + +55 +Num vale ameno, que os outeiros fende, +Vinham as claras águas ajuntar-se, +Onde uma mesa fazem, que se estende +Tão bela quanto pode imaginar-se; +Arvoredo gentil sobre ela pende, +Como que pronto está para afeitar-se, +Vendo-se no cristal resplandecente, +Que em si o está pintando propriamente. + +56 +Mil árvores estão ao céu subindo, +Com pomos odoríferos e belos: +A laranjeira tem no fruto lindo +A cor que tinha Dafne nos cabelos; +Encosta-se no chão, que está caindo, +A cidreira com os pesos amarelos; +Os formosos limões ali, cheirando, +Estão virgíneas tetas imitando. + +57 +As árvores agrestes que os outeiros +Têm com frondente coma enobrecidos, +Alemos são de Alcides, e os loureiros +Do louro Deus amados e queridos; +Mirtos de Citereia, com os pinheiros +De Cibele, por outro amor vencidos; +Está apontando o agudo cipariso +Para onde é posto o etéreo paraíso. + +58 +Os dons que dá Pomona, ali Natura +Produz diferentes nos sabores, +Sem ter necessidade de cultura, +Que sem ela se dão muito melhores: +As cerejas purpúreas na pintura, +As amoras, que o nome têm de amores, +O pomo que da pátria Pérsia veio, +Melhor tornado no terreno alheio. + +59 +Abre a romã, mostrando a rubicunda +Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes; +Entre os braços do ulmeiro está a jocunda +Vide, com uns cachos roxos e outros verdes; +E vós, se na vossa árvore fecunda, +Peras piramidais, viver quiserdes, +Entregai-vos ao dano, que, com os bicos, +Em vós fazem os pássaros inicos. + +60 +Pois a tapeçaria bela e fina, +Com que se cobre o rústico terreno, +Faz ser a de Aqueménia menos diria, +Mas o sombrio vale mais ameno. +Ali a cabeça a flor Cifísia inclina +Sôbolo tanque lúcido e sereno; +Floresce o filho e neto de Ciniras, +Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras. + +61 +Para julgar, difícil coisa fora, +No céu vendo e na terra as mesmas cores, +Se dava às flores cor a bela Aurora, +Ou se lha dão a ela as belas flores. +Pintando estava ali Zéfiro e Flora +As violas da cor dos amadores; +O lírio roxo, a fresca rosa bela, +Qual reluz nas faces da donzela; + +62 +A cândida cecém, das matutinas +Lágrimas rociada, e a manjarona. +Vêem-se as letras nas flores Hiacintinas, +Tão queridas do filho de Latona. +Bem se enxerga nos pomos e boninas +Que competia Cloris com Pomona. +Pois se as aves no ar cantando voam, +Alegres animais o chão povoam. + +63 +Ao longo da água o níveo cisne canta, +Responde-lhe do ramo filomela; +Da sombra de seus cornos não se espanta +Acteon, n'água cristalina e bela; +Aqui a fugace lebre se levanta +Da espessa mata, ou tímida gazela; +Ali no bico traz ao caro ninho +O mantimento o leve passarinho. + +64 +Nesta frescura tal desembarcavam +Já das naus os segundos Argonautas, +Onde pela floresta se deixavam +Andar as belas Deusas, como incautas. +Algumas doces cítaras tocavam, +Algumas harpas e sonoras flautas, +Outras com os arcos de ouro se fingiam +Seguir os animais, que não seguiam. + +65 +Assim lhe aconselhara a mestra experta; +Que andassem pelos campos espalhadas; +Que, vista dos barões a presa incerta, +Se fizessem primeiro desejadas. +Algumas, que na forma descoberta +Do belo corpo estavam confiadas, +Posta a artificiosa formosura, +Nuas lavar-se deixam na água pura, + +66 +Mas os fortes mancebos, que na praia +Punham os pés, de terra cobiçosos, +Que não há nenhum deles que não saia +De acharem caça agreste desejosos, +Não cuidam que, sem laço ou redes, caia +Caça naqueles montes deleitosos, +Tão suave, doméstica e benigna, +Qual ferida lha tinha já Ericina. + +67 +Alguns, que em espingardas e nas bestas, +Para ferir os cervos se fiavam, +Pelos sombrios matos e florestas +Determinadamente se lançavam: +Outros, nas sombras, que de as altas sestas +Defendem a verdura, passeavam +Ao longo da água que, suave e queda, +Por alvas pedras corre à praia leda. + +68 +Começam de enxergar subitamente +Por entre verdes ramos várias cores, +Cores de quem a vista julga e sente +Que não eram das rosas ou das flores, +Mas da lã fina e seda diferente, +Que mais incita a força dos amores, +De que se vestem as humanas rosas, +Fazendo-se por arte mais formosas. + +69 +Dá Veloso espantado um grande grito: +"Senhores, caça estranha, disse, é esta! +Se ainda dura o Gentio antigo rito, +A Deusas é sagrada esta floresta. +Mais descobrimos do que humano espírito +Desejou nunca; e bem se manifesta +Que são grandes as coisas e excelentes, +Que o mundo encobre aos homens imprudentes. + +70 +"Sigamos estas Deusas, e vejamos +Se fantásticas são, se verdadeiras." +Isto dito, velozes mais que gamos, +Se lançam a correr pelas ribeiras. +Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos, +Mas, mais industriosas que ligeiras, +Pouco e pouco sorrindo e gritos dando, +Se deixam ir dos galgos alcançando. + +71 +De uma os cabelos de ouro o vento leva +Correndo, e de outra as fraldas delicadas; +Acende-se o desejo, que se ceva +Nas alvas carnes súbito mostradas; +Uma de indústria cai, e já releva, +Com mostras mais macias que indignadas, +Que sobre ela, empecendo, também caia +Quem a seguiu pela arenosa praia. + +72 +Outros, por outra parte, vão topar +Com as Deusas despidas, que se lavam: +Elas começam súbito a gritar, +Como que assalto tal não esperavam. +Umas, fingindo menos estimar +A vergonha que a força, se lançavam +Nuas por entre o mato, aos olhos dando +O que às mãos cobiçosas vão negando. + +73 +Outra, como acudindo mais depressa +A vergonha da Deusa caçadora, +Esconde o corpo n'água; outra se apressa +Por tomar os vestidos, que tem fora. +Tal dos mancebos há, que se arremessa, +Vestido assim e calçado (que, coa mora +De se despir, há medo que ainda tarde) +A matar na água o fogo que nele arde. + +74 +Qual cão de caçador, sagaz e ardido, +Usado a tomar na água a ave ferida, +Vendo no rosto o férreo cano erguido +Para a garcenha ou pata conhecida, +Antes que soe o estouro, mal sofrido +Salta n'água, e da presa não duvida, +Nadando vai e latindo: assim o mancebo +Remete à que não era irmã de Febo. + +75 +Leonardo, soldado bem disposto, +Manhoso, cavaleiro e namorado, +A quem amor não dera um só desgosto, +Mas sempre fora dele maltratado, +E tinha já por firme pressuposto +Ser com amores mal afortunado, +Porém não que perdesse a esperança +De ainda poder seu fado ter mudança, + +76 +Quis aqui sua ventura, que corria +Após Efire, exemplo de beleza, +Que mais caro que as outras dar queria +O que deu para dar-se a natureza. +Já cansado correndo lhe dizia: +"Ó formosura indigna de aspereza, +Pois desta vida te concedo a palma, +Espera um corpo de quem levas a alma. + +77 +"Todas de correr cansam, Ninfa pura, +Rendendo-se à vontade do inimigo, +Tu só de mi só foges na espessura? +Quem te disse que eu era o que te sigo? +Se to tem dito já aquela ventura, +Que em toda a parte sempre anda comigo, +Ó não na creias, porque eu, quando a cria, +Mil vezes cada hora me mentia. + +78 +"Não canses, que me cansas: e se queres +Fugir-me, por que não possa tocar-te, +Minha ventura é tal que, ainda que esperes, +Ela fará que não possa alcançar-te. +Espora; quero ver, se tu quiseres, +Que subtil modo busca de escapar-te, +E notarás, no fim deste sucesso, +Tra la spica e la man, qual muro è messo. + +79 +"Ó não me fujas! Assim nunca o breve +Tempo fuja de tua formosura! +Que, só com refrear o passo leve, +Vencerás da fortuna a força dura. +Que Imperador, que exército se atreve +A quebrantar a fúria da ventura, +Que, em quanto desejei, me vai seguindo, +O que tu só farás não me fugindo! + +80 +"Pões-te da parte da desdita minha? +Fraqueza é dar ajuda ao mais potente. +Levas-me um coração, que livre tinha? +Solta-me, e correrás mais levemente. +Não te carrega essa alma tão mesquinha, +Que nesses fios de ouro reluzente +Atada levas? Ou, depois de presa, +Lhe mudaste a ventura, e menos pesa? + +81 +"Nesta esperança só te vou seguindo: +Que, ou tu não sofrerás o peso dela, +Ou na virtude de teu gesto lindo +Lhe mudarás a triste e dura estrela: +E se se lhe mudar, não vás fugindo, +Que Amor te ferirá, gentil donzela, +E tu me esperarás, se Amor te fere: +E se me esperas, não há mais que espere." + +82 +Já não fugia a bela Ninfa, tanto +Por se dar cara ao triste que a seguia, +Como por ir ouvindo o doce canto, +As namoradas mágoas que dizia. +Volvendo o rosto já sereno e santo, +Toda banhada em riso e alegria, +Cair se deixa aos pés do vencedor, +Que todo se desfaz em puro amor. + +83 +Ó que famintos beijos na floresta, +E que mimoso choro que soava! +Que afagos tão suaves, que ira honesta, +Que em risinhos alegres se tornava! +O que mais passam na manhã, e na sesta, +Que Vénus com prazeres inflamava, +Melhor é experimentá-lo que julgá-lo, +Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. + +84 +Desta arte enfim conformes já as formosas +Ninfas com os seus amados navegantes, +Os ornam de capelas deleitosas +De louro, e de ouro, e flores abundantes. +As mãos alvas lhes davam como esposas; +Com palavras formais e estipulantes +Se prometem eterna companhia +Em vida e morte, de honra e alegria. + +85 +Uma delas maior, a quem se humilha +Todo o coro das Ninfas, e obedece, +Que dizem ser de Celo e Vesta filha, +O que no gesto belo se parece, +Enchendo a terra e o mar de maravilha, +O Capitão ilustre, que o merece, +Recebe ali com pompa honesta e régia, +Mostrando-se senhora grande e egrégia. + +86 +Que, depois de lhe ter dito quem era, +Com um alto exórdio, de alta graça ornado, +Dando-lhe a entender que ali viera +Por alta influição do imóvel fado, +Para lhe descobrir da unida esfera +Da terra imensa, e mar não navegado, +Os segredos, por alta profecia, +O que esta sua nação só merecia, + +87 +Tomando-o pela mão, o leva e guia +Para o cume dum monte alto e divino, +No qual uma rica fábrica se erguia +De cristal toda, e de ouro puro e fino. +A maior parte aqui passam do dia +Em doces jogos e em prazer contino: +Ela nos paços logra seus amores, +As outras pelas sombras entre as flores. + +88 +Assim a formosa e a forte companhia +O dia quase todo estão passando, +Numa alma, doce, incógnita alegria, +Os trabalhos tão longos compensando. +Porque dos feitos grandes, da ousadia +Forte e famosa, o mundo está guardando +O prémio lá no fim, bem merecido, +Com fama grande e nome alto e subido. + +89 +Que as Ninfas do Oceano tão formosas, +Tethys, e a ilha angélica pintada, +Outra coisa não é que as deleitosas +Honras que a vida fazem sublimada. +Aquelas proeminências gloriosas, +Os triunfos, a fronte coroada +De palma e louro, a glória e maravilha: +Estes são os deleites desta ilha. + +90 +Que as imortalidades que fingia +A antiguidade, que os ilustres ama, +Lá no estelante Olimpo, a quem subia +Sobre as asas ínclitas da Fama, +Por obras valorosas que fazia, +Pelo trabalho imenso que se chama +Caminho da virtude alto e fragoso, +Mas no fim doce, alegre e deleitoso: + +91 +Não eram senão prémios que reparte +Por feitos imortais e soberanos +O mundo com os varões, que esforço e arte +Divinos os fizeram, sendo humanos. +Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, +Eneias e Quirino, e os dois Tebanos, +Ceres, Palas e Juno, com Diana, +Todos foram de fraca carne humana. + +92 +Mas a Fama, trombeta de obras tais, +Lhe deu no mundo nomes tão estranhos +De Deuses, Semideuses imortais, +Indígetes, Heróicos e de Magnos. +Por isso, ó vós que as famas estimais, +Se quiserdes no mundo ser tamanhos, +Despertai já do sono do ócio ignavo, +Que o ânimo de livre faz escravo. + +93 +E ponde na cobiça um freio duro, +E na ambição também, que indignamente +Tomais mil vezes, e no torpe e escuro +Vício da tirania infame e urgente; +Porque essas honras vãs, esse ouro puro +Verdadeiro valor não dão à gente: +Melhor é, merecê-los sem os ter, +Que possuí-los sem os merecer. + +94 +Ou dai na paz as leis iguais, constantes, +Que aos grandes não dêem o dos pequenos; +Ou vos vesti nas armas rutilantes, +Contra a lei dos inimigos Sarracenos: +Fareis os Reinos grandes e possantes, +E todos tereis mais, o nenhum menos; +Possuireis riquezas merecidas, +Com as honras, que ilustram tanto as vidas. + +95 +E fareis claro o Rei, que tanto amais, +Agora com os conselhos bem cuidados, +Agora com as espadas, que imortais +Vos farão, como os vossos já passados; +Impossibilidades não façais, +Que quem quis sempre pôde; e numerados +Sereis entre os Heróis esclarecidos, +E nesta Ilha de Vénus recebidos. + +Canto Décimo + +1 +Mas já o claro amador da Larisséia +Adúltera inclinava os animais +Lá pera o grande lago que rodeia +Temistitão, nos fins Ocidentais; +O grande ardor do Sol Favónio enfreia +Co sopro que nos tanques naturais +Encrespa a água serena e despertava +Os lírios e jasmins, que a calma agrava, + +2 +Quando as fermosas Ninfas, cos amantes +Pela mão, já conformes e contentes, +Subiam pera os paços radiantes +E de metais ornados reluzentes, +Mandados da Rainha, que abundantes +Mesas d'altos manjares excelentes +Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza +Restaurem da cansada natureza. + +3 +Ali, em cadeiras ricas, cristalinas, +Se assentam dous e dous, amante e dama; +Noutras, à cabeceira, d'ouro finas, +Está co a bela Deusa o claro Gama. +De iguarias suaves e divinas, +A quem não chega a Egípcia antiga fama, +Se acumulam os pratos de fulvo ouro, +Trazidos lá do Atlântico tesouro. + +4 +Os vinhos odoríferos, que acima +Estão não só do Itálico Falerno +Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima +Com todo o ajuntamento sempiterno, +Nos vasos, onde em vão trabalha a lima, +Crespas escumas erguem, que no interno +Coração movem súbita alegria, +Saltando co a mistura d'água fria. + +5 +Mil práticas alegres se tocavam; +Risos doces, sutis e argutos ditos, +Que entre um e outro manjar se ale vantavam, +Despertando os alegres apetitos; +Músicos instrumentos não faltavam +(Quais, no profundo Reino, os nus espritos +Fizeram descansar da eterna pena) +Cüa voz düa angélica Sirena. + +6 +Cantava a bela Ninfa, e cos acentos, +Que pelos altos paços vão soando, +Em consonância igual, os instumentos +Suaves vêm a um tempo conformando. +Um súbito silêncio enfreia os ventos +E faz ir docemente murmurando +As águas, e nas casas naturais +Adormecer os brutos animais. + +7 +Com doce voz está subindo ao Céu +Altos varões que estão por vir ao mundo, +Cujas claras Ideias viu Proteu +Num globo vão, diáfano, rotundo, +Que Júpiter em dom lho concedeu +Em sonhos, e despois no Reino fundo, +Vaticinando, o disse, e na memória +Recolheu logo a Ninfa a clara história. + +8 +Matéria é de coturno, e não de soco, +A que a Ninfa aprendeu no imenso lago; +Qual Iopas não soube, ou Demodoco, +Entre os Feaces um, outro em Cartago. +Aqui, minha Calíope, te invoco +Neste trabalho extremo, por que em pago +Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo, +O gosto de escrever, que vou perdendo. + +9 +Vão os anos descendo, e já do Estio +Há pouco que passar até o Outono; +A Fortuna me faz o engenho frio, +Do qual já não me jacto nem me abono; +Os desgostos me vão levando ao rio +Do negro esquecimento e eterno sono. +Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha +Das Musas, co que quero à nação minha! + +10 +Cantava a bela Deusa que viriam +Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira, +Armadas que as ribeiras venceriam +Por onde o Oceano Índico suspira; +E que os Gentios Reis que não dariam +A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira +Provariam do braço duro e forte, +Até render-se a ele ou logo à morte. + +11 +Cantava dum que tem nos Malabares +Do sumo sacerdócio a dignidade, +Que, só por não quebrar cos singulares +Barões os nós que dera d'amizade, +Sofrerá suas cidades e lugares, +Com ferro, incêndios, ira e crueldade, +Ver destruir do Samorim potente, +Que tais ódios terá co a nova gente. + +12 +E canta como lá se embarcaria +Em Belém o remédio deste dano, +Sem saber o que em si ao mar traria, +O grão Pacheco, Aquiles Lusitano. +O peso sentirão, quando entraria, +O curvo lenho e o férvido Oceano, +Quando mais n'água os troncos que gemerem +Contra sua natureza se meterem. + +13 +Mas, já chegado aos fins Orientais +E deixado em ajuda do gentio Rei de +Cochim, com poucos naturais, +Nos braços do salgado e curvo rio +Desbaratará os Naires infernais +No passo Cambalão, tornando frio +D'espanto o ardor imenso do Oriente, +Que verá tanto obrar tão pouca gente. + +14 +Chamará o Samorim mais gente nova; +Virão Reis [de] Bipur e de Tanor, +Das serras de Narsinga, que alta prova +Estarão prometendo a seu senhor; +Fará que todo o Naire, enfim, se mova +Que entre Calecu jaz e Cananor, +D'ambas as Leis imigas pera a guerra: +Mouros por mar, Gentios pola terra. + +15 +E todos outra vez desbaratando, +Por terra e mar, o grão Pacheco ousado, +A grande multidão que irá matando +A todo o Malabar terá admirado. +Cometerá outra vez, não dilatando, +O Gentio os combates, apressado, +Injuriando os seus, fazendo votos +Em vão aos Deuses vãos, surdos e imotos. + +16 +Já não defenderá somente os passos, +Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas; +Aceso de ira, o Cão, não vendo lassos +Aqueles que as cidades fazem rasas, +Fará que os seus, de vida pouco escassos, +Cometam o Pacheco, que tem asas, +Por dous passos num tempo; mas voando +Dum noutro, tudo irá desbaratando. + +17 +Virá ali o Samorim, por que em pessoa +Veja a batalha e os seus esforce e anime; +Mas um tiro, que com zunido voa, +De sangue o tingirá no andor sublime. +Já não verá remédio ou manha boa +Nem força que o Pacheco muito estime; +Inventará traições e vãos venenos, +Mas sempre (o Céu querendo) fará menos. + +18 +Que tornará a vez sétima (cantava) +Pelejar co invicto e forte Luso, +A quem nenhum trabalho pesa e agrava; +Mas, contudo, este só o fará confuso. +Trará pera a batalha, horrenda e brava, +Máquinas de madeiros fora de uso, +Pera lhe abalroar as caravelas, +Que até'li vão lhe fora cometê-las. + +19 +Pela água levará serras de fogo +Pera abrasar-lhe quanta armada tenha; +Mas a militar arte e engenho logo +Fará ser vã a braveza com que venha. +--"Nenhum claro barão no Márcio jogo, +Que nas asas da Fama se sustenha, +Chega a este, que a palma a todos toma. +E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma. + +20 +"Porque tantas batalhas, sustentadas +Com muito pouco mais de cem soldados, +Com tantas manhas e artes inventadas, +Tantos Cães não imbeles profligados, +Ou parecerão fábulas sonhadas, +Ou que os celestes Coros, invocados, +Decerão a ajudá-lo e lhe darão +Esforço, força, ardil e coração. + +21 +"Aquele que nos campos Maratónios +O grão poder de Dário estrui e rende, +Ou quem, com quatro mil Lacedemónios, +O passo de Termópilas defende, +Nem o mancebo Cocles dos Ausónios, +Que com todo o poder Tusco contende +Em defensa da ponte, ou Quinto Fábio, +Foi como este na guerra forte e sábio." + +22 +Mas neste passo a Ninfa, o som canoro +Abaxando, fez ronco e entristecido, +Cantando em baxa voz, envolta em choro, +O grande esforço mal agardecido. +--"Ó Belisário (disse) que no coro +Das Musas serás sempre engrandecido, +Se em ti viste abatido o bravo Marte, +Aqui tens com quem podes consolar-te! + +23 +"Aqui tens companheiro, assi nos feitos +Como no galardão injusto e duro; +Em ti e nele veremos altos peitos +A baxo estado vir, humilde e escuro. +Morrer nos hospitais, em pobres leitos, +Os que ao Rei e à Lei servem de muro! +Isto fazem os Reis cuja vontade +Manda mais que a justiça e que a verdade. + +24 +"Isto fazem os Reis quando embebidos +Nüa aparência branda que os contenta +Dão os prémios, de Aiace merecidos, +À língua vã de Ulisses, fraudulenta. +Mas vingo-me: que os bens mal repartidos +Por quem só doces sombras apresenta, +Se não os dão a sábios cavaleiros, +Dão-os logo a avarentos lisonjeiros. + +25 +"Mas tu, de quem ficou tão mal pagado +Um tal vassalo, ó Rei, só nisto inico, +Se não és pera dar-lhe honroso estado, +É ele pera dar-te um Reino rico. +Enquanto for o mundo rodeado +Dos Apolíneos raios, eu te fico +Que ele seja entre a gente ilustre e claro, +E tu nisto culpado por avaro. + +26 +"Mas eis outro (cantava) intitulado +Vem com nome real e traz consigo +O filho, que no mar será ilustrado, +Tanto como qualquer Romano antigo. +Ambos darão com braço forte, armado, +A Quíloa fértil, áspero castigo, +Fazendo nela Rei leal e humano, +Deitado fora o pérfido tirano. + +27 +"Também farão Mombaça, que se arreia +De casas sumptuosas e edifícios, +Co ferro e fogo seu queimada e feia, +Em pago dos passados malefícios. +Despois, na costa da Índia, andando cheia +De lenhos inimigos e artifícios +Contra os Lusos, com velas e com remos +O mancebo Lourenço fará extremos. + +28 +"Das grandes naus do Samorim potente, +Que encherão todo o mar, co a férrea pela, +Que sai com trovão do cobre ardente, +Fará pedaços leme, masto, vela. +Despois, lançando arpéus ousadamente +Na capitaina imiga, dentro nela +Saltando o fará só com lança e espada +De quatrocentos Mouros despejada. + +29 +"Mas de Deus a escondida providência +(Que ela só sabe o bem de que se serve) +O porá onde esforço nem prudência +Poderá haver que a vida lhe reserve. +Em Chaúl, onde em sangue e resistência +O mar todo com fogo e ferro ferve, +Lhe farão que com vida se não saia +As armadas de Egipto e de Cambaia. + +30 +"Ali o poder de muitos inimigos +(Que o grande esforço só com força rende), +Os ventos que faltaram, e os perigos +Do mar, que sobejaram, tudo o ofende. +Aqui ressurjam todos os Antigos, +A ver o nobre ardor que aqui se aprende: +Outro Ceva verão, que, espedaçado, +Não sabe ser rendido nem domado. + +31 +"Com toda üa coxa fora, que em pedaços +Lhe leva um cego tiro que passara, +Se serve inda dos animosos braços +E do grão coração que lhe ficara. +Até que outro pelouro quebra os laços +Com que co alma o corpo se liara: +Ela, solta, voou da prisão fora +Onde súbito se acha vencedora. + +32 +"Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta, +Na qual tu mereceste paz serena! +Que o corpo, que em pedaços se apresenta, +Quem o gerou, vingança já lhe ordena: +Que eu ouço retumbar a grão tormenta, +Que vem já dar a dura e eterna pena, +De esperas, basiliscos e trabucos, +A Cambaicos cruéis e Mamelucos. + +33 +"Eis vem o pai, com ânimo estupendo, +Trazendo fúria e mágoa por antolhos, +Com que o paterno amor lhe está movendo +Fogo no coração, água nos olhos. +A nobre ira lhe vinha prometendo +Que o sangue fará dar pelos giolhos +Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo, +Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo. + +34 +"Qual o touro cioso, que se ensaia +Pera a crua peleja, os cornos tenta +No tronco dum carvalho ou alta faia +E, o ar ferindo, as forças experimenta: +Tal, antes que no seio de Cambaia +Entre Francisco irado, na opulenta +Cidade de Dabul a espada afia, +Abaxando-lhe a túmida ousadia. + +35 +"E logo, entrando fero na enseada +De Dio, ilustre em cercos e batalhas, +Fará espalhar a fraca e grande armada +De Calecu, que remos tem por malhas. +A de Melique Iaz, acautelada, +Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas, +Fará ir ver o frio e fundo assento, +Secreto leito do húmido elemento. + +36 +"Mas a de Mir Hocém, que, abalroando, +A fúria esperará dos vingadores, +Verá braços e pernas ir nadando +Sem corpos, pelo mar, de seus senhores. +Raios de fogo irão representando, +No cego ardor, os bravos domadores. +Quanto ali sentirão olhos e ouvidos +É fumo, ferro, flamas e alaridos. + +37 +"Mas ah, que desta próspera vitória, +Com que despois virá ao pátrio Tejo, +Quási lhe roubará a famosa glória +Um sucesso, que triste e negro vejo! +O Cabo Tormentório, que a memória +Cos ossos guardará, não terá pejo +De tirar deste mundo aquele esprito, +Que não tiraram toda a Índia e Egipto. + +38 +"Ali, Cafres selvagens poderão +O que destros imigos não puderam; +E rudos paus tostados sós farão +O que arcos e pelouros não fizeram. +Ocultos os juízos de Deus são; +As gentes vãs, que não nos entenderam, +Chamam-lhe fado mau, fortuna escura, +Sendo só providência de Deus pura. + +39 +"Mas oh, que luz tamanha que abrir sinto +(Dizia a Ninfa, e a voz alevantava) +Lá no mar de Melinde, em sangue tinto +Das cidades de Lamo, de Oja e Brava, +Pelo Cunha também, que nunca extinto +Será seu nome em todo o mar que lava +As ilhas do Austro, e praias que se chamam +De São Lourenço, e em todo o Sul se afamam! + +40 +"Esta luz é do fogo e das luzentes +Armas com que Albuquerque irá amansando +De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes, +Que refusam o jugo honroso e brando. +Ali verão as setas estridentes +Reciprocar-se, a ponta no ar virando +Contra quem as tirou; que Deus peleja +Por quem estende a fé da Madre Igreja. + +41 +"Ali do sal os montes não defendem +De corrupção os corpos no combate, +Que mortos pela praia e mar se estendem +De Gerum, de Mazcate e Calaiate; +Até que à força só de braço aprendem +A abaxar a cerviz, onde se lhe ate +Obrigação de dar o reino inico +Das perlas de Barém tributo rico. + +42 +"Que gloriosas palmas tecer vejo +Com que Vitória a fronte lhe coroa, +Quando, sem sombra vã de medo ou pejo, +Toma a ilha ilustríssima de Goa! +Despois, obedecendo ao duro ensejo, +A deixa, e ocasião espera boa +Com que a torne a tomar, que esforço e arte +Vencerão a Fortuna e o próprio Marte. + +43 +"Eis já sobr'ela torna e vai rompendo +Por muros, fogo, lanças e pelouros, +Abrindo com a espada o espesso e horrendo +Esquadrão de Gentios e de Mouros. +Irão soldados ínclitos fazendo +Mais que liões famélicos e touros, +Na luz que sempre celebrada e dina +Será da Egípcia Santa Caterina. + +44 +"Nem tu menos fugir poderás deste, +Posto que rica e posto que assentada +Lá no grémio da Aurora, onde naceste, +Opulenta Malaca nomeada. +As setas venenosas que fizeste, +Os crises com que já te vejo armada, +Malaios namorados, Jaus valentes, +Todos farás ao Luso obedientes." + +45 +Mais estanças cantara esta Sirena +Em louvor do ilustríssimo Albuquerque, +Mas alembrou-lhe üa ira que o condena, +Posto que a fama sua o mundo cerque. +O grande Capitão, que o fado ordena +Que com trabalhos glória eterna merque, +Mais há-de ser um brando companheiro +Pera os seus, que juiz cruel e inteiro. + +46 +Mas em tempo que fomes e asperezas, +Doenças, frechas e trovões ardentes, +A sazão e o lugar, fazem cruezas +Nos soldados a tudo obedientes, +Parece de selváticas brutezas, +De peitos inumanos e insolentes, +Dar extremo suplício pela culpa +Que a fraca humanidade e Amor desculpa. + +47 +Não será a culpa abominoso incesto +Nem violento estupro em virgem pura, +Nem menos adultério desonesto, +Mas cüa escrava vil, lasciva e escura. +Se o peito, ou de cioso, ou de modesto, +Ou de usado a crueza fera e dura, +Cos seus üa ira insana não refreia, +Põe na fama alva noda negra e feia. + +48 +Viu Alexandre Apeles namorado +Da sua Campaspe, e deu-lha alegremente, +Não sendo seu soldado exprimentado, +Nem vendo-se num cerco duro e urgente. +Sentiu Ciro que andava já abrasado +Araspas, de Panteia, em fogo ardente, +Que ele tomara em guarda, e prometia +Que nenhum mau desejo o venceria; + +49 +Mas, vendo o ilustre Persa que vencido +Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa, +Levemente o perdoa, e foi servido +Dele num caso grande, em recompensa. +Per força, de Judita foi marido +O férreo Balduíno; mas dispensa +Carlos, pai dela, posto em causas grandes, +Que viva e povoador seja de Frandes. + +50 +Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto, +De Soares cantava, que as bandeiras +Faria tremular e pôr espanto +Pelas roxas Arábicas ribeiras: +--"Medina abominábil teme tanto, +Quanto Meca e Gidá, co as derradeiras +Praias de Abássia; Barborá se teme +Do mal de que o empório Zeila geme. + +51 +"A nobre ilha também de Taprobana, +Já pelo nome antigo tão famosa +Quanto agora soberba e soberana +Pela cortiça cálida, cheirosa, +Dela dará tributo à Lusitana +Bandeira, quando, excelsa e gloriosa, +Vencendo se erguerá na torre erguida, +Em Columbo, dos próprios tão temida. + +52 +"Também Sequeira, as ondas Eritreias +Dividindo, abrirá novo caminho +Pera ti, grande Império, que te arreias +De seres de Candace e Sabá ninho. +Maçuá, com cisternas de água cheias +Verá, e o porto Arquico, ali vizinho; +E fará descobir remotas Ilhas, +Que dão ao mundo novas maravilhas. + +53 +"Virá despois Meneses, cujo ferro +Mais na Africa, que cá, terá provado; +Castigará de Ormuz soberba o erro, +Com lhe fazer tributo dar dobrado. +Também tu, Gama, em pago do desterro +Em que estás e serás inda tornado, +Cos títulos de Conde e d'honras nobres +Virás mandar a terra que descobres. + +54 +"Mas aquela fatal necessidade +De quem ninguém se exime dos humanos, +Ilustrado co a Régia dignidade, +Te tirará do mundo e seus enganos. +Outro Meneses logo, cuja idade +É maior na prudência que nos anos, +Governará; e fará o ditoso Henrique +Que perpétua memória dele fique. + +55 +"Não vencerá somente os Malabares, +Destruindo Panane com Coulete, +Cometendo as bombardas, que, nos ares, +Se vingam só do peito que as comete; +Mas com virtudes, certo, singulares, +Vence os imigos d'alma todos sete; +De cobiça triunfa e incontinência, +Que em tal idade é suma de excelência. + +56 +"Mas, despois que as Estrelas o chamarem, +Sucederás, ó forte Mascarenhas; +E, se injustos o mando te tomarem, +Prometo-te que fama eterna tenhas. +Pera teus inimigos confessarem +Teu valor alto, o fado quer que venhas +A mandar, mais de palmas coroado, +Que de fortuna justa acompanhado. + +57 +"No reino de Bintão, que tantos danos +Terá a Malaca muito tempo feitos, +Num só dia as injúrias de mil anos +Vingarás, co valor de ilustres peitos. +Trabalhos e perigos inumanos, +Abrolhos férreos mil, passos estreitos, +Tranqueiras, baluartes, lanças, setas: +Tudo fico que rompas e sometas. + +58 +"Mas na Índia, cobiça e ambição, +Que claramente põem aberto o rosto +Contra Deus e Justiça, te farão +Vitupério nenhum, mas só desgosto. +Quem faz injúria vil e sem razão, +Com forças e poder em que está posto, +Não vence; que a vitória verdadeira +É saber ter justiça nua e inteira. + +59 +"Mas, contudo, não nego que Sampaio +Será, no esforço, ilustre e assinalado, +Mostrando-se no mar um fero raio, +Que de inimigos mil verá coalhado. +Em Bacanor fará cruel ensaio +No Malabar, pera que, amedrontado, +Despois a ser vencido dele venha +Cutiale, com quanta armada tenha. + +60 +"E não menos de Dio a fera frota, +Que Chaúl temerá, de grande e ousada, +Fará, co a vista só, perdida e rota, +Por Heitor da Silveira e destroçada; +Por Heitor Português, de quem se nota +Que na costa Cambaica, sempre armada, +Será aos Guzarates tanto dano, +Quanto já foi aos Gregos o Troiano. + +61 +"A Sampaio feroz sucederá +Cunha, que longo tempo tem o leme: +De Chale as torres altas erguerá, +Enquanto Dio ilustre dele treme; +O forte Baçaim se lhe dará, +Não sem sangue, porém, que nele geme +Melique, porque à força só de espada +A tranqueira soberba vê tomada. + +62 +"Trás este vem Noronha, cujo auspício +De Dio os Rumes feros afugenta; +Dio, que o peito e bélico exercício +De António da Silveira bem sustenta. +Fará em Noronha a morte o usado ofício, +Quando um teu ramo, ó Gama, se exprimenta +No governo do Império, cujo zelo +Com medo o Roxo Mar fará amarelo. + +63 +"Das mãos do teu Estêvão vem tomar +As rédeas um, que já será ilustrado +No Brasil, com vencer e castigar +O pirata Francês, ao mar usado. +Despois, Capitão-mor do Índico mar, +O muro de Damão, soberbo e armado, +Escala e primeiro entra a porta aberta, +Que fogo e frechas mil terão coberta. + +64 +"A este o Rei Cambaico soberbíssimo +Fortaleza dará na rica Dio, +Por que contra o Mogor poderosíssimo +Lhe ajude a defender o senhorio. +Despois irá com peito esforçadíssimo +A tolher que não passe o Rei gentio +De Calecu, que assi com quantos veio +O fará retirar, de sangue cheio. + +65 +"Destruirá a cidade Repelim, +Pondo o seu Rei, com muitos, em fugida; +E despois, junto ao Cabo Comorim, +üa façanha faz esclarecida: +A frota principal do Samorim, +Que destruir o mundo não duvida, +Vencerá co furor do ferro e fogo; +Em si verá Beadala o Márcio jogo. + +66 +"Tendo assi limpa a Índia dos imigos, +Virá despois com ceptro a governá-Ia +Sem que ache resistência nem perigos, +Que todos tremem dele e nenhum fala. +Só quis provar os ásperos castigos +Baticalá, que vira já Beadala. +De sangue e corpos mortos ficou cheia +E de fogo e trovões desfeita e feia. + +67 +"Este será Martinho, que de Marte +O nome tem co as obras derivado; +Tanto em armas ilustre em toda parte, +Quanto, em conselho, sábio e bem cuidado. +Suceder-lhe-á ali Castro, que o estandarte +Português terá sempre levantado, +Conforme sucessor ao sucedido, +Que um ergue Dio, outro o defende erguido. + +68 +"Persas feroces, Abassis e Rumes, +Que trazido de Roma o nome têm, +Vários de gestos, vários de costumes +(Que mil nações ao cerco feras vêm), +Farão dos Céus ao mundo vãos queixumes +Porque uns poucos a terra lhe detêm. +Em sangue Português, juram, descridos, +De banhar os bigodes retorcidos. + +69 +"Basiliscos medonhos e liões, +Trabucos feros, minas encobertas, +Sustenta Mascarenhas cos barões +Que tão ledos as mortes têm por certas; +Até que, nas maiores opressões, +Castro libertador, fazendo ofertas +Das vidas de seus filhos, quer que fiquem +Com fama eterna e a Deus se sacrifiquem. + +70 +"Fernando, um deles, ramo da alta pranta, +Onde o violento fogo, com ruido, +Em pedaços os muros no ar levanta, +Será ali arrebatado e ao Céu subido. +Álvaro, quando o Inverno o mundo espanta +E tem o caminho húmido impedido, +Abrindo-o, vence as ondas e os perigos, +Os ventos e despois os inimigos. + +71 +"Eis vem despois o pai, que as ondas corta +Co restante da gente Lusitana, +E com força e saber, que mais importa, +Batalha dá felice e soberana. +Uns, paredes subindo, escusam porta; +Outros a abrem na fera esquadra insana. +Feitos farão tão dinos de memória +Que não caibam em verso ou larga história. + +72 +"Este, despois, em campo se apresenta, +Vencedor forte e intrépido, ao possante +Rei de Cambaia e a vista lhe amedrenta +Da fera multidão quadrupedante. +Não menos suas terras mal sustenta +O Hidalcão, do braço triunfante +Que castigando vai Dabul na costa; +Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta. + +73 +"Estes e outros Barões, por várias partes, +Dinos todos de fama e maravilha, +Fazendo-se na terra bravos Martes, +Virão lograr os gostos desta Ilha, +Varrendo triunfantes estandartes +Pelas ondas que corta a aguda quilha; +E acharão estas Ninfas e estas mesas, +Que glórias e honras são de árduas empresas." + +74 +Assi cantava a Ninfa; e as outras todas, +Com sonoroso aplauso, vozes davam, +Com que festejam as alegres vodas +Que com tanto prazer se celebravam. +--"Por mais que da Fortuna andem as rodas +(Nüa cônsona voz todas soavam), +Não vos hão-de faltar, gente famosa, +Honra, valor e fama gloriosa." + +75 +Despois que a corporal necessidade +Se satisfez do mantimento nobre, +E na harmonia e doce suavidade +Viram os altos feitos que descobre, +Tétis, de graça ornada e gravidade, +Pera que com mais alta glória dobre +As festas deste alegre e claro dia, +Pera o felice Gama assi dizia: + +76 +--"Faz-te mercê, barão, a Sapiência +Suprema de, cos olhos corporais, +Veres o que não pode a vã ciência +Dos errados e míseros mortais. +Sigue-me firme e forte, com prudência, +Por este monte espesso, tu cos mais." +Assi lhe diz e o guia por um mato +Árduo, difícil, duro a humano trato. + +77 +Não andam muito que no erguido cume +Se acharam, onde um campo se esmaltava +De esmeraldas, rubis, tais que presume +A vista que divino chão pisava. +Aqui um globo vêm no ar, que o lume +Claríssimo por ele penetrava, +De modo que o seu centro está evidente, +Como a sua superfícia, claramente. + +78 +Qual a matéria seja não se enxerga, +Mas enxerga-se bem que está composto +De vários orbes, que a Divina verga +Compôs, e um centro a todos só tem posto. +Volvendo, ora se abaxe, agora se erga, +Nunca s'ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto +Por toda a parte tem; e em toda a parte +Começa e acaba, enfim, por divina arte, + +79 +Uniforme, perfeito, em si sustido, +Qual, enfim, o Arquetipo que o criou. +Vendo o Gama este globo, comovido +De espanto e de desejo ali ficou. +Diz-lhe a Deusa:--"O transunto, reduzido +Em pequeno volume, aqui te dou +Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas +Por onde vás e irás e o que desejas. + +80 +"Vês aqui a grande máquina do Mundo, +Etérea e elemental, que fabricada +Assi foi do Saber, alto e profundo, +Que é sem princípio e meta limitada. +Quem cerca em derredor este rotundo +Globo e sua superfícia tão limada, +É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende, +Que a tanto o engenho humano não se estende. + +81 +"Este orbe que, primeiro, vai cercando +Os outros mais pequenos que em si tem, +Que está com luz tão clara radiando +Que a vista cega e a mente vil também, +Empíreo se nomeia, onde logrando +Puras almas estão daquele Bem +Tamanho, que ele só se entende e alcança, +De quem não há no mundo semelhança. + +82 +"Aqui, só verdadeiros, gloriosos +Divos estão, porque eu, Saturno e Jano, +Júpiter, Juno, fomos fabulosos, +Fingidos de mortal e cego engano. +Só pera fazer versos deleitosos +Servimos; e, se mais o trato humano +Nos pode dar, é só que o nome nosso +Nestas estrelas pôs o engenho vosso. + +83 +"E também, porque a santa Providência, +Que em Júpiter aqui se representa, +Por espíritos mil que têm prudência +Governa o Mundo todo que sustenta +(Ensina-lo a profética ciência, +Em muitos dos exemplos que apresenta); +Os que são bons, guiando, favorecem, +Os maus, em quanto podem, nos empecem; + +84 +"Quer logo aqui a pintura que varia +Agora deleitando, ora ensinando, +Dar-lhe nomes que a antiga Poesia +A seus Deuses já dera, fabulando; +Que os Anjos de celeste companhia +Deuses o sacro verso está chamando, +Nem nega que esse nome preminente +Também aos maus se dá, mas falsamente. + +85 +"Enfim que o Sumo Deus, que por segundas +Causas obra no Mundo, tudo manda. +E tornando a contar-te das profundas +Obras da Mão Divina veneranda, +Debaxo deste círculo onde as mundas +Almas divinas gozam, que não anda, +Outro corre, tão leve e tão ligeiro +Que não se enxerga: é o Móbile primeiro. + +86 +"Com este rapto e grande movimento +Vão todos os que dentro tem no seio; +Por obra deste, o Sol, andando a tento, +O dia e noite faz, com curso alheio. +Debaxo deste leve, anda outro lento, +Tão lento e sojugado a duro freio, +Que enquanto Febo, de luz nunca escasso, +Duzentos cursos faz, dá ele um passo. + +87 +"Olha estoutro debaxo, que esmaltado +De corpos lisos anda e radiantes, +Que também nele tem curso ordenado +E nos seus axes correm cintilantes. +Bem vês como se veste e faz ornado +Co largo Cinto d, ouro, que estelantes +Animais doze traz afigurados, +Apousentos de Febo limitados. + +88 +"Olha por outras partes a pintura +Que as Estrelas fulgentes vão fazendo: +Olha a Carreta, atenta a Cinosura, +Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo; +Vê de Cassiopeia a fermosura +E do Orionte o gesto turbulento; +Olha o Cisne morrendo que suspira, +A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira. + +89 +"Debaxo deste grande Firmamento, +Vês o céu de Saturno, Deus antigo; +Júpiter logo faz o movimento, +E Marte abaxo, bélico inimigo; +O claro Olho do céu, no quarto assento, +E Vénus, que os amores traz consigo; +Mercúrio, de eloquência soberana; +Com três rostos, debaxo vai Diana. + +90 +"Em todos estes orbes, diferente +Curso verás, nuns grave e noutros leve; +Ora fogem do Centro longamente, +Ora da Terra estão caminho breve, +Bem como quis o Padre omnipotente, +Que o fogo fez e o ar, o vento e neve, +Os quais verás que jazem mais a dentro +E tem co Mar a Terra por seu centro. + +91 +"Neste centro, pousada dos humanos, +Que não somente, ousados, se contentam +De sofrerem da terra firme os danos, +Mas inda o mar instábil exprimentam, +Verás as várias partes, que os insanos +Mares dividem, onde se apousentam +Várias nações que mandam vários Reis, +Vários costumes seus e várias leis. + +92 +"Vês Europa Cristã, mais alta e clara +Que as outras em polícia e fortaleza. +Vês África, dos bens do mundo avara, +Inculta e toda cheia de bruteza; +Co Cabo que até'aqui se vos negara, +Que assentou pera o Austro a Natureza. +Olha essa terra toda, que se habita +Dessa gente sem Lei, quási infinita. + +93 +"Vê do Benomotapa o grande império, +De selvática gente, negra e nua, +Onde Gonçalo morte e vitupério +Padecerá, pola Fé santa sua. +Nace por este incógnito Hemispério +O metal por que mais a gente sua. +Vê que do lago donde se derrama +O Nilo, também vindo está Cuama. + +94 +"Olha as casas dos negros, como estão +Sem portas, confiados, em seus ninhos, +Na justiça real e defensão +E na fidelidade dos vizinhos; +Olha deles a bruta multidão, +Qual bando espesso e negro de estorninhos, +Combaterá em Sofala a fortaleza, Que +defenderá Nhaia com destreza. + +95 +"Olha lá as alagoas donde o Nilo +Nace, que não souberam os antigos; +Vê-lo rega, gerando o crocodilo, +Os povos Abassis, de Crista amigos; +Olha como sem muros (novo estilo) +Se defendem milhor dos inimigos; +Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama, +Que ora dos naturais Nobá se chama. + +96 +"Nesta remota terra um filho teu +Nas armas contra os Turcos será claro; +Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu; +Mas contra o fim fatal não há reparo. +Vê cá a costa do mar, onde te deu +Melinde hospício gasalhoso e caro; +O Rapto rio nota, que o romance +Da terra chama Obi; entra em Quilmance. + +97 +"O Cabo vê já Arómata chamado, +E agora Guardafú, dos moradores, +Onde começa a boca do afamado +Mar Roxo, que do fundo toma as cores; +Este como limite está lançado +Que divide Asia de Africa; e as milhores +Povoações que a parte Africa tem +Maçuá são, Arquico e Suaquém. + +98 +"Vês o extremo Suez, que antigamente +Dizem que foi dos Héroas a cidade +(Outros dizem que Arsínoe), e ao presente +Tem das frotas do Egipto a potestade. +Olha as águas nas quais abriu patente +Estrada o grão Mousés na antiga idade. +Ásia começa aqui, que se apresenta +Em terras grande, em reinos opulenta. + +99 +"Olha o monte Sinai, que se ennobrece +Co sepulcro de Santa Caterina; +Olha Toro e Gidá, que lhe falece +Água das fontes, doce e cristalina; +Olha as portas do Estreito, que fenece +No reino da seca Ádem, que confina +Com a serra d'Arzira, pedra viva, +Onde chuva dos céus se não deriva. + +100 +"Olha as Arábias três, que tanta terra +Tomam, todas da gente vaga e baça, +Donde vêm os cavalos pera a guerra, +Ligeiros e feroces, de alta raça; +Olha a costa que corrre, até que cera +Outro Estreito de Pérsia, e faz a traça +O Cabo que co nome se apelida +Da cidade Fartaque, ali sabida. + +101 +"Olha Dófar, insigne porque manda +O mais cheiroso incenso pera as aras; +Mas atenta: já cá destoutra banda +De Roçalgate, e praias sempre avaras, +Começa o reino Ormuz, que todo se anda +Pelas ribeiras que inda serão claras +Quando as galés do Turco e fera armada +Virem de Castelbranco nua a espada. + +102 +"Olha o Cabo Asaboro, que chamado +Agora é Moçandão, dos navegantes; +Por aqui entra o lago que é fechado +De Arábia e Pérsias terras abundantes. +Atenta a ilha Barém, que o fundo ornado +Tem das suas perlas ricas, e imitantes +A cor da Aurora; e vê na água salgada +Ter o Tígris e Eufrates üa entrada. + +103 +"Olha da grande Pérsia o império nobre, +Sempre posto no campo e nos cavalos, +Que se injuria de usar fundido cobre +E de não ter das armas sempre os calos. +Mas vê a ilha Gerum, como descobre +O que fazem do tempo os intervalos, +Que da cidade Armuza, que ali esteve, +Ela o nome despois e a glória teve. + +104 +"Aqui de Dom Filipe de Meneses +Se mostrará a virtude, em armas clara, +Quando, com muito poucos Portugueses, +Os muitos Párseos vencerá de Lara. +Virão provar os golpes e reveses +De Dom Pedro de Sousa, que provara +Já seu braço em Ampaza, que deixada +Terá por terra, à força só de espada. + +105 +"Mas deixemos o Estreito e o conhecido +Cabo de Jasque, dito já Carpela, +Com todo o seu terreno mal querido +Da Natura e dos dões usados dela; +Carmânia teve já por apelido. +Mas vês o fermoso Indo, que daquela +Altura nace, junto à qual, também +Doutra altura correndo o Gange vem? + +106 +"Olha a terra de Ulcinde, fertilíssima, +E de Jáquete a íntima enseada; +Do mar a enchente súbita, grandíssima, +E a vazante, que foge apressurada. +A terra de Cambaia vê, riquíssima, +Onde do mar o seio faz entrada; +Cidades outras mil, que vou passando, +A vós outros aqui se estão guardando. + +107 +"Vês corre a costa célebre Indiana +Pera o Sul, até o Cabo Comori, +Já chamado Cori, que Taprobana +(Que ora é Ceilão) defronte tem de si. +Por este mar a gente Lusitana, +Que com armas virá despois de ti, +Terá vitórias, terras e cidades, +Nas quais hão-de viver muitas idades. + +108 +"As províncias que entre um e o outro rio +Vês, com várias nações, são infinitas: +Um reino Mahometa, outro Gentio, +A quem tem o Demónio leis escritas. +Olha que de Narsinga o senhorio +Tem as relíquias santas e benditas +Do corpo de Tomé, barão sagrado, +Que a Jesu Cristo teve a mão no lado. + +109 +"Aqui a cidade foi que se chamava +Meliapor, fermosa, grande e rica; +Os Ídolos antigos adorava +Como inda agora faz a gente inica. +Longe do mar naquele tempo estava, +Quando a Fé, que no mundo se pubrica, +Tomé vinha prègando, e já passara +Províncias mil do mundo, que ensinara. + +110 +"Chegado aqui, pregando e junto dando +A doentes saúde, a mortos vida, +Acaso traz um dia o mar, vagando, +Um lenho de grandeza desmedida. +Deseja o Rei, que andava edificando, +Fazer dele madeira; e não duvida +Poder tirá-lo a terra, com possantes +Forças d' homens, de engenhos, de alifantes. + +111 +"Era tão grande o peso do madeiro +Que, só pera abalar-se, nada abasta; +Mas o núncio de Cristo verdadeiro +Menos trabalho em tal negócio gasta: +Ata o cordão que traz, por derradeiro, +No tronco, e fàcilmente o leva e arrasta +Pera onde faça um sumptuoso templo +Que ficasse aos futuros por exemplo. + +112 +"Sabia bem que se com fé formada +Mandar a um monte surdo que se mova, +Que obedecerá logo à voz sagrada, +Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova. +A gente ficou disto alvoraçada; +Os Brâmenes o têm por cousa nova; +Vendo os milagres, vendo a santidade, +Hão medo de perder autoridade. + +113 +"São estes sacerdotes dos Gentios +Em quem mais penetrado tinha enveja; +Buscam maneiras mil, buscam desvios, +Com que Tomé não se ouça, ou morto seja. +O principal, que ao peito traz os fios, +Um caso horrendo faz, que o mundo veja +Que inimiga não há, tão dura e fera, +Como a virtude falsa, da sincera. + +114 +"Um filho próprio mata, e logo acusa +De homicídio Tomé, que era inocente; +Dá falsas testemunhas, como se usa; +Condenaram-no a morte brevemente. +O Santo, que não vê milhor escusa +Que apelar pera o Padre omnipotente, +Quer, diante do Rei e dos senhores, +Que se faça um milagre dos maiores. + +115 +"O corpo morto manda ser trazido, +Que res[s]ucite e seja perguntado +Quem foi seu matador, e será crido +Por testemunho, o seu, mais aprovado. +Viram todos o moço vivo, erguido, +Em nome de Jesu crucificado: +Dá graças a Tomé, que lhe deu vida, +E descobre seu pai ser homicida. + +116 +"Este milagre fez tamanho espanto +Que o Rei se banha logo na água santa, +E muitos após ele; um beija o manto, +Outro louvor do Deus de Tomé canta. +Os Brâmenes se encheram de ódio tanto, +Com seu veneno os morde enveja tanta, +Que, persuadindo a isso o povo rudo, +Determinam matá-lo, em fim de tudo. + +117 +"Um dia que pregando ao povo estava, +Fingiram entre a gente um arruído. +(Já Cristo neste tempo lhe ordenava +Que, padecendo, fosse ao Céu subido); +A multidão das pedras que voava +No Santo dá, já a tudo oferecido; +Um dos maus, por fartar-se mais depressa, +Com crua lança o peito lhe atravessa. + +118 +"Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo; +Chorou-te toda a terra que pisaste; +Mais te choram as almas que vestindo +Se iam da santa Fé que lhe ensinaste. +Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo, +Te recebem na glória que ganhaste. +Pedimos-te que a Deus ajuda peças +Com que os teus Lusitanos favoreças. + +119 +"E vós outros que os nomes usurpais +De mandados de Deus, como Tomé, +Dizei: se sois mandados, como estais +Sem irdes a pregar a santa Fé? +Olhai que, se sois Sal e vos danais +Na pátria, onde profeta ninguém é, +Com que se salgarão em nossos dias +(Infiéis deixo) tantas heresias? + +120 +"Mas passo esta matéria perigosa +E tornemos à costa debuxada. +Já com esta cidade tão famosa +Se faz curva a Gangética enseada; +Corre Narsinga, rica e poderosa; +Corre Orixa, de roupas abastada; +No fundo da enseada, o ilustre rio +Ganges vem ao salgado senhorio; + +121 +"Ganges, no qual os seus habitadores +Morrem banhados, tendo por certeza +Que, inda que sejam grandes pecadores, +Esta água santa os lava e dá pureza. +Vê Catigão, cidade das milhores +De Bengala província, que se preza +De abundante. Mas olha que está posta +Pera o Austro, daqui virada, a costa. + +122 +"Olha o reino Arracão; olha o assento +De Pegu, que já monstros povoaram, +Monstros filhos do feio ajuntamento +Düa mulher e um cão, que sós se acharam. +Aqui soante arame no instrumento +Da geração costumam, o que usaram +Por manha da Rainha que, inventando +Tal uso, deitou fora o error nefando. + +123 +"Olha Tavai cidade, onde começa +De Sião largo o império tão comprido; +Tenassari, Quedá, que é só cabeça +Das que pimenta ali têm produzido. +Mais avante fareis que se conheça +Malaca por empório ennobrecido, +Onde toda a província do mar grande +Suas mercadorias ricas mande. + +124 +"Dizem que desta terra co as possantes +Ondas o mar, entrando, dividiu +A nobre ilha Samatra, que já d'antes +Juntas ambas a gente antiga viu. +Quersoneso foi dita; e das prestantes +Veias d'ouro que a terra produziu, +'Aurea', por epitéto lhe ajuntaram; +Alguns que fosse Ofir imaginaram. + +125 +"Mas, na ponta da terra, Cingapura +Verás, onde o caminho às naus se estreita; +Daqui tornando a costa à Cinosura, +Se encurva e pera a Aurora se endireita. +Vês Pam, Patane, reinos, e a longura +De Sião, que estes e outros mais sujeita; +Olha o rio Menão, que se derrama +Do grande lago que Chiamai se chama. + +126 +Vês neste grão terreno os diferentes +Nomes de mil nações, nunca sabidas: +Os Laos, em terra e número potentes; +Avás, Bramás, por serras tão compridas; +Vê nos remotos montes outras gentes, +Que Gueos se chamam, de selvages vidas; +Humana carne comem, mas a sua +Pintam com ferro ardente, usança crua. + +127 +"Vês, passa por Camboja Mecom rio, +Que capitão das águas se interpreta; +Tantas recebe d' outro só no Estio, +Que alaga os campos largos e inquieta; +Tem as enchentes quais o Nilo frio; +A gente dele crê, como indiscreta, +Que pena e glória têm, despois de morte, +Os brutos animais de toda sorte. + +128 +"Este receberá, plácido e brando, +No seu regaço os Cantos que molhados +Vêm do naufrágio triste e miserando, +Dos procelosos baxos escapados, +Das fomes, dos perigos grandes, quando +Será o injusto mando executado +Naquele cuja Lira sonorosa +Será mais afamada que ditosa. + +129 +"Vês, corre a costa que Champá se chama, +Cuja mata é do pau cheiroso ornada; +Vês Cauchichina está, de escura fama, +E de Ainão vê a incógnita enseada; +Aqui o soberbo Império, que se afama +Com terras e riqueza não cuidada, +Da China corre, e ocupa o senhorio +Desde o Trópico ardente ao Cinto frio. + +130 +"Olha o muro e edifício nunca crido, +Que entre um império e o outro se edifica, +Certíssimo sinal, e conhecido, +Da potência real, soberba e rica. +Estes, o Rei que têm, não foi nacido +Príncipe, nem dos pais aos filhos fica, +Mas elegem aquele que é famoso +Por cavaleiro, sábio e virtuoso. + +131 +"Inda outra muita terra se te esconde +Até que venha o tempo de mostrar-se; +Mas não deixes no mar as Ilhas onde +A Natureza quis mais afamar-se: +Esta, meia escondida, que responde +De longe à China, donde vem buscar-se, +É Japão, onde nace a prata fina, +Que ilustrada será co a Lei divina. + +132 +"Olha cá pelos mares do Oriente +Ás infinitas Ilhas espalhadas: +Vê Tidore e Ternate, co fervente +Cume, que lança as flamas ondeadas. +As árvores verás do cravo ardente, +Co sangue Português inda compradas. +Aqui há as áureas aves, que não decem +Nunca à terra e só mortas aparecem. + +133 +"Olha de Banda as Ilhas, que se esmaltam +Da vária cor que pinta o roxo fruto; +Às aves variadas, que ali saltam, +Da verde noz tomando seu tributo. +Olha também Bornéu, onde não faltam +Lágrimas no licor coalhado e enxuto +Das árvores, que cânfora é chamado, +Com que da Ilha o nome é celebrado. + +134 +"Ali também Timor, que o lenho manda +Sândalo, salutífero e cheiroso; +Olha a Sunda, tão larga que üa banda +Esconde pera o Sul dificultoso; +A gente do Sertão, que as terras anda, +Um rio diz que tem miraculoso, +Que, por onde ele só, sem outro, vai, +Converte em pedra o pau que nele cai. + +135 +"Vê naquela que o tempo tornou Ilha, +Que também flamas trémulas vapora, +A fonte que óleo mana, e a maravilha +Do cheiroso licor que o tronco chora, +--Cheiroso, mais que quanto estila a filha +De Ciniras na Arábia, onde ela mora; +E vê que, tendo quanto as outras têm, +Branda seda e fino ouro dá também. + +136 +"Olha, em Ceilão, que o monte se alevanta +Tanto que as nuvens passa ou a vista engana; +Os naturais o têm por cousa santa, +Pola pedra onde está a pegada humana. +Nas ilhas de Maldiva nace a pranta +No profundo das águas, soberana, +Cujo pomo contra o veneno urgente +É tido por antídoto excelente. + +137 +"Verás defronte estar do Roxo Estreito +Socotorá, co amaro aloé famosa; +Outras ilhas, no mar também sujeito +A vós, na costa de África arenosa, +Onde sai do cheiro mais perfeito +A massa, ao mundo oculta e preciosa. +De São Lourenço vê a Ilha afamada, +Que Madagáscar é dalguns chamada. + +138 +"Eis aqui as novas partes do Oriente +Que vós outros agora ao mundo dais, +Abrindo a porta ao vasto mar patente, +Que com tão forte peito navegais. +Mas é também razão que, no Ponente, +Dum Lusitano um feito inda vejais, +Que, de seu Rei mostrando-se agravado, +Caminho há-de fazer nunca cuidado. + +139 +"Vedes a grande terra que contina +Vai de Calisto ao seu contrário Pólo, +Que soberba a fará a luzente mina +Do metal que a cor tem do louro Apolo. +Castela, vossa amiga, será dina +De lançar-lhe o colar ao rudo colo. +Varias províncias tem de várias gentes, +Em ritos e costumes, diferentes. + +140 +"Mas cá onde mais se alarga, ali tereis +Parte também, co pau vermelho nota; +De Santa Cruz o nome lhe poreis; +Descobri-la-á a primeira vossa frota. +Ao longo desta costa, que tereis, +Irá buscando a parte mais remota +O Magalhães, no feito, com verdade, +Português, porém não na lealdade. + +141 +"Dês que passar a via mais que meia +Que ao Antártico Pólo vai da Linha, +Düa estatura quási giganteia +Homens verá, da terra ali vizinha; +E mais avante o Estreito que se arreia +Co nome dele agora, o qual caminha +Pera outro mar e terra que fica onde +Com suas frias asas o Austro a esconde. + +142 +"Até'aqui Portugueses concedido +Vos é saberdes os futuros feitos +Que, pelo mar que já deixais sabido, +Virão fazer barões de fortes peitos. +Agora, pois que tendes aprendido +Trabalhos que vos façam ser aceitos +As eternas esposas e fermosas, +Que coroas vos tecem gloriosas, + +143 +"Podeis-vos embarcar, que tendes vento +E mar tranquilo, pera a pátria amada." +Assi lhe disse; e logo movimento +Fazem da Ilha alegre e namorada. +Levam refresco e nobre mantimento; +Levam a companhia desejada +Das Ninfas, que hão-de ter eternamente, +Por mais tempo que o Sol o mundo aquente. + +144 +Assi foram cortando o mar sereno, +Com vento sempre manso e nunca irado, +Até que houveram vista do terreno +Em que naceram, sempre desejado. +Entraram pela foz do Tejo ameno, +E à sua pátria e Rei temido e amado +O prémio e glória dão por que mandou, +E com títulos novos se ilustrou. + +145 +Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho +Destemperada e a voz enrouquecida, +E não do canto, mas de ver que venho +Cantar a gente surda e endurecida. +O favor com que mais se acende o engenho +Não no dá a pátria, não, que está metida +No gosto da cobiça e na rudeza +Düa austera, apagada e vil tristeza. + +146 +E não sei por que influxo de Destino +Não tem um ledo orgulho e geral gosto, +Que os ânimos levanta de contino +A ter pera trabalhos ledo o rosto. +Por isso vós, ó Rei, que por divino +Conselho estais no régio sólio posto, +Olhai que sois (e vede as outras gentes) +Senhor só de vassalos excelentes. + +147 +Olhai que ledos vão, por várias vias, +Quais rompentes liões e bravos touros, +Dando os corpos a fomes e vigias, +A ferro, a fogo, a setas e pelouros, +A quentes regiões, a plagas frias, +A golpes de Idolátras e de Mouros, +A perigos incógnitos do mundo, +A naufrágios, a pexes, ao profundo. + +148 +Por vos servir, a tudo aparelhados; +De vós tão longe, sempre obedientes; +A quaisquer vossos ásperos mandados, +Sem dar reposta, prontos e contentes. +Só com saber que são de vós olhados, +Demónios infernais, negros e ardentes, +Cometerão convosco, e não duvido +Que vencedor vos façam, não vencido. + +149 +Favorecei-os logo, e alegrai-os +Com a presença e leda humanidade; +De rigorosas leis desalivai-os, +Que assi se abre o caminho à santidade. +Os mais exprimentados levantai-os, +Se, com a experiência, têm bondade +Pera vosso conselho, pois que sabem +O como, o quando, e onde as cousas cabem. + +150 +Todos favorecei em seus ofícios, +Segundo têm das vidas o talento; +Tenham Religiosos exercícios +De rogarem, por vosso regimento, +Com jejuns, disciplina, pelos vícios +Comuns; toda ambição terão por vento, +Que o bom Religioso verdadeiro +Glória vã não pretende nem dinheiro. + +151 +Os Cavaleiros tende em muita estima, +Pois com seu sangue intrépido e fervente +Estendem não sòmente a Lei de cima, +Mas inda vosso Império preminente. +Pois aqueles que a tão remoto clima +Vos vão servir, com passo diligente, +Dous inimigos vencem: uns, os vivos, +E (o que é mais) os trabalhos excessivos. + +152 +Fazei, Senhor, que nunca os admirados +Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses, +Possam dizer que são pera mandados, +Mais que pera mandar, os Portugueses. +Tomai conselho só d'exprimentados +Que viram largos anos, largos meses, +Que, posto que em cientes muito cabe. +Mais em particular o experto sabe. + +153 +De Formião, filósofo elegante, +Vereis como Anibal escarnecia, +Quando das artes bélicas, diante +Dele, com larga voz tratava e lia. +A disciplina militar prestante +Não se aprende, Senhor, na fantasia, +Sonhando, imaginando ou estudando, +Senão vendo, tratando e pelejando. + +154 +Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo, +De vós não conhecido nem sonhado? +Da boca dos pequenos sei, contudo, +Que o louvor sai às vezes acabado. +Tem me falta na vida honesto estudo, +Com longa experiência misturado, +Nem engenho, que aqui vereis presente, +Cousas que juntas se acham raramente. + +155 +Pera servir-vos, braço às armas feito, +Pera cantar-vos, mente às Musas dada; +Só me falece ser a vós aceito, +De quem virtude deve ser prezada. +Se me isto o Céu concede, e o vosso peito +Dina empresa tomar de ser cantada, +Como a pres[s]aga mente vaticina +Olhando a vossa inclinação divina, + +156 +Ou fazendo que, mais que a de Medusa, +A vista vossa tema o monte Atlante, +Ou rompendo nos campos de Ampelusa +Os muros de Marrocos e Trudante, +A minha já estimada e leda Musa +Fico que em todo o mundo de vós cante, +De sorte que Alexandro em vós se veja, +Sem à dita de Aquiles ter enveja. + +---------------------oOo--------------------- + +Final de Os Lusíadas + + + + + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Os Lusíadas, by Luís Vaz de Camões + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS LUSÍADAS *** + +***** This file should be named 3333-8.txt or 3333-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/3/3/3/3333/ + +Produced by Maria Helena Moreira Rodriques and Victor Calha + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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