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-# Laboratório de Informática
-## Aula 01
+# Laboratórios de Sistemas Digitais
+## Trabalho prático 01
### Tópico principal da aula: Introdução às FPGAs
-* [Slides](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/lsd/aula01/LSD_2022-23_AulaTP01.pdf)
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* [Guião](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/lsd/aula01/LSD_2022-23_TrabPrat01-2.pdf)
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## Organização do diretório
* [src](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/src) • Código fonte das aulas/projetos
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* [slides](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/slides) • Slides das aulas teóricas
-* [datafiles](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/datafiles) • Ficheiros extra com texto/dados
---
## Índice
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|-----------------------------------------------------------------------------------------|----------------------|
| [01](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/src/aula01) | Introduction, Basics |
| [02](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02) | Flux Control |
+| [03](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/src/aula03) | Classes |
---
*Pode conter erros, caso encontre algum, crie um* [*ticket*](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/issues/new)
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deleted file mode 100644
index 0c8b2ee..0000000
--- a/1ano/2semestre/poo/datafiles/aula01/major.txt
+++ /dev/null
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-Triste Fim de Policarpo Quaresma
Lima Barreto
PRIMEIRA PARTE
I
A LIÇÃO DE VIOLÃO
Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major
Quaresma, bateu em casa às quatro e quinze da tarde. Havia mais de
vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de Guerra, onde era
subsecretário, bongava pelas confeitarias algumas frutas, comprava
um queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria francesa.
Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora, de forma que, às três
e quarenta, por ai assim, tomava o bonde, sem erro de um minuto, ia
pisar a soleira da porta de sua casa, numa rua afastada de São
Januário, bem exatamente às quatro e quinze, como se fosse a
aparição de um astro, um eclipse, enfim um fenômeno matematicamente
determinado, previsto e predito.
A vizinhança já lhe conhecia os hábitos e tanto que, na casa do
Capitão Cláudio, onde era costume jantar-se aí pelas quatro e meia,
logo que o viam passar, a dona gritava à criada: “Alice, olha que
são horas; o Major Quaresma já passou.”
E era assim todos os dias, há quase trinta anos. Vivendo em casa
própria e tendo outros rendimentos além do seu ordenado, o Major
Quaresma podia levar um trem de vida superior ao seus recursos
burocráticos, gozando, por parte da vizinhança, da consideração e
respeito de homem abastado.
Não recebia ninguém, vivia num isolamento monacal, embora fosse
cortês com os vizinhos que o julgavam esquisito e misantropo. Se não
tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição
que merecera, fora a do doutor Segadas, um clínico afamado no lugar,
que não podia admitir que Quaresma tivesse livros: “Se não era
formado, para quê? Pedantismo!”
O subsecretário não mostrava os livros a ninguém, mas acontecia que,
quando se abriam as janelas da sala de sua livraria, da rua
poder-se-iam ver as estantes pejadas de cima a baixo.
Eram esses os seus hábitos; ultimamente, porém, mudara um pouco; e
isso provocava comentários no bairro. Além do compadre e da filha,
as únicas pessoas que o visitavam até então, nos últimos dias, era
visto entrar em sua casa, três vezes por semana e em dias certos, um
senhor baixo, magro, pálido, com um violão agasalhado numa bolsa de
camurça. Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhança. Um
violão em casa tão respeitável! Que seria?
E, na mesma tarde, urna das mais lindas vizinhas do major convidou
uma amiga, e ambas levaram um tempo perdido, de cá para lá, a
palmilhar o passeio, esticando a cabeça, quando passavam diante da
janela aberta do esquisito subsecretário.
Não foi inútil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal
sujeito, empunhando o “pinho” na posição de tocar, o major,
atentamente, ouvia: “Olhe, major, assim”. E as cordas vibravam
vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre aduzia: “É ‘ré’,
aprendeu?”
Mas não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o
major aprendia a tocar violão. Mas que coisa? Um homem tão sério
metido nessas malandragens!
Uma tarde de sol - sol de março, forte e implacável - aí pelas
cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma rua de São
Januário povoaram-se rápida e repentinamente, de um e de outro lado.
Até da casa do general vieram moças à janela! Que era? Um batalhão?
Um incêndio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça baixa, com
pequenos passos de boi de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço
um violão impudico.
É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em papel, mas
o vestuário não lhe escondia inteiramente as formas. À vista de tão
escandaloso fato, a consideração e o respeito que o Major Policarpo
Quaresma merecia nos arredores de sua casa, diminuíram um pouco.
Estava perdido, maluco, diziam. Ele, porém, continuou serenamente
nos seus estudos, mesmo porque não percebeu essa diminuição.
Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava
sempre baixo, mas, quando fixava alguém ou alguma coisa, os seus
olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração,
e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da coisa que
fixava.
Contudo, sempre os trazia baixos, como se se guiasse pela ponta do
cavanhaque que lhe enfeitava o queixo. Vestia-se sempre de fraque,
preto, azul, ou de cinza, de pano listrado, mas sempre de fraque, e
era raro que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito
alta, feita segundo um figurino antigo de que ele sabia com precisão
a época.
Quando entrou em casa, naquele dia, foi a irmã quem lhe abriu a
porta, perguntando:
- Janta já?
- Ainda não. Espere um pouco o Ricardo que vem jantar hoje consoco.
- Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com
posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro,
um quase capadócio - não é bonito!
O major descansou o chapéu-de-sol - um antigo chapéu-de-sol, com a
haste inteiramente de madeira, e um cabo de volta, incrustado de
pequenos losangos de madrepérola - e respondeu:
- Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que
todo homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais
genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que
ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em
honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas, que teve um
auditório de fidalgas. Beckford, um inglês notável, muito o elogia.
- Mas isso foi em outro tempo; agora...
- Que tem isso, Adelaide? Convém que nós não deixemos morrer as
nossas tradições, os usos genuinamente nacionais...
- Bem, Policarpo, eu não quero contrariar você; continue lá com as
suas manias.
O major entrou para um aposento próximo, enquanto sua irmã seguia em
direitura ao interior da casa. Quaresma despiu-se, lavou-se, enfiou
a roupa de casa, veio para a biblioteca, sentou-se a uma cadeira de
balanço, descansando.
Estava num aposento vasto, com janelas para uma rua lateral, e todo
ele era forrado de estantes de ferro.
Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com os
livros de maior tomo. Quem examinasse vagarosamente aquela grande
coleção de livros havia de espantar-se ao perceber o espírito que
presidia a sua reunião.
Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais: o
Bento Teixeira, da Prosopopéia; o Gregório de Matos, o Basílio da
Gama, o Santa Rita Durão, o José de Alencar (todo), o Macedo, o
Gonçalves Dias (todo), além de muitos outros. Podia-se afiançar que
nem um dos autores nacionais ou nacionalizados de oitenta ora lá
faltava nas estantes do major.
De História do Brasil, era farta a messe: os cronistas, Gabriel
Soares, Gandavo; e Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, Armitage,
Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (Geschichte von
Brasilien), Melo Morais, Capistrano de Abreu, Southey, Varnhagen,
além de outros mais raros ou menos famosos. Então no tocante a
viagens e explorações, que riqueza! Lá estavam Hans Staden, o Jean
de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o Príncipe de Neuwied, o John
Mawe, o von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães e se se
encontravam também Darwin, Freycinet, Cook, Bougainville e até o
famoso Pigafetta, cronista da viagem de Magalhães, é porque todos
esses últimos viajantes tocavam no Brasil, resumida ou amplamente.
Além destes, havia livros subsidiários: dicionários, manuais,
enciclopédias, compêndios, em vários idiomas.
Vê-se assim que a sua predileção pela poética de Porto Alegre e
Magalhães não lhe vinha de uma irremediável ignorância das línguas
literárias da Europa; ao contrário, o major conhecia bem
sofrivelmente francês, inglês e alemão; e se não falava tais
idiomas, lia-os e traduzia-os corretamente. A razão tinha que ser
encontrada numa disposição particular de seu espírito, no forte
sentimento que guiava sua vida. Policarpo era patriota. Desde moço,
aí pelos vinte anos, o amor da Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora
o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e
absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que
Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi
num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os
seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas
progressivas, com pleno conhecimento de causa.
Não se sabia bem onde nascera, mas não fora decerto em São Paulo,
nem no Rio Grande do Sul, nem no Pará. Errava quem quisesse
encontrar nele qualquer regionalismo; Quaresma era antes de tudo
brasileiro. Não tinha predileção por esta ou aquela parte de seu
país, tanto assim que aquilo que o fazia vibrar de paixão não eram
só os pampas do Sul com o seu gado, não era o café de São Paulo, não
eram o ouro e os diamantes de Minas, não era a beleza da Guanabara,
não era a altura da Paulo Afonso, não era o estro de Gonçalves Dias
ou o ímpeto de Andrade Neves - era tudo isso junto, fundido,
reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro.
Logo aos dezoito anos quis fazer-se militar; mas a junta de saúde
julgou-o incapaz. Desgostou-se, sofreu, mas não maldisse a Pátria. O
ministério era liberal, ele se fez conservador e continuou mais do
que nunca a amar a “terra que o viu nascer”. Impossibilitado de
evoluir-se sob os dourados do exército, procurou a administração e
dos seus ramos escolheu o militar.
Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos,
de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis e termos
técnicos de artilharia, aspirava diariamente aquele hálito de
guerra, de bravura, de vitória, de triunfo, que é bem o hálito da Pátria.
Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a Pátria, nas
suas riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua
literatura e na sua política. Quaresma sabia as espécies de
minerais, vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o valor do
ouro, dos diamantes exportados por Minas, as guerras holandesas, as
batalhas do Paraguai, as nascentes e o curso de todos os rios.
Defendia com azedume e paixão a proeminência do Amazonas sobre todos
os demais rios do mundo. Para isso ia até ao crime de amputar alguns
quilômetros ao Nilo e era com este rival do “seu” rio que ele mais
implicava. Ai de quem o citasse na sua frente! Em geral, calmo e
delicado, o major ficava agitado e malcriado, quando se discutia a
extensão do Amazonas em face da do Nilo.
Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupi-guarani. Todas as
manhãs, antes que a “Aurora, com seus dedos rosados abrisse caminho
ao louro Febo”, ele se atracava até ao almoço com o Montoya, Arte y
diccionario de la lengua guaraní ó más bien tupí, e estudava o
jargão caboclo com afinco e paixão. Na repartição, os pequenos
empregados, amanuenses e escreventes, tendo notícia desse seu estudo
do idioma tupiniquim, deram não se sabe por que em chamá-lo -
Ubirajara. Certa vez, o escrevente Azevedo, ao assinar o ponto,
distraído, sem reparar quem lhe estava às costas, disse em tom
chocarreiro: “Você já viu que hoje o Ubirajara está tardando?”
Quaresma era considerado no arsenal: a sua idade, a sua ilustração,
a modéstia e honestidade de seu viver impunham-no ao respeito de
todos. Sentindo que a alcunha lhe era dirigida, não perdeu a
dignidade, não prorrompeu em doestos e insultos. Endireitou-se,
concertou o pince-nez, levantou o dedo indicador no ar e respondeu:
- Senhor Azevedo, não seja leviano. Não queira levar ao ridículo
aqueles que trabalham em silêncio, para a grandeza e a emancipação da
Nesse dia, o major pouco conversou. Era costume seu, assim pela hora
do café, quando os empregados deixavam as bancas, transmitir aos
companheiros o fruto de seus estudos, as descobertas que fazia, no
seu gabinete de trabalho, de riquezas nacionais. Um dia era o
petróleo que lera em qualquer parte, como sendo encontrado na Bahia;
outra vez, era um novo exemplar de árvore de borracha que crescia no
rio Pardo, em Mato Grosso; outra, era um sábio, uma notabilidade,
cuja bisavó era brasileira; e quando não tinha descoberta a trazer,
entrava pela corografia, contava o curso dos rios, a sua extensão
navegável, os melhoramentos insignificantes de que careciam para se
prestarem a um franco percurso da foz às nascentes. Ele amava
sobremodo os rios; as montanhas lhe eram indiferentes, Pequenas
talvez...
Os colegas ouviam-no respeitosos e ninguém, a não ser esse tal
Azevedo, se animava na sua frente a lhe fazer a menor objeção, a
avançar uma pilhéria, um dito. Ao voltar as costas, porém,
vingavam-se da cacetada, cobrindo-o de troças: “Este Quaresma! Que
cacete! Pensa que somos meninos de tico-tico... Arre! Não tem outra
conversa”.
E desse modo ele ia levando a vida, metade na repartição, sem ser
compreendido, e a outra metade em casa, também sem ser compreendido.
No dia em que o chamaram de Ubirajara, Quaresma ficou reservado,
taciturno, mudo, e só veio a falar porque, quando lavavam as mãos
num aposento próximo à secretaria e se preparavam para sair, alguém,
suspirando, disse: “Ah! Meu Deus! Quando poderei ir à Europa!” O
major não se conteve: levantou o olhar, concertou o pince-nez e
falou fraternal e persuasivo: “Ingrato! Tens uma terra tão bela, tão
rica, e queres visitar a dos outros! Eu, se algum dia puder, hei de
percorrer a minha de princípio ao fim!”
O outro objetou-lhe que por aqui só havia febres e mosquitos; o
major contestou-lhe com estatísticas e até provou exuberantemente
que o Amazonas tinha um dos melhores climas da terra. Era um clima
caluniado pelos viciosos que de lá vinham doentes...
Era assim o Major Policarpo Quaresma que acabava de chegar à sua
residência, às quatro e quinze da tarde, sem erro de um minuto, como
todas as tardes, exceto aos domingos, exatamente, ao jeito da
aparição de um astro ou de um eclipse.
No mais, era um homem ctodos os outros, a não ser aqueles que têm
ambições políticas ou de fortuna, porque Quaresma não as tinha no
mínimo grau.
Sentado na cadeira de balanço, bem ao centro de sua biblioteca, o
major abriu um livro e pôs-se a lê-lo à espera do conviva. Era o
velho Rocha Pita, o entusiástico e gongórico Rocha Pita da História
da América Portuguesa. Quaresma estava lendo aquele famoso período:
“Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga
mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem os raios
mais dourados...” mas não pôde ir ao fim. Batiam à porta. Foi
abri-la em pessoa.
- Tardei, major? perguntou o visitante.
- Não. Chegaste à hora.
Acabava de entrar em casa do Major Quaresma o Senhor Ricardo Coração
dos Outros, homem célebre pela sua habilidade em cantar modinhas e
tocar violão. Em começo, a sua fama estivera limitada a um pequeno
subúrbio da cidade, em cujos “saraus” ele e seu violão figuravam
como Paganini e a sua rebeca em festas de duques; mas, aos poucos,
com o tempo, foi tomando toda a extensão dos subúrbios, crescendo,
solidificando-se, até ser considerada como coisa própria a eles. Não
se julgue, entretanto, que Ricardo fosse um cantor de modinhas aí
qualquer, um capadócio. Não; Ricardo Coração dos Outros era um
artista a freqüentar e a honrar as melhores famílias do Méier,
Piedade e Riachuelo. Rara era a noite em que não recebesse um
convite. Fosse na casa do Tenente Marques, do doutor Bulhões ou do
“Seu” Castro, a sua presença era sempre requerida, instada e
apreciada, O doutor Bulhões, até, tinha pelo Ricardo uma admiração
especial, um delírio, um frenesi e, quando o trovador cantava,
ficava em êxtase. “Gosto muito de canto”, dizia o doutor no trem
certa vez, “mas só duas pessoas me enchem as medidas: o tamagno e o
Ricardo”. Esse doutor tinha uma grande reputação nos subúrbios, não
como médico, pois que nem óleo de rícino receitava, mas como
entendido em legislação telegráfica, por ser chefe de seção da
Secretaria dos Telégrafos.
Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da
alta sociedade suburbana. É uma alta sociedade muito especial e que
só é alta nos subúrbios. Compõe-se em geral de funcionários
públicos, de pequenos negociantes, de médicos com alguma clínica, de
tenentes de diferentes milícias, nata essa que impa pelas ruas
esburacadas daquelas distantes regiões, assim como nas festas e nos
bailes, com mais força que a burguesia de Petrópolis e Botafogo.
Isto é só lá, nos bailes, nas festas e nas ruas, onde se algum dos
seus representantes vê um tipo mais ou menos, olha-o da cabeça aos
pés, demoradamente, assim como quem diz: aparece lá em casa que te
dou um prato de comida. Porque o orgulho da aristocracia suburbana
está em ter todo dia jantar e almoço, muito feijão, muita
carne-seca, muito ensopado - aí, julga ela, é que está a pedra de
toque da nobreza, da alta linha, da distinção.
Fora dos subúrbios, na Rua do Ouvidor, nos teatros, nas grandes
festas centrais, essa gente míngua, apaga-se, desaparece, chegando
até as suas mulheres e filhas a perder a beleza com que deslumbram,
quase diariamente, os lindos cavalheiros dos intermináveis bailes
diários daquelas redondezas.
Ricardo, depois de ser poeta e o cantor dessa curiosa aristocracia,
extravasou e passou à cidade, propriamente. A sua fama já chegava a
São Cristóvão e em breve (ele o esperava) Botafogo convidá-lo-ia,
pois os jornais já falavam no seu nome e discutiam o alcance de sua
obra e da sua poética...
Mas que vinha ele fazer ali, na casa de pessoa de propósitos tão
altos e tão severos hábitos? Não é difícil atinar. Decerto, não
vinha auxiliar o major nos seus estudos de geologia, de poética, de
mineralogia e história brasileiras.
Como bem supôs a vizinhança, o Coração dos Outros vinha ali
tão-somente ensinar o major a cantar modinhas e a tocar violão, Nada
mais, e é simples.
De acordo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera muito tempo
a meditar qual seria a expressão poética musical característica da
alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e
adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro
dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento
genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava
nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor da
cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e
tirar dela um forte motivo original de arte.
Ricardo vinha justamente dar-lhe lição, mas, antes disso, por
convite especial do discípulo, ia compartilhar o seu jantar; e fora
por isso que o famoso trovador chegou mais cedo à casa do
subsecretário.
- Já sabe dar o “ré” sustenido, major? perguntou Ricardo logo ao
sentar-se.
- Já.
- Vamos ver.
Dizendo isto, foi desencapotar o seu sagrado violão; mas não houve
tempo. Dona Adelaide, a irmã de Quaresma, entrou e convidou-os a
irem jantar. A sopa já esfriava na mesa, que fossem!
- O Senhor Ricardo há de nos desculpar, disse a velha senhora, a
pobreza do nosso jantar. Eu lhe quis fazer um frango com petit-pois,
mas Policarpo não deixou. Disse-me que esse tal petit-pois é
estrangeiro e que eu o substituísse por guando. Onde é que se viu
frango com guando?
Coração dos Outros aventou que talvez fosse bom, seria uma novidade
e não fazia mal experimentar.
- É uma mania de seu amigo, Senhor Ricardo, esta de só querer
coisas nacionais, e a gente tem que ingerir cada droga, chi!
- Qual, Adelaide, você tem certas ojerizas! A nossa terra, que tem
todos os climas do mundo, é capaz de produzir tudo que é necessário
para o estômago mais exigente. Você é que deu para implicar.
- Exemplo: a manteiga que fica logo rançosa.
- É porque é de leite, se fosse como essas estrangeiras aí,
fabricadas com gorduras de esgotos, talvez não se estragasse... É
isto, Ricardo! Não querem nada da nossa terra...
- Em geral é assim, disse Ricardo.
- Mas é um erro... Não protegem as indústrias nacionais... Comigo
não há disso: de tudo que há nacional, eu não uso estrangeiro.
Visto-me com pano nacional, calço botas nacionais e assim por
diante.
Sentaram-se à mesa. Quaresma agarrou uma pequena garrafa de cristal
e serviu dois cálices de parati.
- É do programa nacional, fez a irmã, sorrindo.
- Decerto, e é um magnífico aperitivo. Esses vermutes por ai,
drogas; isto é álcool puro, bom, de cana, não é de batatas ou
milho...
Ricardo agarrou o cálice com delicadeza e respeito, levou-o aos
lábios e foi como se todo ele bebesse o licor nacional.
- Está bom, hein? indagou o major.
- Magnífico, fez Ricardo, estalando os lábios.
- É de Angra. Agora tu vais ver que magnífico vinho do Rio Grande
temos... Qual Borgonha! Qual Bordeaux! Temos no Sul muito
melhores...
E o jantar correu assim, nesse tom. Quaresma exaltando os produtos
nacionais: a banha, o toucinho e o arroz; a irmã fazia pequenas
objeções e Ricardo dizia: “É, é, não há dúvida” - rolando nas
órbitas os olhos pequenos, franzindo a testa diminuta que se sumia
no cabelo áspero, forçando muito a sua fisionomia miúda e dura a
adquirir uma expressão sincera de delicadeza e satisfação.
Acabado o jantar foram ver o jardim. Era uma maravilha; não tinha
nem uma flor... Certamente não se podia tomar por tal míseros
beijos-defrade, palmas-de-santa-rita, quaresmas lutulentas, manacás
melancólicos e outros belos exemplares dos nossos campos e prados.
Como em tudo o mais, o major era em jardinagem essencialmente
nacional. Nada de rosas, de crisântemos, de magnólias - flores
exóticas; as nossas terras tinham outras mais belas, mais
expressivas, mais olentes, como aquelas que ele tinha ali,
Ricardo ainda uma vez concordou e os dois entraram na sala, quando o
crepúsculo vinha devagar, muito vagaroso e lento, como se fosse um
longo adeus saudoso do sol ao deixar a terra, pondo nas coisas a sua
poesia dolente e a sua deliqüescência.
Mal foi aceso o gás, o mestre de violão empunhou o instrumento,
apertou as cravelhas, correu a escala, abaixando-se sobre ele como
se o quisesse beijar. Tirou alguns acordes, para experimentar; e
dirigiu-se ao discípulo, que já tinha o seu em posição:
- Vamos ver. Tire a escala, major.
Quaresma preparou os dedos, afinou a viola, mas não havia na sua
execução nem a firmeza, nem o dengue com que o mestre fazia a mesma
operação.
- Olhe, major, é assim.
E mostrava a posição do instrumento, indo do colo ao braço esquerdo
estendido, seguro levemente pelo direito; e em seguida acrescentou:
- Major, o violão é o instrumento da paixão. Precisa de peito para
falar... É preciso encostá-lo, mas encostá-lo com maciez e amor,
como se fosse a amada, a noiva, para que diga o que sentimos...
Diante do violão, Ricardo ficava loquaz, cheio de sentenças, todo
ele fremindo de paixão pelo instrumento desprezado.
A lição durou uns cinqüenta minutos. O major sentiu-se cansado e
pediu que o mestre cantasse. Era a primeira vez que Quaresma lhe
fazia esse pedido; embora lisonjeado, quis a vaidade profissional
que ele, a princípio, se negasse.
- Oh! Não tenho nada novo, uma composição minha.
Dona Adelaide obtemperou então:
- Cante uma de outro.
- Oh! Por Deus, minha senhora! Eu só canto as minhas. O Bilac -
conhecem? - quis fazer-me uma modinha, eu não aceitei; você não
entende de violão, “Seu” Bilac. A questão não está em escrever uns
versos certos que digam coisas bonitas; o essencial é achar-se as
palavras que o violão pede e deseja. Por exemplo: se eu dissesse,
como em começo quis, n’ “O Pé” uma modinha minha: “o teu pé é uma
folha de trevo” - não ia com o violão. Querem ver?
E ensaiou em voz baixa, acompanhado pelo instrumento: o - teu - pé
- é - uma - fo - lha - de - tre - vo.
- Vejam, continuou ele, como não dá. Agora reparem: o - teu - pé
- é - uma - ro - sa - de - mir - ra. É outra coisa, não
acham?
- Não há dúvida, disse a irmã de Quaresma.
- Cante esta, convidou o major.
- Não, objetou Ricardo. Está velha, vou cantar a “Promessa”,
conhecem?
- Não, disseram os dois irmãos.
- Oh! Anda por aí como as “Pombas” do Raimundo.
- Cante lá, Senhor Ricardo, pediu Dona Adelaide.
Ricardo Coração dos Outros por fim afinou ainda uma vez o violão e
começou em voz fraca:
Prometo pelo Santíssimo Sacramento
Que serei tua paixão...
- Vão vendo, disse ele num intervalo, quanta imagem, quanta imagem!
E continuou. As janelas estavam abertas. Moças e rapazes começaram a
se amontoar na calçada para ouvir o menestrel. Sentindo que a rua se
interessava, Coração dos Outros foi apurando a dicção, tomando um ar
feroz que ele supunha ser de ternura e entusiasmo; e, quando acabou,
as palmas soaram do lado de fora e uma moça entrou procurando Dona
Adelaide.
- Senta-te Ismênia, disse ela.
- A demora é pouca.
Ricardo aprumou-se na cadeira, olhou um pouco a moça e continuou a
dissertar sobre a modinha. Aproveitando uma pausa, a irmã de
Quaresma perguntou à moça:
- Então quando te casas?
Era a pergunta que se Lhe fazia sempre. Ela então curvava do lado
direito a sua triste cabecinha, coroada de magníficos cabelos
castanhos, com tons de ouro, e respondia:
- Não sei... Cavalcânti forma-se no fim do ano e então marcaremos.
Isto era dito arrastado, com uma preguiça de impressionar.
Não era feia a menina, a filha do general, vizinho de Quaresma. Era
até bem simpática, com a sua fisionomia de pequenos traços mal
desenhados e cobertos de umas tintas de bondade.
Aquele seu noivado durava há anos; o noivo, o tal Cavalcânti,
estudava para dentista, um curso de dois anos, mas que ele arrastava
há quatro, e Ismênia tinha sempre que responder à famosa pergunta:
- “Então quando se casa?” - “Não sei... Cavalcânti forma-se para o
ano e...”
Intimamente ela não se incomodava. Na vida, para ela, só havia uma
coisa importante: casar-se; mas pressa não tinha, nada nela a pedia.
Já agarrara um noivo, o resto era questão de tempo...
Após responder a Dona Adelaide, explicou o motivo da visita.
Viera, em nome do pai, convidar Ricardo Coração dos Outros a cantar
em casa dela.
- Papai, disse Dona Ismênia, gosta muito de modinhas... É do Norte;
a senhora sabe, Dona Adelaide, que gente do Norte aprecia muito.
Venham.
E para lá foram.
II
REFORMAS RADICAIS
Havia bem dez dias que o Major Quaresma não saía de casa. Na sua
meiga e sossegada casa de São Cristóvão, enchia os dias da forma
mais útil e agradável às necessidades do seu espírito e do seu
temperamento. De manhã, depois da toilette e do café, sentava-se no
divã da sala principal e lia os jornais. Lia diversos, porque sempre
esperava encontrar num ou noutro uma notícia curiosa, a sugestão de
uma idéia útil à sua cara Pátria. Os seus hábitos burocráticos
faziam-no almoçar cedo, e, embora estivesse de férias, para os não
perder, continuava a tomar a primeira refeição de garfo às nove e
meia da manhã.
Acabado o almoço, dava umas voltas pela chácara, chácara em que
predominavam as fruteiras nacionais, recebendo a pitanga e o cambuí
os mais cuidadosos tratamentos aconselhados pela pomologia, como se
fossem bem cerejas ou figos.
O passeio era demorado e filosófico. Conversando com o preto
Anastácio, que lhe servia há trinta anos, sobre coisas antigas - o
casamento das princesas, a quebra do Souto e outras - o major
continuava com o pensamento preso aos problemas que o preocupavam
ultimamente. Após uma hora ou menos, voltava à biblioteca e
mergulhava nas revistas do Instituto Histórico, no Fernão Cardim,
nas cartas de Nóbrega, nos anais da Biblioteca, no von den Stein e
tomava notas sobre notas, guardando-as numa pequena pasta ao lado.
Estudava os índios, Não fica bem dizer estudava, porque já o fizera
há tempos, não só no tocante à língua, que já quase falava, como
também nos simples aspectos etnográficos e antropológicos. Recordava
(é melhor dizer assim), afirmava certas noções dos seus estudos
anteriores, visto estar organizando um sistema de cerimônias e
festas que se baseasse nos costumes dos nossos silvícolas e
abrangesse todas as relações sociais.
Para bem se compreender o motivo disso, é preciso não esquecer que o
major, depois de trinta anos de meditação patriótica, de estudos e
reflexões, chegava agora ao período da frutificação. A convicção que
sempre tivera de ser o Brasil o primeiro país do mundo e o seu
grande amor à Pátria eram agora ativos e impeliram-no a grandes
cometimentos. Ele sentia dentro de si impulsos imperiosos de agir,
de obrar e de concretizar suas idéias. Eram pequenos melhoramentos,
simples toques, porque em si mesma (era a sua opinião), a grande
Pátria do Cruzeiro só precisava de tempo para ser superior à
Inglaterra.
Tinha todos os climas, todos os frutos, todos os minerais e animais
úteis, as melhores terras de cultura, a gente mais valente, mais
hospitaleira, mais inteligente e mais doce do mundo - o que
precisava mais? Tempo e um pouco de originalidade. Portanto, dúvidas
não flutuavam mais no seu espírito, mas no que se referia à
originalidade de costumes e usanças, não se tinham elas dissipado,
antes se transformaram em certeza após tomar parte na folia do
“Tangolomango”, numa festa que o general dera em casa.
Caso foi que a visita do Ricardo e do seu violão ao bravo militar
veio despertar no general e na família um gosto pelas festanças,
cantigas e hábitos genuinamente nacionais, como se diz por aí. Houve
em todos um desejo de sentir, de sonhar, de poetar à maneira popular
dos velhos tempos. Albernaz, o general, lembrava-se de ter visto
tais cerimônias na sua infância: Dona Maricota, sua mulher, até
ainda se lembrava de uns versos de Reis; e os seus filhos, cinco
moças e um rapaz, viram na coisa um pretexto de festas e, portanto,
aplaudiram o entusiasmo dos progenitores. A modinha era pouco; os
seus espíritos pediam coisa mais plebéia, mais característica e
extravagante.
Quaresma ficou encantado, quando Albernaz falou em organizar uma
chegança, à moda do Norte, por ocasião do aniversário de sua praça.
Em casa do general era assim: qualquer aniversário tinha a sua
festa, de forma que havia bem umas trinta por ano, não contando
domingos, dias feriados e santificados em que se dançava também.
O major pensara até ali pouco nessas coisas de festas e danças
tradicionais, entretanto viu logo a significação altamente
patriótica do intento. Aprovou e animou o vizinho. Mas quem havia de
ensaiar, de dar os versos e a música? Alguém lembrou a tia Maria
Rita, uma preta velha, que morava em Benfica, antiga lavadeira da
família Albernaz. Lá foram os dois, o General Albernaz e o Major
Quaresma, alegres, apressados, por uma linda e cristalina tarde de
abril.
O general nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não
possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única
batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com
a sua profissão e o seu curso de artilheiro. Fora sempre
ajudante-de-ordens, assistente, encarregado disso ou daquilo,
escriturário, almoxarife, e era secretário do Conselho Supremo
Militar, quando se reformou em general. Os seus hábitos eram de um
bom chefe de seção e a sua inteligência não era muito diferente dos
seus hábitos. Nada entendia de guerras, de estratégia, de tática ou
de história militar; a sua sabedoria a tal respeito estava reduzida
às batalhas do Paraguai, para ele a maior e a mais extraordinária
guerra de todos os tempos.
O altissonante título de general, que lembrava coisas sobre-humanas
dos Césares, dos Turennes e dos Gustavos Adolfos, ficava mal naquele
homem plácido, medíocre, bonachão cuja única preocupação era casar
as cinco filhas e arranjar “pistolões” para fazer passar o filho nos
exames do Colégio Militar. Contudo, não era conveniente que se
duvidasse das suas aptidões guerreiras. Ele mesmo, percebendo o seu
ar muito civil, de onde em onde, contava um episódio de guerra, uma
anedota militar. “Foi em Lomas Valentinas”, dizia ele... Se alguém
perguntava: “O general assistiu a batalha?” Ele respondia logo: “Não
pude. Adoeci e vim para o Brasil, nas vésperas. Mas soube pelo
Camisão, pelo Venâncio que a coisa esteve preta”.
O bonde que os levava até à velha Maria Rita, percorria um dos
trechos mais interessantes da cidade. Ia pelo Pedregulho, uma velha
porta da cidade, antigo término de um picadão que ia ter a Minas, se
esgalhava para São Paulo e abria comunicações com o Curato de Santa
Cruz.
Por aí em costas de bestas vieram ter ao Rio o ouro e o diamante de
Minas e ainda ultimamente os chamados gêneros do país. Não havia
ainda cem anos que as carruagens d’El-Rei Dom João VI, pesadas como
naus, a balouçarem-se sobre as quatro rodas muito separadas,
passavam por ali para irem ter ao longínquo Santa Cruz. Não se pode
crer que a coisa fosse lá muito imponente; a Corte andava em apuros
de dinheiro e o rei era relaxado. Não obstante os soldados
remendados, tristemente montados em “pangarés” desanimados, o
préstito devia ter a sua grandeza, não por ele mesmo, mas pelas
humilhantes marcas de respeito que todos tinham que dar à sua
lamentável majestade.
Entre nós tudo é inconsistente, provisório, não dura. Não havia ali
nada que lembrasse esse passado. As casas velhas, com grandes
janelas, quase quadradas, e vidraças de pequenos vidros eram de há
bem poucos anos, menos de cinqüenta.
Quaresma e Albernaz atravessaram tudo aquilo sem reminiscências e
foram até ao ponto. Antes perlustraram a zona do turfe, uma pequena
porção da cidade onde se amontoam cocheiras e coudelarias de animais
de corridas, tendo grandes ferraduras, cabeças de cavalos, panóplias
de chicotes e outros emblemas hípicos, nos pilares dos portões, nas
almofadas das portas, por toda parte onde tais distintivos fiquem
bem e dêem na vista.
A casa da velha preta ficava além do ponto, para as bandas da
estação da estrada de ferro Leopoldina. Lá foram ter. Passaram pela
estação. Sobre um largo terreiro, negro de moinha de
carvão-de-pedra, medas de lenha e imensas tulhas de sacos de carvão
vegetal se acumulavam; mais adiante um depósito de locomotivas e
sobre os trilhos algumas manobravam e outras arfavam sob pressão.
Apanharam afinal o carreiro onde ficava a casa da Maria Rita. O
tempo estivera seco e por isso se podia andar por ele. Para além do
caminho, estendia-se a vasta região de mangues, uma zona imensa,
triste e feia, que vai até ao fundo da baía e, no horizonte, morre
ao sopé das montanhas azuis de Petrópolis. Chegaram à casa da velha.
Era baixa, caiada e coberta com as pesadas telhas portuguesas.
Ficava um pouco afastada da estrada. À direita havia um monturo:
restos de cozinha, trapos, conchas de mariscos, pedaços de louça
caseira - um sambaqui a fazer-se para gáudio de um arqueólogo de
futuro remoto; à esquerda, crescia um mamoeiro e bem junto à cerca,
no mesmo lado, havia um pé de arruda. Bateram. Uma pretinha moça
apareceu na janela aberta.
- Que desejam?
Disseram o que queriam e aproximaram-se. A moça gritou para o
interior da casa:
- Vovó estão aí dois “moços” que querem falar com a senhora.
Entrem, façam o favor - disse ela depois, dirigindo-se ao general e
ao seu companheiro.
A sala era pequena e de telha-vã. Pelas paredes, velhos cromos de
folhinhas, registros de santos, recortes de ilustrações de jornais
baralhavamse e subiam por elas acima até dois terços da altura. Ao
lado de uma Nossa Senhora da Penha, havia um retrato de Vítor
Emanuel “ com enormes bigodes en desorden; um crini sentimental de
folhinha - uma cabeça de mulher em posição de sonho - parecia
olhar um São João Batista ao lado. No alto da porta que levava ao
interior da casa, uma lamparina, numa cantoneira, enchia de fuligem
a Conceição de louça.
Não tardou vir a velha. Entrou em camisa de bicos de rendas,
mostrando o peito descarnado, enfeitado com um colar de miçangas de
duas voltas. Capengava de um pé e parecia querer ajudar a marcha com
a mão esquerda pousada na perna correspondente.
- Boas tardes, tia Maria Rita, disse o general.
Ela respondeu, mas não deu mostras de ter reconhecido quem lhe
falava. O general atalhou:
- Não me conhece mais? Sou o general, o Coronel Albernaz.
- Ah! É sê coroné!... Há quanto tempo! Como está nhã Maricota?
- Vai bem. Minha velha, nós queríamos que você nos ensinasse umas
cantigas.
- Quem sou eu, ioiô!
- Ora! Vamos, tia Maria Rita... você não perde nada... você não
sabe o “Bumba-meu-Boi”?
- Quá, ioiô, já mi esqueceu.
- E o “Boi Espácio”?
- Coisa véia, do tempo do cativeiro - pra que sô coroné qué sabê
isso?
Ela falava arrastando as sílabas, com um doce sorriso e um olhar
vago.
- É para uma festa... Qual é a que você sabe?
A neta que até ali ouvia calada a conversa animou-se a dizer alguma
coisa, deixando perceber rapidamente a fiada reluzente de seus
dentes imaculados:
- Vovó já não se lembra.
O general, que a velha chamava coronel, por tê-la conhecido nesse
posto, não atendeu a observação da moça e insistiu:
- Qual esquecida, o quê! Deve saber ainda alguma coisa, não é, titia?
- Só sei o “Bicho Tutu”, disse a velha.
- Cante lá!
- Ioiô sabe! Não sabe? Quá, sabe!
- Não sei, cante. Se eu soubesse não vinha aqui. Pergunte aqui ao
meu amigo, o Major Policarpo, se sei.
Quaresma fez com a cabeça sinal afirmativo e a preta velha, talvez
com grandes saudades do tempo em que era escrava e ama de alguma
grande casa, farta e rica, ergueu a cabeça, como para melhor
recordar-se, e entoou:
É vêm tutu
Por detrás do murundu
Pra cumê sinhozinho
Com bucado de angu.
- Ora! fez o general com enfado, isso é coisa antiga de embalar
crianças. Você não sabe outra?
- Não, sinhô. Já mi esqueceu.
Os dois saíram tristes. Quaresma vinha desanimado. Como é que o povo
não guardava as tradições de trinta anos passados? Com que rapidez
morriam assim na sua lembrança os seus folgares e as suas canções?
Era bem um sinal de fraqueza, uma demonstração de inferioridade
diante daqueles povos tenazes que os guardam durante séculos!
Tornava-se preciso reagir, desenvolver o culto das tradições,
mantê-las sempre vivazes nas memórias e nos costumes...
Albernaz vinha contrariado. Contava arranjar um número bom para a
festa que ia dar, e escapava-lhe. Era quase a esperança de casamento
de uma das quatro filhas que se ia, das quatro, porque uma delas já
estava garantida, graças a Deus.
O crepúsculo chegava e eles entraram em casa mergulhados na
melancolia da hora.
A decepção, porém, demorou dias. Cavalcânti, o noivo de Ismênia,
informou que nas imediações morava um literato, teimoso cultivador
dos contos e canções populares do Brasil. Foram a ele. Era um velho
poeta que teve sua fama ai pelos setenta e tantos, homem doce e
ingênuo que se deixara esquecer em vida, como poeta, e agora se
entretinha em publicar coleções que ninguém lia, de contos, canções,
adágios e ditados populares.
Foi grande a sua alegria quando soube o objeto da visita daqueles
senhores. Quaresma estava animado e falou com calor; e Albernaz
também, porque via na sua festa, com um número de folklore, meio de
chamar a atenção sobre sua casa, atrair gente e... casar as filhas.
A sala em que foram recebidos, era ampla; mas estava tão cheia de
mesas, estantes, pejadas de livros, pastas, latas, que mal se podia
mover nela. Numa lata lia-se: Santa Ana dos Tocos; numa pasta: São
Bonifácio do Cabresto.
- Os senhores não sabem, disse o velho poeta, que riqueza é a nossa
poesia popular! que surpresas ela reserva!... Ainda há dias recebi
uma carta de Urubu-de-Baixo com uma linda canção. Querem ver?
O colecionador revolveu pastas e afinal trouxe de lá um papel onde
leu:
Se Deus enxergasse pobre
Não me deixaria assim:
Dava no coração dela
Um lugarzinho pra mim,
O amor que tenho por ela
Já não cabe no meu peito;
Sai-me pelos olhos afora
Voa às nuvens direito.
- Não é bonito?... Muito! Se os senhores conhecessem então o ciclo
do macaco, a coleção de histórias que o povo tem sobre o símio?...
Oh! Uma verdadeira epopéia cômica!
Quaresma olhava para o velho poeta com o espanto satisfeito de
alguém que encontrou um semelhante no deserto; e Albernaz, um
momento contagiado pela paixão do folclorista, tinha mais
inteligência no olhar com que o encarava,
O velho poeta guardou a canção de Urubu-de-Baixo, numa pasta; e foi
logo à outra, donde tirou várias folhas de papel. Veio até junto aos
dois visitantes e disse-lhes:
- Vou ler aos senhores uma pequena história do macaco, das muitas
que o nosso povo conta... Só eu já tenho perto de quarenta e
pretendo publicá-las, sob o título Histórias do Mestre Simão.
E, sem perguntar se os incomodava ou se estavam dispostos a ouvir,
começou:
“O macaco perante o juiz de direito. Andava um bando de macacos em
troça, pulando de árvore em árvore, nas bordas de uma grota. Eis
senão quando, um deles vê no fundo uma onça que lá caíra. Os macacos
se enternecem e resolvem salvá-la. Para isso, arrancaram cipós,
emendaram-nos bem, amarraram a corda assim feita à cintura de cada
um deles e atiraram uma das pontas à onça. Com o esforço reunido de
todos, conseguiram içá- la e logo se desamarraram, fugindo. Um
deles, porém, não o pôde fazer a tempo e a onça segurou-o
imediatamente.
- Compadre Macaco, disse ela, tenha paciência. Estou com fome e
você vai fazer-me o favor de deixar-se comer.
O macaco rogou, instou, chorou; mas a onça parecia inflexível, Simão
então lembrou que a demanda fosse resolvida pelo juiz de direito.
Foram a ele; o macaco sempre agarrado pela onça. É juiz de direito
entre os animais, o jabuti, cujas audiências são dadas à borda dos
rios, colocando-se ele em cima de uma pedra. Os dois chegaram e o
macaco expôs as suas razões.
O jabuti ouvi-o e no fim ordenou:
- Bata palmas.
Apesar de seguro pela onça, o macaco pôde assim mesmo bater palmas.
Chegou a vez da onça, que também expôs as suas razões e motivos. O
juiz, como da primeira vez, determinou ao felino:
- Bata palmas.
A onça não teve remédio senão largar o macaco, que se escapou, e
também o juiz, atirando-se n’água”.
Acabando a leitura, o velho dirigiu-se aos dois:
- Não acham interessante? Muito! Há no nosso povo muita invenção,
muita criação, verdadeiro material para fabliaux interessantes... No
dia em que aparecer um literato de gênio que o fixe numa forma
imortal... Ah! Então!
Dizendo isto, brincava nas suas faces um demorado sorriso de
satisfação e nos seus olhos abrolhavam duas lágrimas furtivas.
- Agora, continuou ele, depois de passada a emoção - vamos ao que
serve. O “Boi Espácio” ou o “Bumba-meu-Boi” ainda é muita coisa para
vocês... É melhor irmos devagar, começar pelo mais fácil... Está aí
o “Tangolomango”, conhecem?
- Não, disseram os dois.
- É divertido. Arranjem dez crianças, uma máscara de velho, uma
roupa estrambólica para um dos senhores, que eu ensaio.
O dia chegou. A casa do general estava cheia. Cavalcânti viera; e
ele e a noiva, à parte, no vão de uma janela, pareciam ser os únicos
que não tinham interesse pela folia. Ele, falando muito, cheio de
trejeitos no olhar; ela, meio fria, deitando de quando em quando,
para o noivo, um olhar de gratidão.
Quaresma fez o “Tangolomango”, isto é, vestiu uma velha sobrecasaca
do general, pôs uma imensa máscara de velho, agarrou-se a um bordão
curvo, em forma de báculo, e entrou na sala. As dez crianças
cantaram em coro:
Uma mãe teve dez filhos
Todos os dez dentro de um pote:
Deu o Tangolomango nele
Não ficaram senão nove.
Por aí, o major avançava, batia com o báculo no assoalho, fazia: hu!
hu! hu! ; as crianças fugiam, afinal ele agarrava uma e levava para
dentro. Assim ia executando com grande alegria da sala, quando, pela
quinta estrofe, lhe faltou o ar, lhe ficou a vista escura e caiu.
Tiraram-lhe a máscara, deram-lhe algumas sacudidelas e Quaresma
voltou a si.
O acidente, entretanto, não lhe deu nenhum desgosto pelo folklore,
Comprou livros, leu todas as publicações a respeito, mas a decepção
lhe veio ao fim de algumas semanas de estudo.
Quase todas as tradições e canções eram estrangeiras; o próprio
“Tangolomango” o era também. Tornava-se, portanto, preciso arranjar
alguma coisa própria, original, uma criação da nossa terra e dos
nossos ares.
Essa idéia levou-o a estudar os costumes tupinambás; e, como uma
idéia traz outra, logo ampliou o seu propósito e eis a razão por que
estava organizando um código de relações, de cumprimentos, de
cerimônias domésticas e festas, calcado nos preceitos tupis.
Desde dez dias que se entregava a essa árdua tarefa, quando (era
domingo) lhe bateram à porta, em meio de seu trabalho. Abriu, mas
não apertou a mão. Desandou a chorar, a berrar, a arrancar os
cabelos, como se tivesse perdido a mulher ou um filho. A irmã correu
lá de dentro, o Anastácio também, e o compadre e a filha, pois eram
eles, ficaram, estupefatos no limiar da porta.
- Mas que é isso, compadre?
- Que é isso, Policarpo?
- Mas, meu padrinho...
Ele ainda chorou um pouco. Enxugou as lágrimas e, depois, explicou
com a maior naturalidade:
- Eis aí! Vocês não têm a mínima noção das coisas da nossa terra,
Queriam que eu apertasse a mão... Isto não é nosso! Nosso
cumprimento é chorar quando encontramos os amigos, era assim que
faziam os tupinambás.
O seu compadre Vicente, a filha e Dona Adelaide entreolharam-se, sem
saber o que dizer. O homem estaria doido? Que extravagância!
- Mas, Senhor Policarpo, disse-lhe o compadre, é possível que isto
seja muito brasileiro, mas é bem triste, compadre.
- Decerto, padrinho, acrescentou a moça com vivacidade; parece até
agouro...
Este seu compadre era italiano de nascimento. A história das suas
relações vale a pena contar. Quitandeiro ambulante, fora fornecedor
da casa de Quaresma há vinte e tantos anos. O major já tinha as suas
idéias patrióticas, mas não desdenhava conversar com o quitandeiro e
até gostava de vê-lo suado, curvado ao peso dos cestos, com duas
rosas vermelhas nas faces muito brancas de europeu recém-chegado.
Mas um belo dia, ia Quaresma pelo Largo do Paço, muito distraído, a
pensar nas maravilhas arquitetônicas do chafariz do Mestre Valentim,
quando veio a encontrar-se com o mercador ambulante. Falou-lhe com
aquela simplicidade d’alma que era bem sua, e notou que o rapaz
tinha alguma preocupação séria. Não só, de onde em onde, soltava
exclamações sem ligação alguma com a conversa atual, como também,
cerrava os lábios, rilhava os dentes e crispava raivosamente os
punhos. Interrogou-o e veio a saber que tivera uma questão de
dinheiro com um seu colega, estando disposto a matá-lo, pois perdera
o crédito e em breve estaria na miséria. Havia na sua afirmação uma
tal energia e um grande e estranho acento de ferocidade que fizeram
empregar o major toda a sua doçura e persuasão para dissuadi-lo do
propósito. E não ficou nisto só: emprestou-lhe também dinheiro.
Vicente Coleoni pôs uma quitanda, ganhou uns contos de réis, fez-se
logo empreiteiro, enriqueceu, casou, veio a ter aquela filha, que
foi levada à pia pelo seu benfeitor. Inútil é dizer que Quaresma não
notou a contradição entre as suas idéias patrióticas e o seu ato.
É verdade que ele não as tinha ainda muito firmes, mas já flutuavam
na sua cabeça e reagiam sobre a sua consciência como tênues desejos,
veleidades de rapaz de pouco mais de vinte anos, veleidades que não
tardariam tomar consistência e só esperavam os anos para desabrochar
Fora, pois, ao seu compadre Vicente e à sua afilhada Olga que ele
recebera com o mais legítimo cerimonial guaitacás, e, se não
envergara o traje de rigor de tão interessante povo, motivo não foi
o não tê-lo. Estava até à mão, mas faltava-lhe tempo para despir-se.
- Lê-se muito, padrinho? perguntou-lhe a afilhada, deitando sobre
ele os seus olhos muito luminosos.
Havia entre os dois uma grande afeição. Quaresma era um tanto
reservado e o vexame de mostrar os seus sentimentos faziam-no
econômico nas demonstrações afetuosas. Adivinha-se, entretanto, que
a moça ocupavalhe no coração o lugar dos filhos que não tivera nem
teria jamais. A menina vivaz, habituada a falar alto e
desembaraçadamente, não escondia a sua afeição tanto mais que sentia
confusamente nele alguma coisa de superior, uma ânsia de ideal, uma
tenacidade em seguir um sonho, uma idéia, um vôo enfim para as altas
regiões do espírito que ela não estava habituada a ver em ninguém do
mundo que freqüentava. Essa admiração não lhe vinha da educação.
Recebera a comum às moças de seu nascimento. Vinha de um pendor
próprio, talvez das proximidades européias do seu nascimento, que a
fizeram um pouco diferente das nossas moças.
Fora com um olhar luminoso e perscrutador que ela perguntara ao
padrinho:
- Então padrinho, lê-se muito?
- Muito, minha filha. Imagina que medito grandes obras, uma
reforma, a emancipação de um povo.
Vicente fora com Dona Adelaide para o interior da casa e os dois
conversavam a sós na sala dos livros. A afilhada notou que Quaresma
tinha alguma coisa de mais. Falava agora com tanta segurança, ele
que antigamente era tão modesto, hesitante mesmo no falar - que
diabo! Não, não era possível... Mas, quem sabe? E que singular
alegria havia nos seus olhos - uma alegria de matemático que
resolveu um problema, de inventor feliz!
- Não se vá meter em alguma conspiração, disse a moça gracejando.
- Não te assustes por isso. A coisa vai naturalmente, não é preciso
violências...
Nisto Ricardo Coração dos Outros entrou com o seu longo e rabudo
fraque de sarja e o seu violão encapotado em camurça. O major fez as
apresentações.
- Já o conhecia de nome, Senhor Ricardo, disse Olga.
Coração dos Outros encheu-se de um alvissareiro contentamento. A sua
fisionomia minguada dilatou-se ao brilho do seu olhar satisfeito; e
a sua cútis que era ressecada e de um tom de velho mármore, como que
ficou macia e jovem. Aquela moça parecia rica, era fina e bonita,
conhecia-o - que satisfação! Ele que era sempre um tanto parvo e
atrapalhado, quando se encontrava diante das moças, fossem de que
condição fossem, animava-se, soltava a língua, amaciava a voz e
ficava numeroso e eloqüente.
- Leu então os meus versos, não é, minha senhora?
- Não tive esse prazer, mas li, há meses, uma apreciação sobre um
trabalho seu.
- No Tempo, não foi?
- Foi.
- Muito injusta! acrescentou Ricardo. Todos os críticos se atêm a
essa questão de metrificação. Dizem que os meus versos não são
versos... São, sim, mas são versos para violão. Vossa Excelência
sabe que os versos para música têm alguma coisa de diferente dos
comuns, não é? Não há, portanto, nada a admirar que os meus versos,
feitos para o violão, sigam outra métrica e outro sistema, não acha?
- Decerto, disse a moça. Mas parece-me que o Senhor faz versos para
a música e não música para os versos.
E ela sorriu devagar, enigmaticamente, deixando parado o seu olhar
luminoso, enquanto Ricardo, desconfiado, lhe sondava a intenção com
os seus olhinhos vivos e miúdos de camundongo.
Quaresma, que até ali se conservava calado, interveio:
- O Ricardo, Olga, é um artista... Tenta e trabalha para levantar o
violão.
- Eu sei, padrinho. Eu sei...
- Entre nós, minha senhora, falou Coração dos Outros, não se levam
a sério essas tentativas nacionais, mas, na Europa, todos respeitam
e auxiliam... Como é que se chama, major, aquele poeta que escreveu
em francês popular?
- Mistral, acudiu Quaresma, mas não é francês popular; é o
provençal, uma verdadeira língua.
- Sim, é isso, confirmou Ricardo. Pois o Mistral não é considerado,
respeitado? Eu, no tocante ao violão, estou fazendo o mesmo.
Olhou triunfante para um e outro circunstante; e Olga dirigindo-se a
ele, disse:
- Continue na tentativa, Senhor Ricardo, que é digno de louvor.
- Obrigado. Fique certa, minha senhora, que o violão é um belo
instrumento e tem grandes dificuldades. Por exemplo...
- Qual! Interroumpeu Quaresma abruptamente. Há outros mais
difíceis.
- O piano? perguntou Ricardo.
- Que piano! O maracá, a inúbia.
- Não conheço.
- Não conheces? É boa! Os instrumentos mais nacionais possíveis, os
únicos que o são verdadeiramente; instrumentos dos nossos
antepassados, daquela gente valente que se bateu e ainda se bate
pela posse desta linda terra. Os caboclos!
- Instrumento de caboclo, ora! disse Ricardo.
- De caboclo! Que é que tem? O Léry diz que são muito sonoros e
agradáveis de ouvir... Se é por ser de caboclo, o violão também não
vale nada. - é um instrumento de capadócio.
- De capadócio, major! Não diga isso...
E os dois ainda discutiram acaloradamente diante da moça, surpresa,
espantada, sem atinar, sem explicação para aquela inopinada
transformação de gênio do seu padrinho, até ali tão sossegado e tão
calmo.
III
A NOTÍCIA DO GENELÍCIO
Então quando se casa, Dona Ismênia?
- Em março. Cavalcânti já está formado e...
Afinal a filha do general pôde responder com segurança à pergunta
que se lhe vinha fazendo há quase cinco anos. O noivo finalmente
encontrara o fim do curso de dentista e marcara o casamento para dai
a três meses. A alegria foi grande na família; e, como em tal caso,
uma alegria não podia passar sem um baile, uma festa foi anunciada
para o sábado que se seguia ao pedido da pragmática.
As irmãs da noiva, Quinota, Zizi, Lalá e Vivi, estavam mais
contentes que a irmã nubente. Parecia que ela lhes ia deixar o
caminho desembaraçado, e fora a irmã quem até ali tinha impedido que
se casassem.
Noiva havia quase cinco anos, Ismênia já se sentia meio casada. Esse
sentimento junto à sua natureza pobre fê-la não sentir um pouco mais
de alegria. Ficou no mesmo. Casar, para ela, não era negócio de
paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos; era uma idéia,
uma pura idéia. Aquela sua inteligência rudimentar tinha separado da
idéia de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual
liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe
dizer: “Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar”... ou
senão: “Você precisa aprender a pregar botões, porque quando você se
casar...”
A todo instante e a toda hora, lá vinha aquele - “porque, quando
você se casar...” - e a menina foi se convencendo de que toda a
existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações
íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa
coisa: casar.
De resto, não era só dentro de sua família que ela encontrava aquela
preocupação. No colégio, na rua, em casa das famílias conhecidas, só
se falava em casar. “Sabe, Dona Maricota, a Lili casou-se, não fez
grande negócio, pois parece que o noivo não é lá grande coisa”; ou
então: “A Zezé está doida para arranjar casamento, mas é tão feia,
meu Deus!...”
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das idéias, o
nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo ninharias para
aquele cerebrozinho; e, de tal forma casar-se se lhe representou
coisa importante, uma espécie de dever, que não se casar, ficar
solteira, “tia”, parecia-lhe um crime, uma vergonha.
De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir qualquer coisa
profunda e intensamente, sem quantidade emocional para a paixão ou
para um grande afeto, na sua inteligência a idéia de “casar-se”
incrustou-se teimosamente como uma obsessão.
Ela não era feia; amorenada, com os seus traços acanhados, o
narizinho mal feito, mas galante, não muito baixa nem muito magra e
a sua aparência de bondade passiva, de indolência de corpo, de idéia
e de sentidos - era até um bom tipo das meninas a que os namorados
chamam - “bonitinhas”. O seu traço de beleza dominante, porém, eram
seus cabelos: uns bastos cabelos castanhos, com tons de ouro,
sedosos até ao olhar.
Aos dezenove anos arranjou namoro com o Cavalcânti, e à fraqueza de
sua vontade e ao temor de não encontrar marido não foi estranha a
facilidade com que o futuro dentista a conquistou.
O pai fez má cara. Ele andava sempre ao par dos namoros da filhas:
“Diga-me sempre, Maricota - dizia ele - quem são. Olho vivo!... É
melhor prevenir que curar... Pode ser um valdevinos e...” Sabendo
que o pretendente à Ismênia era um dentista, não gostou muito. Que é
um dentista? perguntava ele de si para si. Um cidadão semiformado,
uma espécie de barbeiro. Preferia um oficial, tinha montepio e meio
soldo; mas a mulher convenceu-o de que os dentistas ganham muito, e
ele acedeu.
Começou então Cavalcânti a freqüentar a casa na qualidade de noivo
“paisano”, isto é, que não pediu, não é ainda “oficial”.
No fim do primeiro ano, tendo notícia das dificuldades com que o
futuro genro lutava para acabar os estudos, o general foi
generosamente em seu socorro. Pagou-lhe taxas de matrículas, livros
e outras coisas. Não era raro que após uma longa conversa com a
filha, Dona Maricota viesse ao marido e dissesse: “Chico, arranja-me
vinte mil-réis que o Cavalcânti precisa comprar uma Anatomia”.
O general era leal, bom e generoso; a não ser a sua pretensão
marcial, não havia no seu caráter a mínima falha. Demais, aquela
necessidade de casar as filhas ainda o faziam melhor quando se
tratava dos interesses delas.
Ele ouvia a mulher, coçava a cabeça e dava o dinheiro; e até para
evitar despesas ao futuro genro, convidou-o a jantar em casa todo
dia; e assim o namoro foi correndo até ali.
Enfim - dizia Albernaz à mulher, na noite do pedido, quando já
recolhidos - a coisa vai acabar. Felizmente, respondia-lhe Dona
Maricota, vamos descontar esta letra.
A satisfação resignada do general era porém, falsa; ao contrário:
ele estava radiante. Na rua, se encontrava um camarada, no primeiro
momento azado, lá dizia ele:
- É um inferno, esta vida! Imagina tu, Castro, que ainda por cima
tenho que casar uma filha!
Ao que Castro interrogava:
- Qual delas?
- A Ismênia, a segunda, respondia Albernaz e logo acrescentava: tu
é que és feliz: só tiveste filhos.
- Ah! meu amigo! falava o outro cheio de malícia, aprendi a
receita. Por que não fizeste o mesmo?
Despedindo-se, o velho Albernaz corria aos armazéns, às lojas de
louça, comprava mais pratos, mais compoteiras, um centro de mesa,
porque a festa devia ser imponente e ter um ar de abundância e
riqueza que traduzisse o seu grande contentamento,
Na manhã do dia da festa comemorativa do pedido, Dona Maricota
amanheceu cantando. Era raro que o fizesse: mas nos dias de grande
alegria, ela cantarolava uma velha ária, uma coisa do seu tempo de
moça e as filhas que sentiam nisto sinal certo de alegria corriam a
ela, pedindo-lhe isto ou aquilo.
Muito ativa, muito diligente, não havia dona-de-casa mais econômica,
mais poupada e que fizesse render mais o dinheiro do marido e o
serviço das criadas. Logo que despertou, pôs tudo em atividade, as
criadas e as filhas. Vivi e Quinota foram para os doces; Lalá e Zizi
auxiliaram as raparigas na arrumação das salas e dos quartos,
enquanto ela e Ismênia iam arrumar a mesa, dispô-la com muito gosto
e esplendor. O móvel ficaria assim galhardo desde as primeiras horas
do dia. A alegria de Dona Maricota era grande; ela não compreendia
que uma mulher pudesse viver sem estar casada. Não eram só os
perigos a que se achava exposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feio
e desonroso para a família. A sua satisfação não vinha do simples
fato de ter descontado uma letra, como ele dizia. Vinha mais
profundamente dos seus sentimentos maternos e de família.
Ela arrumava a mesa, nervosa e alegre; e a filha fria e indiferente,
- Mas, minha filha, dizia ela, até parece que não é você quem se
vai casar! Que cara! Você parece aí uma “mosca-morta”.
- Mamãe, que quer que eu faça?
- Não é bonito rir-se muito, andar aí como uma sirigaita, mas
também assim como você está! Eu nunca vi noiva assim.
Durante uma hora, a moça esforçou-se por parecer muito alegre, mas
logo lhe tornava toda a pobreza de sua natureza, incapaz de vibração
sentimental, e o natural do seu temperamento vencia-a e não tardava
em cair naquela doentia lassidão que lhe era própria.
Veio muita gente. Além das moças e as respeitáveis mães, acudiram ao
convite do general, o Contra-Almirante Caldas, o doutor Florêncio,
engenheiro das águas, o Major honorário Inocêncio Bustamante, o
Senhor Bastos, guarda-livros, ainda parente de Dona Maricota, e
outras pessoas importantes. Ricardo não fora convidado porque o
general temia a opinião pública sobre a presença dele em festa
séria; Quaresma o fora, mas não viera; e Cavalcânti jantara com os
futuros sogros,
Às seis horas, a casa já estava cheia. As moças cercavam Ismênia,
cumprimentando-a, não sem um pouco de inveja no olhar.
Irene, uma alourada e alta, aconselhava:
- Eu, se fosse você, comprava tudo no Parque.
Tratava-se do enxoval. Todas elas, embora solteiras, davam
conselhos, sabiam as casas barateiras, as peças mais importantes e
as que podiam ser dispensadas. Estavam ao par.
A Armanda indicava com um requebro feiticeiro nos olhos:
- Eu, ontem, vi na Rua da Constituição um dormitório de casal,
muito bonito, você por que não vai ver, Ismênia? Parece barato.
A Ismênia era a menos entusiasmada, quase não respondia às
perguntas; e, se as respondia, era por monossílabos. Houve um
momento em que sorriu quase com alegria e abandono. Estefânia, a
doutora, normalista, que tinha nos dedos um anel, com tantas pedras
que nem uma joalheria, num dado momento, chegou a boca carnuda aos
ouvidos da noiva e fez uma confidência. Quando deixou de
segredar-lhe, assim como se quisesse confirmar o dito, dilatou muito
os seus olhos maliciosos e quentes, e disse alto:
- Eu quero ver isso... Todas dizem que não... Eu sei...
Ela aludia à resposta que, à sua confidência, Ismênia tinha dado com
parcimônia: qual o quê?
Todas elas, conversando, tinham os olhos no piano. Os rapazes e uma
parte dos velhos rodeavam Cavalcânti, muito solene, dentro de um
grande fraque preto.
- Então, doutor, acabou, hein? dizia este a jeito de um
cumprimento.
- É verdade! Trabalhei. Os senhores não imaginam os tropeços, os
embargos - fui de um heroísmo!...
- Conhece o Chavantes? perguntava um outro.
- Conheço. Um crônico, um pândego...
- Foi seu colega?
- Foi, isto é, ele é do curso de medicina. Matriculamo-nos no mesmo ano.
Cavalcânti ainda não tinha tido tempo de atender a este e já era
obrigado a ouvir a observação de outro.
- É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não
estava agora a quebrar a cabeça no “deve” e “haver”. Hoje, torço a
orelha e não sai sangue.
- Atualmente, não vale nada, meu caro senhor, dizia modestamente
Cavalcânti. Com essas academias livres... Imaginem que já se fala
numa Academia Livre de Odontologia! É o cúmulo! Um curso difícil e
caro, que exige cadávares, aparelhos, bons professores, como é que
particulares poderão mantê-lo? Se o governo mantém mal...
- Pois doutor, acudia um outro, dou-lhe meus parabéns, Digo-lhe o
que disse ao meu sobrinho, quando se formou: vá furando!
- Ah! Seu sobrinho é formado? inquiria delicadamente Cavalcânti.
- Em engenharia. Está no Maranhão, na estrada de Caxias.
- Boa carreira.
Nos intervalos da conversa, todos eles olhavam o novel dentista como
se fosse um ente sobrenatural.
Para aquela gente toda, Cavalcânti não era mais um simples homem,
era homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior; e não
juntavam à imagem que tinham dele atualmente, as coisas que
porventura ele pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava
nela de modo algum; e aquele tipo, para alguns, continuava a ser
vulgar, comum, na aparência, mas a sua substância tinha mudado, era
outra diferente da deles e fora ungido de não sei que coisa
vagamente fora da natureza terrestre, quase divina.
Para o lado de Cavalcânti, que se achava na sala de visitas, vieram
os menos importantes. O general ficara na sala de jantar, fumando,
cercado dos mais titulados e dos mais velhos. Estavam com ele o
Contra-Almirante Caldas, o Major Inocêncio, o doutor Florêncio e o
Capitão de Bombeiros Sigismundo.
Inocêncio aproveitou a ocasião para fazer uma consulta a Caldas
sobre assunto de legislação militar. O contra-almirante era
interessantíssimo, Na Marinha, por pouco que não fazia pendant com
Albernaz no Exército. Nunca embarcara, a não ser na guerra do
Paraguai, mas assim mesmo por muito pouco tempo. A culpa, porém, não
era dele. Logo que se viu primeiro-tenente, Caldas foi aos poucos se
metendo consigo, abandonando a roda dos camaradas, de forma que, sem
empenhos e sem amigos nos altos lugares, se esqueciam dele e não lhe
davam comissões de embarque. É curiosa essa coisa das administrações
militares: as comissões são merecimento, mas só se as dá aos protegidos,
Certa vez, quando era já capitão-tenente, deram-lhe um embarque em
Mato Grosso. Nomearam-no para comandar o couraçado “Lima Barros”.
Ele lá foi, mas, quando se apresentou ao comandante da flotilha,
teve notícia de que não existia no rio Paraguai semelhante navio.
Indagou daqui e dali e houve quem aventurasse que podia ser que o
tal “Lima Barros” fizesse parte da esquadrilha do alto Uruguai.
Consultou o comandante.
- Eu, no seu caso, disse-lhe o superior, partia imediatamente para
a flotilha do Rio Grande.
Ei-lo a fazer malas para o alto Uruguai, onde chegou enfim, depois
de uma penosa e fatigante viagem. Mas aí também não estava o tal
“Lima Barros”. Onde estaria então? Quis telegrafar para o Rio de
Janeiro, mas teve medo de ser censurado, tanto mais que não andava
em cheiro de santidade. Esteve assim um mês em Itaqui, hesitante,
sem receber soldo e sem saber que destino tomar. Um dia khe veio a
idéia de que o navio bem poderia estar no Amazonas. Embarcou na
intenção de ir ao extremo norte e quando passou pelo Rio, conforme a
praxe, apresentou-se às altas autoridades da Marinha. Foi preso e
submetido a conselho.
O “Lima Barros” tinha ido a pique, durante a guerra do Paraguai.
Embora absolvido, nunca mais entrou em graça dos ministros e dos
seus generais. Todos o tinham na conta de parvo, de um comandante de
opereta que andava à cata do seu navio pelos quatro pontos cardeais.
Deixaram-no “encostado”, como se diz na gíria militar, e ele levou
quase quarenta anos para chegar de guarda-marinha a
capitão-de-fragata. Reformado no posto imediato, com graduação do
seguinte, todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num
longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos,
consultas, que se referissem a promoções de oficiais. Comprava
repertórios de legislação, armazenava coleções de leis, relatórios,
e encheu a casa de toda essa enfadonha e fatigante literatura
administrativa. Os requerimentos, pedindo a modificação da sua
reforma, choviam sobre os ministros da Marinha. Corriam meses o
infinito rosário de repartiçôes e eram sempre indeferidos, sobre
consultas do Conselho Naval ou do Supremo Tribunal Militar.
Ultimamente constituíra advogado junto à justiça federal e lá andava
ele de cartório em cartório, acotovelando-se com meirinhos,
escrivães, juízes e advogados - esse poviléu rebarbativo do foro
que parece ter contraído todas as misérias que lhe passam pelas mãos
e pelos olhos.
Inocêncio Bustamante também tinha a mesma mania demandista. Era
renitente, teimoso mas servil e humilde. Antigo voluntário da
pátria, possuindo honras de major, não havia dia em que não fosse ao
quartel-general ver o andamento do seu requerimento e de outros. Num
pedia inclusão no Asilo dos Inválidos, noutro honras de
tenente-coronel, noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha
nenhum, ia ver o dos outros.
Não se pejou mesmo de tratar do pedido de um maníaco que, por ser
tenente honorário e também: da Guarda Nacional, requereu lhe fosse
passada a patente de major, visto que dois galões mais outros dois
fazem quatro - o que quer dizer: major.
Conhecedor dos estudos meticulosos do almirante, Bustamante fez a
sua consulta.
- Assim de pronto, não sei. Não é a minha especialidade o Exército,
mas vou ver. Isto também anda tão atrapalhado!
Acabando de responder coçava um dos seus favoritos brancos, que lhe
davam um ar de “comodoro” ou de chacareiro português, pois era forte
nele o tipo lusitano.
- Ah! meu tempo, observou Albernaz. Quanta ordem! Quanta
disciplina!
- Não há mais gente que preste, disse Bustamante.
Sigismundo por aí aventurou também a sua opinião, dizendo:
- Eu não sou militar, mas...
- Como não é militar? fez Albernaz, com ímpeto. Os senhores é que
são os verdadeiros: estão sempre com o inimigo na frente, não acha,
Caldas?
- Decerto, decerto, fez o almirante cofiando os favoritos.
- Como ia dizendo, continuou Sigismundo, apesar de não ser militar,
eu me animo a dizer que a nossa força está muito por baixo. Onde
está um Porto Alegre, um Caxias?
- Não há mais, meu caro, confirmou com voz tênue o doutor Florêncio.
- Não sei por que, pois tudo hoje não vai pela ciência?
Fora Caldas quem falara, tentando a ironia. Albernaz indignou-se e
retrucou-lhe com certo calor:
- Eu queria ver esses meninos bonitos, cheios de “xx” e “yy” em
Curupaiti, hein Caldas? hein Inocêncio?
O doutor Florêncio era o único paisano da roda. Engenheiro e
empregado público, os anos e o sossego da vida lhe tinham feito
perder todo o saber que porventura pudesse ter tido ao sair da
escola, Era mais um guarda de encanamentos do que mesmo um
engenheiro. Morando perto de Albernaz, era raro que não viesse toda
a tarde jogar o solo com o general. O doutor Florêncio perguntou:
- O senhor assistiu, não foi, general?
O general não se deteve, não se atrapalhou, não gaguejou e disse com
a máxima naturalidade:
- Não assisti. Adoeci e vim para o Brasil nas vésperas. Mas tive
muitos amigos lá: o Camisão, o Venâncio...
Todos se calaram e olharam a noite que chegava. Da janela da sala
onde estavam, não se via nem um monte. O horizonte estava
circunscrito aos fundos dos quintais das casas vizinhas com as suas
cordas de roupa a lavar, suas chaminés e o piar de pintos. Um
tamarineiro sem folhas lembrava tristemente o ar livre, as grandes
vistas sem fim. O sol já tinha desaparecido do horizonte e as tênues
luzes dos bicos de gás e dos lampiões familiares começavam a
acender-se por detrás das vidraças.
Bustamante quebrou o silêncio:
- Este país não vale mais nada. Imaginem que o meu requerimento,
pedindo honras de tenente-coronel, está no ministério há seis meses!
- Uma desordem, exclamaram todos.
Era noite. Dona Maricota chegou até onde eles estavam, muito ativa,
muito diligente e com o rosto aberto de alegria.
- Estão rezando? E logo ajuntou: Dão licença que diga uma coisa ao
Chico, sim?
Albernaz saiu fora da roda dos amigos e foi até a um canto da sala,
onde a mulher lhe disse alguma coisa em voz baixa. Ouviu a mulher,
depois voltou aos amigos e, no meio do caminho, falou alto, nestes termos:
- Se não dançam é porque não querem. Estou pegando alguém?
Dona Maricota aproximou-se dos amigos do marido e explicou:
- Os senhores sabem: se a gente não animar, ninguém tira par,
ninguém toca. Estão lá tantas moças, tantos rapazes, é uma pena!
- Bem; eu vou lá, disse Albernaz.
Deixou os amigos e foi à sala de visitas dar começo ao baile.
- Vamos, meninas! Então o que é isso? Zizi, uma valsa!
E ele mesmo em pessoa ia juntando os pares: “Não, general, já tenho
par”, dizia uma moça. “Não faz mal”, retrucava ele, “dance com o
Raimundinho; o outro espera”.
Depois de ter dado início ao baile, veio para a roda dos amigos
suado, mas contente.
- Isto de família! Qual! A gente até parece bobo, dizia. Você é que
faz bem, Caldas; não se quis casar!
- Mas tenho mais filhos que você. Só sobrinhos, oito; e os primos?
- Vamos jogar o solo, convidou Albernaz.
- Somos cinco, como há de ser? observou Florêncio.
- Não, eu não jogo, disse Bustamante.
- Então jogamos os quatro de garrancho? lembrou Albernaz.
As cartas vieram e também uma pequena mesa de tripeça. Os parceiros
sentaram-se e tiraram a sorte para ver quem dava. Coube a Florêncio
dar. Começaram. Albernaz tinha um ar atento quando jogava: a cabeça
lhe caía sobre as costas e os seus olhos tomavam uma grande
expressão de reflexão. Caldas aprumava o busto na cadeira e jogava
com a serenidade de um lorde-almirante numa partida de whist.
Sigismundo jogava com todo o cuidado, com o cigarro no canto da boca
e a cabeça do lado para fugir à fumaça. Bustamante fora à sala ver as
s.
Tinham começado a partida, quando Dona Quinota, uma das filhas do
general, atravessou a sala e foi beber água; Caldas, coçando um dos
favoritos, perguntou à moça:
- Então, Dona Quinota, quedê o Genelício?
A moça virou o rosto com faceirice, deu um pequeno muxoxo e
respondeu com falso mau humor:
- Ué! Sei lá! Ando atrás dele?
- Não precisa zangar-se, Dona Quinota; é uma simples pergunta,
advertiu Caldas,
O general que examinava atentamente as cartas recebidas, interrompeu
a conversa com voz grave:
- Eu passo.
Dona Quinota retirou-se. Este Genelício era o seu namorado. Parente
ainda de Caldas, tinha-se como certo o seu casamento na família. A
sua candidatura era favorecida por todos. Dona Maricota e o marido
enchiam- no de festas. Empregado do Tesouro, já no meio da carreira,
moço de menos de trinta anos, ameaçava ter um grande futuro. Não
havia ninguém mais bajulador e submisso do que ele. Nenhum pudor,
nenhuma vergonha! Enchia os chefes e os superiores de todo incenso
que podia. Quando saía, remancheava, lavava três ou quatro vezes as
mãos, até poder apanhar o diretor na porta. Acompanhava-o,
conversava com ele sobre o serviço, dava pareceres e opiniões,
criticava este ou aquele colega, e deixava-o no bonde, se o homem ia
para casa. Quando entrava um ministro, fazia-se escolher como
intérprete dos companheiros e deitava um discurso; nos aniversários
de nascimento, era um soneto que começava sempre por - “Salve” - e
acabava também por - “Salve! Três vezes Salve!”.
O modelo era sempre o mesmo; ele só mudava o nome do ministro e
punha a data.
No dia seguinte, os jornais falavam do seu nome, e publicavam o
soneto.
Em quatro anos, tinha tido duas promoções e agora trabalhava para
ser aproveitado no Tribunal de Contas, a se fundar, num posto acima.
Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio.
Não se limitava ao soneto, ao discurso; buscava outros meios, outros
processos. Um dos que se servia, eram as publicações nas folhas
diárias. No intuito de anunciar aos ministros e diretores que tinha
uma erudição superior, de quando em quando desovava nos jornais
longos artigos sobre contabilidade pública. Eram meras compilações
de bolorentos decretos, salpicadas aqui e ali com citações de
autores franceses ou portugueses.
Interessante é que os companheiros o respeitavam, tinham em grande
conta o seu saber e ele vivia na seção cercado do respeito de um
gênio, um gênio do papelório e das informações. Acresce que
Genelício juntava à sua segura posição administrativa, um curso de
direito a acabar; e tantos títulos juntos não podiam deixar de
impressionar favoravelmente às preocupações casamenteiras do casal
az.
Fora da repartição, tinha um empertigamento que o seu pobre físico
fazia cômico, mas que a convicção do alto auxílio que prestava ao
Estado, mantinha e sustentava. Um empregado modelo!...
O jogo continuava silenciosamente e a noite avançava. No fim das
“mãos” fazia-se um breve comentário ou outro, e no começo ouviam-se
unicamente as “falas” sacramentais do jogo: “solo, bolo, melhoro,
passo.” Feitas elas, jogava-se em silêncio; da sala, porém, vinha o
ruído festivo das danças e das conversas.
- Olhem quem está aí!
- O Genelício, fez Caldas. Onde estiveste, rapaz?
Deixou o chapéu e a bengala numa cadeira e fez os cumprimentos.
Pequeno, já um tanto curvado, chupado de rosto, com um pince-nez
azulado, todo ele traía a profissão, os seus gostos e hábitos. Era
um escriturário.
- Nada, meus amigos! Estou tratando dos meus negócios.
- Vão bem? perguntou Florêncio.
- Quase garantido. O ministro prometeu... Não há nada, estou bem
“cunhado”!
- Estimo muito, disse o general.
- Obrigado. Sabe de uma coisa, general?
- O que é?
- O Quaresma está doido.
- Mas... o quê? Quem foi que te disse?
- Aquele homem do violão. Já está na casa de saúde”.
- Eu logo vi, disse Albernaz, aquele requerimento era de doido.
- Mas não é só, general, acrescentou Genelício. Fez um ofício em
tupi e mandou ao ministro.
- É o que eu dizia, fez Albernaz.
- Quem é? perguntou Florêncio.
- Aquele vizinho, empregado do arsenal; não conhece?
- Um baixo, de pince-nez?
- Este mesmo, confirmou Caldas.
- Nem se podia esperar outra coisa, disse o doutor Florêncio.
Aqueles livros, aquela mania de leitura...
- Pra que ele lia tanto? indagou Caldas.
- Telha de menos, disse Florêncio.
Genelício atalhou com autoridade:
- Ele não era formado, para que meter-se em livros?
- É verdade, fez Florêncio.
- Isto de livros é bom para os sábios, para os doutores, observou
Sigismundo.
- Devia até ser proibido, disse Genelício, a quem não possuísse um
título “acadêmico” ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças.
Não acham?
- Decerto, disse Albernaz.
- Decerto, fez Caldas.
- Decerto, disse também Sigismundo.
Calaram-se um instante, e as atenções convergiram para o jogo.
- Já saíram todos os trunfos?
- Contasse, meu amigo.
Albernaz perdeu e lá na sala fez-se silêncio. Cavalcânti ia recitar.
Atravessou a sala triunfantemente, com um largo sorriso na face e
foi postar-se ao lado do piano. Zizi acompanhava. Tossiu e, com a
sua voz metálica, apurando muito os finais em “s”, começou:
A vida é uma comédia sem sentido,
Uma história de sangue e de poeira
Um deserto sem luz...
E o piano gemia.
IV
DESASTROSAS CONSEQÜÊNCIAS DE UM REQUERIMENTO
Os acontecimentos a que aludiam os graves personagens reunidos em
torno da mesa de solo, na tarde memorável da festa comemorativa do
pedido de casamento de Ismênia, se tinham desenrolado com rapidez
fulminante. A força de idéias e sentimentos contidos em Quaresma se
havia revelado em atos imprevistos com uma seqüência brusca e uma
velocidade de turbilhão. O primeiro fato surpreendeu, mas vieram
outros e outros, de forma que o que pareceu no começo uma
extravagância, uma pequena mania, se apresentou logo em insânia
declarada.
Justamente algumas semanas antes do pedido de casamento, ao abrirse
a sessão da Câmara, o secretário teve que proceder à leitura de um
requerimento singular e que veio a ter uma fortuna de publicidade e
comentário pouco usual em documentos de tal natureza.
O burburinho e a desordem que caracterizam o recolhimento
indispensável ao elevado trabalho de legislar, não permitiram que os
deputados o ouvissem; os jornalistas, porém, que estavam próximo à
mesa, ao ouvilo, prorromperam em gargalhadas, certamente
inconvenientes à majestade do lugar. O riso é contagioso. O
secretário, no meio da leitura, ria-se, discretamente; pelo fim, já
ria-se o presidente, ria-se o oficial da ata, ria-se o contínuo -
toda a mesa e aquela população que a cerca, riram-se da petição,
largamente, querendo sempre conter o riso, havendo em alguns tão
franca alegria que as lágrimas vieram.
Quem soubesse o que uma tal folha de papel representava de esforço,
de trabalho, de sonho generoso e desinteressado, havia de sentir uma
penosa tristeza, ouvindo aquele rir inofensivo diante dela. Merecia
raiva, ódio, um deboche de inimigo talvez, o documento que chegava à
mesa da Câmara, mas não aquele recebimento hilárico, de uma
hilaridade inocente, sem fundo algum, assim como se estivesse a rir
de uma palhaçada, de uma sorte de circo de cavalinhos ou de uma
careta de clown.
Os que riam, porém, não lhe sabiam a causa e só viam nele um motivo
para riso franco e sem maldade. A sessão daquele dia fora fria; e,
por ser assim, as seções dos jornais referentes à Câmara, no dia
seguinte, publicaram o seguinte requerimento e glosaram-no em todos
os tons.
Era assim concebida a petição:
“Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo
de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo tam bém de
que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no
campo das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer
continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo,
além, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com
espe cialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção
gra matical, vendo-se, diariamente, surgir azedas polêmicas entre os
mais profundos estudiosos do nosso idioma - usando do direito que
lhe confere a Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional
decrete o tupi-guarani, como língua oficial e nacional do povo brasileiro.
O suplicante, deixando de parte os argumentos históricos que militam
em favor de sua idéia, pede vênia para lembrar que a língua é a mais
alta manifestação da inteligência de um povo, é a sua cria ção mais
viva e original; e, portanto, a emancipação política do país requer
como complemento e consequência a sua emancipação idiomática.
Demais, Senhores Congressistas, o tupi-guarani, língua origina
líssima, aglutinante, é verdade, mas a que o polissintetismo dá
múlti plas feições de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas
belezas, de pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se
perfeita mente aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por ser criação
de povos que aqui viveram e ainda vivem, portanto possuidores da
organiza ção fisiológica e psicológica para que tendemos,
evitando-se dessa forma as estéreis controvérsias gramaticais,
oriundas de uma difícil adaptação de uma língua de outra região à
nossa organização cere bral e ao nosso aparelho vocal -
controvérsias que tanto empecem o progresso da nossa cultura
literária, científica e filosófica.
Seguro de que a sabedoria dos legisladores saberá encontrar meios
para realizar semelhante medida e cônscio de que a Câmara e o Senado
pesarão o seu alcance e utilidade P. e E. deferimento”.
Assinado e devidamente estampilhado, este requerimento do major foi
durante dias assunto de todas as palestras. Publicado em todos os
jornais, com comentários facetos, não havia quem não fizesse uma
pilhéria sobre ele, quem não ensaiasse um espírito à custa da
lembrança de Quaresma. Não ficaram nisso; a curiosidade malsã quis
mais. Indagou-se quem era, de que vivia, se era casado, se era
solteiro. Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o major
foi apontado na rua. Os pequenos jornais alegres, esses semanários
de espírito e troça, então! eram de um encarniçamento atroz com o
pobre major. Com uma abundância que marcava a felicidade dos
redatores em terem encontrado um assunto fácil, o texto vinha cheio
dele: O Major Quaresma disse isso; o Major Quaresma fez aquilo. Um
deles, além de outras referências, ocupou uma página inteira com o
assunto da semana. Intitulava-se a ilustração: “O Matadouro de Santa
Cruz, segundo o Major Quaresma”, e o desenho representava uma fila
de homens e mulheres a marchar para o choupo que se via à esquerda.
Um outro referia-se ao caso pintando um açougue, “O Açougue
Quaresma”; legenda: a cozinheira perguntava ao açougueiro: - O
senhor tem língua de vaca? O açougueiro respondia: - Não, só temos
língua de moça, quer?
Com mais ou menos espírito, os comentários não cessavam e a ausência
de relações de Quaresma no meio de que saíam, fazia com que fossem
de uma constância pouco habitual. Levaram duas semanas com o nome do
retário.
Tudo isto irritava profundamente Quaresma. Vivendo há trinta anos
quase só, sem se chocar com o mundo, adquirira uma sensibilidade
muito viva e capaz de sofrer profundamente com a menor coisa. Nunca
sofrera críticas, nunca se atirou à publicidade, vivia imerso no seu
sonho, incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fora
deles, ele não conhecia ninguém; e, com as pessoas com quem falava,
trocava pequenas banalidades, ditos de todo dia, coisas com que a
sua alma e o seu coração nada tinham que ver.
Nem mesmo a afilhada o tirava dessa reserva, embora a estimasse mais
que a todos.
Esse encerramento em si mesmo deu-lhe não sei que ar de estranho a
tudo, às competições, às ambições, pois nada dessas coisas que fazem
os ódios e as lutas tinha entrado no seu temperamento.
Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa
reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d’alma que vão
habitar esses homens de uma idéia fixa, os grandes estudiosos, os
sábios, e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua,
mais inocente que as donzelas das poesias de outras épocas.
É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra,
mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia
pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na
felicidade da raça.
A continuidade das troças feitas nos jornais, a maneira com que o
olhavam na rua, exasperavam-no e mais forte se enraizava nele a sua
idéia. À medida que engulia uma troça, uma pilhéria, vinha-lhe
meditar sobre a sua lembrança, pesar-lhe todos os aspectos,
examiná-la, detidamente, compará-la a coisas semelhantes, recordar
os autores e autoridades; e, à proporção que fazia isso, a sua
própria convicção mostrava a inanidade da crítica, a ligeireza da
pilhéria, e a idéia o tomava, o avassalava, o absorvia cada vez mais.
Se os jornais tinham recebido o requerimento com facécias de fundo
inofensivo e sem ódio, a repartição ficou furiosa. Nos meios
burocráticos, uma superioridade que nasce fora deles, que é feita e
organizada com outros materiais que não os ofícios, a sabença de
textos de regulamentos e a boa caligrafia, é recebida com a
hostilidade de uma pequena inveja.
É como se se visse no portador da superioridade um traidor à
mediocridade, ao anonimato papeleiro. Não há só uma questão de
promoção, de interesse pecuniário; há uma questão de amor-próprio,
de sentimentos feridos, vendo aquele colega, aquele galé como eles,
sujeito aos regulamentos, aos caprichos dos chefes, às olhadelas
superiores dos ministros, com mais títulos à consideração, com algum
direito a infringir as regras e os preceitos.
Olha-se para ele com o ódio dissimulado com que o assassino plebeu
olha para o assassino marquês que matou a mulher e o amante. Ambos
são assassinos, mas, mesmo na prisão, ainda o nobre e o burguês
trazem o ar do seu mundo, um resto da sua delicadeza e uma
inadaptação que ferem o seu humilde colega de desgraça.
Assim, quando surge numa secretaria alguém cujo nome não lembra
sempre o título de sua nomeação, aparecem as pequeninas perfídias,
as maledicências ditas ao ouvido, as indiretas, todo o arsenal do
ciúme invejoso de uma mulher que se convenceu de que a vizinha se
veste melhor do que ela.
Amam-se ou antes suportam-se melhor aqueles que se fazem célebres
nas informações, na redação, na assiduidade ao trabalho, mesmo os
doutores, os bacharéis, do que os que têm nomeada e fama. Em geral,
a incompreensão da obra ou do mérito do colega e total e nenhum
deles se pode capacitar que aquele tipo, aquele amanuense, como
eles, faça qualquer coisa que interesse os estranhos e dê que falar
a uma cidade inteira,
A brusca popularidade de Quaresma, o seu sucesso e nomeada efêmera
irritaram os seus colegas e superiores. Já se viu! dizia o
secretário. Este tolo dirigir-se ao Congresso e propor alguma coisa!
Pretensioso! O diretor, ao passar pela secretaria, olhava-o de
soslaio e sentia que o regulamento não cogitasse do caso para lhe
infligir uma censura. O colega arquivista era o menos terrível, mas
chamou-o logo de doido.
O major sentia bem aquele ambiente falso, aquelas alusões e isso
mais aumentava o seu desespero e a teimosia na sua idéia. Não
compreendia que o seu requerimento suscitasse tantas tempestades,
essa má vontade geral; era uma coisa inocente, uma lembrança
patriótica que merecia e devia ter o assentimento de todo mundo; e
meditava, voltava a idéia, e a examinava com mais atenção.
A extensa publicidade, que o fato tomou, atingiu o palacete de Real
Grandeza, onde morava o seu compadre Coleoni. Rico com os lucros das
empreitadas de construções de prédios, viúvo, o antigo quitandeiro
retirarase dos negócios e vivia sossegado na ampla casa que ele
mesmo edificara e tinha todos os remates arquitetônicos do seu gosto
predileto: compoteiras na cimalha, um imenso monograma sobre a porta
da entrada, dois cães de louça, nos pilares do portão da entrada e
outros detalhes equivalentes.
A casa ficava ao centro do terreno, elevava-se sobre um porão alto,
tinha um razoável jardim na frente, que avançava pelos lados,
pontilhado de bolas multicores; varanda, um viveiro, onde pelo calor
os pássaros morriam tristemente. Era uma instalação burguesa, no
gosto nacional, vistosa, cara, pouco de acordo com o clima e sem conforto.
No interior o capricho dominava, tudo obedecendo a uma fantasia
barroca, a um ecletismo desesperador. Os móveis se amontoavam, os
tapetes, as sanefas, os bibelots e a fantasia da filha, irregular e
indisciplinada, ainda trazia mais desordem àquela coleção de coisas
caras.
Viúvo, havia já alguns anos, era uma velha cunhada quem dirigia a
casa e a filha, quem o encaminhava nas distrações e nas festas.
Coleoni aceitava de bom coração esta doce tirania. Queria casar a
filha, bem e ao gosto dela; não punha, portanto, nenhum obstáculo ao
programa de Olga.
Em começo, pensou em dá-la a seu ajudante ou contramestre, uma
espécie de arquiteto que não desenhava, mas projetava casas e
grandes edifícios. Primeiro sondou a filha. Não encontrou
resistência, mas não encontrou também assentimento. Convenceu-se de
que aquela vaporosidade da menina, aquele seu ar distante de
heroína, a sua inteligência, o seu fantástico, não se dariam bem com
as rudezas e a simplicidade campônias de seu auxiliar.
Ela quer um doutor - pensava ele - que arranje! Com certeza, não
terá ceitil, mas eu tenho e as coisas se acomodam.
Ele se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o
barão de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; lá, é
visconde; aqui, é doutor, bacharel ou dentista; e julgou muito
aceitável comprar a satisfação de enobrecer a filha com umas meias
dúzias de contos de réis.
Havia momentos que se aborrecia um tanto com os propósitos da
menina. Gostando de dormir cedo, tinha que perder noites e noites no
Lírico, nos bailes; amando estar sentado em chinelas a fumar
cachimbo, era obrigado a andar horas e horas pelas ruas, saltitando
de casa em casa de modas, atrás da filha, para no fim do dia ter
comprado meio metro de fita, uns grampos e um frasco de perfume.
Era engraçado vê-lo nas lojas de fazendas cheio de complacência de
pai que quer enobrecer o filho, a dar opinião sobre o tecido, achar
este mais bonito, comparar um com outro, com uma falta de sentimento
daquelas coisas que se adivinhava até no pegá-las. Mas ele ia,
demorava-se e esforçava-se por entrar no segredo, no mistério, cheio
de tenacidade e candura perfeitamente paternais.
Até aí ele ia bem e calcava a contrariedade. Só o contrariavam
bastante as visitas, as colegas da filha, suas mães, suas irmãs, com
seus modos de falsa nobreza, os seus desdéns dissimulados, deixando
perceber ao velho empreiteiro o quanto estava ele distante da
sociedade das amigas e das colegas de Olga.
Não se aborrecia, porém, muito profundamente; ele assim o quisera e
a fizera, tinha que se conformar. Quase sempre, quando chegavam tais
visitas, Coleoni afastava-se, ia para o interior da casa.
Entretanto, não lhe era sempre possível fazer isso; nas grandes
festas e recepções tinha que estar presente e era quando mais sentia
o velado pouco-caso da alta nobreza da terra que o freqüentava. Ele
ficava sempre empreiteiro, com poucas idéias além do seu ofício, não
sabendo fingir, de modo que não se interessava por aquelas
tagarelices de casamentos, de bailes, de festas e passeios caros.
Uma vez ou outra um mais delicado propunha-lhe jogar o poker,
aceitava e sempre perdia. Chegou mesmo a formar uma roda em casa, de
que fazia parte o conhecido advogado Pacheco. Perdeu e muito, mas
não foi isso que o fez suspender o jogo. Que perdia? Uns contos -
uma ninharia! A questão, porém, é que Pacheco jogava com seis
cartas. A primeira vez que Coleoni deu com isso, pareceu-lhe simples
distração do distinto jornalista e famoso advogado. Um homem honesto
não ia fazer aquilo! E na segunda, seria também? E na terceira?
Não era possível tanta distração. Adquiriu a certeza da
trampolinagem, calou-se, conteve-se com uma dignidade não esperada
em um antigo quitandeiro, e esperou. Quando vieram a jogar outra vez
e o passe foi posto em prática, Vicente acendeu o charuto e observou
com a maior naturalidade deste mundo:
- Os senhores sabem que há agora, na Europa, um novo sistema de
jogar o poker?
- Qual é? perguntou alguém.
- A diferença é pequena: joga-se com seis cartas, isto é, um dos
parceiros, somente.
Pacheco deu-se por desentendido, continuou a jogar e a ganhar,
despediu-se à meia-noite cheio de delicadeza, fez alguns comentários
sobre a partida e não voltou mais.
Conforme o seu velho hábito, Coleoni lia de manhã os jornais, com o
vagar e a lentidão de homem pouco habituado à leitura, quando se lhe
deparou o requerimento do seu compadre do arsenal.
Ele não compreendeu bem o requerimento, mas os jornais faziam troça,
caíam tão a fundo sobre a coisa, que imaginou o seu antigo benfeitor
enleado numa meada criminosa, tendo praticado, por inadvertência,
alguma falta grave,
Sempre o tivera na conta do homem mais honesto deste mundo e ainda
tinha, mas daí quem sabe? Na última vez que o visitou ele não veio
com aqueles modos estranhos? Podia ser uma pilhéria...
Apesar de ter enriquecido, Coleoni tinha em grande conta o seu
obscuro compadre. Havia nele não só a gratidão de camponês que
recebeu um grande benefício, como um duplo respeito pelo major,
oriundo da sua qualidade de funcionário e de sábio.
Europeu, de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquele
sagrado respeito dos camponeses pelos homens que recebem a
investidura do Estado; e, como, apesar dos bastos anos de Brasil,
ainda não sabia juntar o saber aos títulos, tinha em grande
consideração a erudição do compadre.
Não é, pois, de estranhar que ele visse com mágoa o nome de Quaresma
envolvido em fatos que os jornais reprovavam. Leu de novo o
requerimento, mas não entendeu o que ele queria dizer. Chamou a
filha.
- Olga!
Ele pronunciava o nome da filha quase sem sotaque; mas, quando
falava português, punha nas palavras uma rouquidão singular, e
salpicava as frases de exclamações e pequenas expressões italianas.
- Olga, que quer dizer isto? Non capisco...
A moça sentou-se a um cadeira próxima e leu no jornal, o
requerimento e os comentários.
- Che! Então?
- O padrinho quer substituir o português pela língua tupi, entende
o senhor?
- Como?
- Hoje, nós não falamos português? Pois bem: ele quer que daqui em
diante falemos tupi.
- Tutti?
- Todos os brasileiros, todos.
- Ma che coisa! Não é possível?
- Pode ser. Os tcheques têm uma língua própria, e foram obrigados a
falar alemão, depois de conquistados pelos austríacos; os lorenos,
franceses...
- Per la madonna! Alemão é língua, agora esse acujelê, ecco!
- Acujelê é da África, papai; tupi é daqui.
- Per Bacco! É o mesmo... Está doido!
- Mas não há loucura alguma, papai.
- Como? Então é coisa de um homem bene?
- De juízo, talvez não seja; mas de doido, também não.
- Non capisco.
- É uma idéia, meu pai, é um plano, talvez à primeira vista
absurdo, fora dos moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez,
mas...
Por mais que quisesse, ela não podia julgar o ato do padrinho sob o
critério de seu pai. Neste falava o bom senso e nela o amor às
grandes coisas, aos arrojos e cometimentos ousados. Lembrou-se de
que Quaresma lhe falara em emancipação; e se houve no fundo de si um
sentimento que não fosse de admiração pelo atrevimento do major, não
foi decerto o de reprovação ou lástima; foi de piedade simpática por
ver mal compreendido o ato daquele homem que ela conhecia há tantos
anos, seguindo o seu sonho, isolado, obscuro e tenaz.
- Isto vai causar-lhe transtorno, observou Coleoni.
E ele tinha razão. A sentença do arquivista foi vencedora nas
discussões dos corredores e a suspeita de que Quaresma estivesse
doido foi tomando foros de certeza. Em princípio, o subsecretário
suportou bem a tempestade; mas tendo adivinhado que o supunham
insciente no tupi, irritou-se, encheu-se de uma raiva surda, que se
continha dificilmente. Como eram cegos! Ele que há trinta anos
estudava o Brasil minuciosamente, ele que em virtude desses estudos,
fora obrigado a aprender o rebarbativo alemão, não saber tupi, a
língua brasileira, a única que o era - que suspeita miserável!
Que o julgassem doido - vá! Mas que desconfiassem da sinceridade de
suas afirmações, não! E ele pensava, procurava meios de se
reabilitar, caía em distrações, mesmo escrevendo e fazendo a tarefa
quotidiana. Vivia dividido em dois: uma parte nas obrigações de todo
dia, e a outra, na preocupação de provar que sabia o tupi.
O secretário veio a faltar um dia e o major lhe ficou fazendo as
vezes. O expediente fora grande e ele mesmo redigira e copiara uma
parte. Tinha começado a passar a limpo um ofício sobre coisas de
Mato Grosso, onde se falava em Aquidauana e Ponta Porã, quando o
Carmo disse lá do fundo da sala, com acento escarninho:
- Homero, isto de saber é uma coisa, dizer é outra.
Quaresma nem levantou os olhos do papel. Fosse pelas palavras em
tupi que se encontravam na minuta, fosse pela alusão do funcionário
Carmo, o certo é que ele insensivelmente foi traduzindo a peça
oficial para o idioma indígena.
Ao acabar, deu com a distração, mas logo vieram outros empregados
com o trabalho que fizeram, para que ele examinasse. Novas
preocupações afastaram a primeira, esqueceu-se e o ofício em tupi
seguiu com os companheiros. O diretor não reparou, assinou e o
tupinambá foi dar ao ministério.
Não se imagina o rebuliço que tal coisa foi causar lá. Que língua
era? Consultou-se o doutor Rocha, o homem mais hábil da secretaria,
a respeito do assunto. O funcionário limpou o pince-nez, agarrou o
papel, voltou-o de trás para diante, pô-lo de pernas para o ar e
concluiu que era grego, por causa do “yy”.
O doutor Rocha tinha na secretaria a fama de sábio, porque era
bacharel em direito e não dizia coisa alguma.
- Mas, indagou o chefe, oficialmente as autoridades se podem
comunicar em línguas estrangeiras? Creio que há um aviso de 84...
Veja, Senhor doutor Rocha...
Consultaram-se todos os regulamentos e repertórios de legislação,
andou-se de mesa em mesa pedindo auxilio à memória de cada um e nada
se encontrara a respeito. Enfim, o doutor Rocha, após três dias de
meditação, foi ao chefe e disse com ênfase e segurança:
- O aviso de 84 trata de ortografia.
O diretor olhou o subalterno com admiração e mais ficou considerando
as suas qualidades de empregado zeloso, inteligente e... assíduo.
Foi informado de que a legislação era omissa no tocante à língua em
que deviam ser escritos os documentos oficiais; entretanto não
parecia regular usar uma que não fosse a do país.
O ministro, tendo em vista esta informação e várias outras
consultas, devolveu o ofício e censurou o arsenal.
Que manhã foi essa no arsenal! Os tímpanos soavam furiosamente, os
contínuos andavam numa dobadoura terrível e a toda hora perguntavam
pelo secretário que tardava em chegar.
Censurado! monologava o diretor, Ia-se por água abaixo o seu
generalato. Viver tantos anos a sonhar com aquelas estrelas e elas
se escapavam assim, talvez por causa da molecagem de um
escriturário!
Ainda se a situação mudasse... Mas qual!
O secretário chegou, foi ao gabinete do diretor. Inteirado do
motivo, examinou o ofício e pela letra conheceu que fora Quaresma
que o escrevera. Mande-o cá, disse o coronel. O major encaminhou-se
pensando nuns versos tupis que lera de manhã.
- Então o senhor leva a divertir-se comigo, não é?
- Como? fez Quaresma espantado.
- Quem escreveu isso?
O major nem quis examinar o papel. Viu a letra, lembrou-se da
distração e confessou com firmeza:
- Fui eu.
- Então confessa?
- Pois não. Mas Vossa Excelência não sabe...
- Não sabe! que diz?
O diretor levantou-se da cadeira, com os lábios brancos e a mão
levantada à altura da cabeça. Tinha sido ofendido três vezes: na sua
honra individual, na honra de sua casta e na do estabelecimento de
ensino que freqüentara, a escola da Praia Vermelha, o primeiro
estabelecimento científico do mundo. Além disso escrevera no
Pritaneu, a revista da escola, um conto - “A Saudade” - produção
muito elogiada pelos colegas. Dessa forma, tendo em todos os exames
plenamente e distinção, uma dupla coroa de sábio e artista
cingia-lhe a fronte, Tantos títulos valiosos e raros de se
encontrarem reunidos mesmo em Descartes ou Shakespeare,
transformavam aquele - não sabe - de um amanuense em ofensa
profunda, em injúria.
- Não sabe! Como é que o senhor ousa dizer-me isto! Tem o senhor
porventura o curso de Benjamim Constant? Sabe o senhor Matemática,
Astronomia, Física, Química, Sociologia e Moral? Como ousa então?
Pois o senhor pensa que por ter lido uns romances e saber um
francesinho aí, pode ombrear-se com quem tirou grau 9 em Cálculo, 10
em Mecânica, 8 em Astronomia, 10 em Hidráulica, 9 em Descritiva?
Então?!
E o homem sacudia furiosamente a mão e olhava ferozmente para
Quaresma que já se julgava fuzilado.
- Mas, senhor coronel!...
- Não tem mas, não tem nada! Considere-se suspenso, até segunda
ordem.
Quaresma era doce, bom e modesto. Nunca fora seu propósito duvidar
da sabedoria do seu diretor. Ele não tinha nenhuma pretensão a sábio
e pronunciara a frase para começar a desculpa; mas, quando viu
aquela enxurrada de saber, de títulos, a sobrenadar em águas tão
furiosas, perdeu o fio do pensamento, a fala, as idéias e nada mais
soube nem pôde dizer.
Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel, que não
deixava de olhá-lo furiosamente, indignadamente, ferozmente, como
quem foi ferido em todas as fibras do seu ser. Saiu afinal. Chegando
à sala do trabalho nada disse: pegou no chapéu, na bengala e
atirou-se pela porta afora, cambaleando como um bêbado. Deu umas
voltas, foi ao livreiro buscar uns livros. Quando ia tomar o bonde
encontrou o Ricardo Coração dos Outros.
- Cedo, hein major?
- É verdade.
E calaram-se ficando um diante do outro num mutismo contrafeito.
Ricardo avançou algumas palavras:
- O major, hoje, parece que tem uma idéia, um pensamento muito
forte.
- Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.
- É bom pensar, sonhar consola.
- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava
abismos entre os homens....
E os dois separaram-se. O major tomou o bonde e Ricardo desceu
descuidado a Rua do Ouvidor, com o seu passo acanhado e as calças
dobradas nas canelas, sobraçando o violão na sua armadura de
camurça.
V
O BIBELOT
Não era a primeira vez que ela vinha ali. Mais de uma dezena já
subira aquela larga escada de pedra, com grupos de mármores de
Lisboa de um lado e do outro, a Caridade e Nossa Senhora da Piedade;
penetrara por aquele pórtico de colunas dóricas, atravessara o átrio
ladrilhado, deixando à esquerda e à direita, Pinel e Esquirol,
meditando sobre o angustioso mistério da loucura; subira outra
escada encerada cuidadosamente e fora ter com o padrinho lá em cima,
triste e absorvido no seu sonho e na sua mania. Seu pai a trazia às
vezes, aos domingos, quando vinha cumprir o piedoso dever de
amizade, visitando Quaresma. Há quanto tempo estava ele ali? Ela não
se lembrava ao certo; uns três ou quatro meses, se tanto.
Só o nome da casa metia medo. O hospício! É assim como uma sepultura
em vida, um semi-enterramento, enterramento do espírito, da razão
condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem.
A saúde não depende dela e há muitos que parecem até adquirir mais
força de vida, prolongar a existência, quando ela se evola não se
sabe por que orifício do corpo e para onde.
Com que terror, uma espécie de pavor de coisa sobrenatural, espanto
de inimigo invisível e onipresente, não ouvia a gente pobre
referir-se ao estabelecimento da Praia das Saudades! Antes uma boa
morte, diziam.
No primeiro aspecto, não se compreendia bem esse pasmo, esse
espanto, esse terror do povo por aquela casa imensa, severa e grave,
meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janelas
gradeadas, a se estender por uns centos de metros, em face do mar
imenso e verde, lá na entrada da baía, na Praia das Saudades.
Entrava-se, viam-se uns homens calmos, pensativos, meditabundos,
como monges em recolhimento e prece.
De resto, com aquela entrada silenciosa, clara e respeitável,
perdiase logo a idéia popular da loucura; o escarcéu, os trejeitos,
as fúrias, o entrechoque de tolices ditas aqui e ali.
Não havia nada disso; era uma calma, um silêncio, uma ordem
perfeitamente naturais. No fim, porém, quando se examinavam bem, na
sala das visitas, aquelas faces transtornadas, aqueles ares
aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheados e
mergulhados em um sonho íntimo sem fim, e via-se também a excitação
de uns, mais viva em face à atonia de outros, é que se sentia bem o
horror da loucura, o angustioso mistério que ela encerra, feito não
sei de que inexplicável fuga do espírito daquilo que se supõe o
real, para se apossar e viver das aparências das coisas ou de outras
aparências das mesmas.
Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa
própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo
está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos
toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão
inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco
traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi
antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após.
E essa mudança não começa, não se sente quando começa e quase nunca
acaba. Com o seu padrinho, como fora? A princípio, aquele
requerimento... Mas que era aquilo? Um capricho, uma fantasia, coisa
sem importância, uma idéia de velho sem conseqüência. Depois, aquele
ofício? Não tinha importância, uma simples distração, coisa que
acontece a cada passo... E enfim? A loucura declarada, a torva e
irônica loucura que nos tira a nossa alma e põe uma outra, que nos
rebaixa... Enfim, a loucura declarada, a exaltação do eu, a mania de
não sair, de se dizer perseguido, de imaginar como inimigos, os
amigos, os melhores. Como fora doloroso aquilo! A primeira fase do
seu delírio, aquela agitação desordenada, aquele falar sem nexo, sem
acordo com que se realizava fora dele e com os atos passados, um
falar que não se sabia donde vinha, donde saia, de que ponto do seu
ser tomava nascimento! E o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem
viu um cataclismo, que o fazia tremer todo, desde os pés à cabeça e
enchia-o de indiferença para tudo mais que não fosse o seu próprio
delírio.
A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam à
matroca. Para ele, nada disso valia, nada disso tinha existência e
importância. Eram sombras, aparências; o real eram os inimigos, os
inimigos terríveis cujos nomes o seu delírio não chegava a criar. A
velha irmã, atarantada, atordoada, sem direção, sem saber que
alvitre tomar. Educada em casa sempre com um homem ao lado, o pai,
depois o irmão, ela não sabia lidar com o mundo, com negócios, com
as autoridades e pessoas influentes. Ao mesmo tempo, na sua
inexperiência e ternura de irmã, oscilava entre a crença de que
aquilo fosse verdade e a suspeita de que fosse loucura pura e simples.
Se não fosse seu pai (e Olga amava mais por isso o seu rude pai) que
se interessava, chamando a si os interesses da família e evitando a
demissão de que estava ameaçado, transformando-a em aposentadoria,
que seria dele? Como é fácil na vida tudo ruir! Aquele homem
pautado, regrado, honesto, com emprego seguro, tinha uma aparência
inabalável; entretanto bastou um grãozinho de sandice...
Estava há uns meses no hospício, o seu padrinho, e a irmã não o
podia visitar. Era tal o seu abalo de nervos, era tal a emoção ao
vê-lo ali naquela meia-prisão, decaído dele mesmo que um ataque se
seguia e não podia ser evitado.
Vinham ela e o pai, às vezes o pai só, algumas vezes Ricardo, e eram
só os três a visitá-lo.
Aquele domingo estava particularmente lindo, principalmente em
Botafogo, nas proximidades do mar e das montanhas altas que se
recortavam num céu de seda. O ar era macio e docemente o sol
faiscava nas calçadas.
O pai vinha lendo os jornais e ela, pensando, de quando em quando,
folheando as revistas ilustradas que trazia para alegrar e distrair
o padrinho.
Ele estava como pensionista; mas, embora assim, no começo, ela teve
um certo pudor em se misturar com os visitantes.
Parecia-lhe que a sua fortuna a punha acima de presenciar misérias;
recalcou porém, dentro de si esse pensamento egoísta, o seu orgulho
de classe, e agora entrava naturalmente, pondo em mais destaque a
sua elegância natural. Amava esses sacrifícios, essas abnegações,
tinha o sentimento da grandeza deles, e ficou contente consigo
mesma.
No bonde vinham outros visitantes e todos não tardaram em saltar no
portão do manicômio. Como em todas as portas dos nossos infernos
sociais, havia de toda gente, de várias condições, nascimentos e
fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a
moléstia passam também a sua rasoura pelas distinções que inventamos.
Os bem vestidos e os mal vestidos, os elegantes e os pobres, os
feios e os bonitos, os inteligentes e os néscios, entravam com
respeito, com concentração, com uma ponta de pavor nos olhos como se
penetrassem noutro mundo.
Chegavam aos parentes e os embrulhos se desfaziam: eram guloseimas,
fumo, meias, chinelas, às vezes livros e jornais, Dos doentes uns
conversavam com os parentes; outros mantinham-se calados, num
mutismo feroz e inexplicável; outros indiferentes; e era tal a
variedade de aspectos dessas recepções que se chegava a esquecer o
império da doença sobre todos aqueles infelizes, tanto ela variava
neste ou naquele, para se pensar em caprichos pessoais, em ditames
das vontades livres de cada um.
E ela pensava como esta nossa vida é variada e diversa, como ela é
mais rica de aspectos tristes que de alegres, e como na variedade da
vida a tristeza pode mais variar que a alegria e como que dá o
próprio movimento da vida.
Verificando isso, quase teve satisfação, pois a sua natureza
inteligente e curiosa se comprazia nas mais simples descobertas que
seu espírito fazia.
Quaresma estava melhor. A exaltação passara e o delírio parecia
querer desaparecer completamente. Chocando-se com aquele meio, houve
logo nele uma reação salutar e necessária. Estava doido, pois se o
punham ali...
Quando veio a ter com o compadre e a afilhada até trazia um sorriso
de satisfação por baixo do bigode já grisalho. Tinha emagrecido um
pouco, os cabelos pretos estavam um pouco brancos, mas o aspecto
geral era o mesmo. Não perdera totalmente a mansuetude e a ternura
no falar, mas quando a mania lhe tomava ficava um tanto seco e
desconfiado. Ao vê-los disse amavelmente:
- Então vieram sempre... Estava à espera...
Cumprimentaram-se e ele deu mesmo um largo abraço na afilhada.
- Como está Adelaide?
- Bem. Mandou lembranças e não veio porque... adiantou Coleoni.
- Coitada! disse ele, e pendeu a cabeça como se quisesse afastar
uma recordação triste; em seguida, perguntou:
- E o Ricardo?
A afilhada apressou-se em responder ao padrinho, com alvoroço e
alegria. Via-o já escapo à semi-sepultura de insânia.
- Está bom, padrinho. Procurou papai há dias e disse que a sua
aposentadoria já está quase acabada.
Coleoni tinha-se sentado. Quaresma também e a moça estava de pé,
para melhor olhar o padrinho com os seus olhos muito luminosos e
firmes no encarar. Guardas, internos e médicos passavam pelas portas
com a indiferença profissional. Os visitantes não se olhavam,
pareciam que não queriam conhecer-se na rua. Lá fora, era o dia
lindo, os ares macios, o mar infinito e melancólico, as montanhas a
se recortar num céu de seda - a beleza da natureza imponente e
indecifrável, Coleoni, embora mais assíduo nas visitas, notava as
melhoras do compadre com satisfação que errava na sua fisionomia,
num ligeiro sorriso. Num dado momento aventurou:
- O major já está muito melhor; quer sair?
Quaresma não respondeu logo; pensou um pouco e respondeu firme e
vagarosamente:
- É melhor esperar um pouco. Vou melhor... Sinto incomodar-te tanto
mas vocês que têm sido tão bons, hão de levar tudo isso para conta
da própria bondade. Quem tem inimigos deve ter também bons amigos...
O pai e a filha entreolharam-se; o major levantou a cabeça e parecia
que as lágrimas queriam rebentar. A moça interveio de pronto:
- Sabe, padrinho, vou casar-me.
- É verdade, confirmou o pai. A Olga vai casar-se e nós vínhamos
preveni-lo.
- Quem é teu noivo? perguntou Quaresma.
- É um rapaz...
- Decerto, interrompeu o padrinho sorrindo.
E os dois acompanharam-no com familiaridade e contentamento. Era um
bom sinal.
- É o Senhor Armando Borges, doutorando. Está satisfeito, padrinho?
fez Olga gentilmente.
- Então é para depois do fim do ano.
- Esperamos que seja por aí, disse o italiano.
- Gostas muito dele? indagou o padrinho.
Ela não sabia responder aquela pergunta. Queria sentir que gostava,
mas estava que não. E por que casava? Não sabia... Um impulso do seu
meio, uma coisa que não vinha dela - não sabia... Gostava de outro?
Também não. Todos os rapazes que ela conhecia não possuíam relevo
que a ferisse, não tinham o “quê”, ainda indeterminado na sua emoção
e na sua inteligência, que a fascinasse ou subjugasse. Ela não sabia
bem o que era, não chegava a extremar na percepção das suas
inclinações a qualidade que ela queria ver dominante no homem. Era o
heróico, era o fora do comum, era a força de projeção para as
grandes coisas; mas nessa confusão mental dos nossos primeiros anos,
quando as idéias e os desejos se entrelaçam e se embaralham, Olga
não podia colher e registrar esse anelo, esse modo de se lhe
representar e de amar o indivíduo masculino.
E tinha razão em se casar sem obedecer à sua concepção. É tão
difícil ver nitidamente num homem, de vinte a trinta anos, o que ela
sonhara que era bem possível tornasse a nuvem por Juno... Casava por
hábito de sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo
de sua vida e aguçar a sensibilidade. Lembrou-se disso tudo
rapidamente e respondeu sem convicção ao padrinho:
- Gosto.
A visita não se demorou muito mais. Era conveniente que fosse
rápida, não convinha fatigar a atenção do convalescente. Os dois
saíram sem esconder que iam esperançados e satisfeitos.
Na porta já havia alguns visitantes à espera do bonde. Como não
estivesse o veículo no ponto, foram indo ao longo da fachada do
manicômio até lá. Em meio do caminho, encontraram, encostada ao
gradil, uma velha preta a chorar. Coleoni, sempre bom, chegou-se a ela:
- Que tem, minha velha?
A pobre mulher deitou sobre ele um demorado olhar, úmido e doce,
cheio de uma irremediável tristeza, e respondeu:
- Ah! meu sinhô!... É triste... Um filho, tão bom, coitado!
E continuou a chorar. Coleoni começou a comover-se; a filha olhou-a
com interesse e perguntou no fim de um instante:
- Morreu?
- Antes fosse, sinhazinha.
E por entre lágrimas e soluços contou que o filho não a conhecia
mais, não lhe respondia às perguntas; era como estranho, Enxugou as
lágrimas e concluiu:
- Foi “coisa-feita”.
Os dois afastaram-se tristes, levando n’alma um pouco daquela
humilde dor.
O dia estava fresco e a viração, que começava a soprar, enrugava a
face do mar em pequenas ondas brancas. O Pão de Açúcar erguia-se
negro, hirto, solene, das ondas espumejantes e como que punha uma
sombra no dia muito claro.
No Instituto dos Cegos, tocavam violino: e a voz plangente e
demorada do instrumento parecia sair daquelas coisas todas, da sua
tristeza e da sua solenidade,
O bonde tardou um pouco. Chegou. Tomaram. Desceram no Largo da
Carioca. É bom ver-se a cidade nos dias de descanso, com as suas
lojas fechadas, as suas estreitas ruas desertas, onde os passos
ressoam como em claustros silenciosos. A cidade é como um esqueleto,
faltam-lhe as carnes, que são a agitação, o movimento de carros, de
carroças e gente. Na porta de uma loja ou outra, os filhos do
negociante brincam em velocípedes, atiram bolas e ainda mais se
sente a diferença da cidade do dia anterior.
Não havia ainda o hábito de procurar os arrabaldes pitorescos e só
encontravam, por vezes, casais que iam apressadamente a visitas,
como eles agora. O Largo de São Francisco estava silencioso e a
estátua, no centro daquele pequeno jardim que desapareceu, parecia
um simples enfeite. Os bondes chegavam preguiçosamente ao largo com
poucos passageiros. Coleoni e sua filha tomaram um que os levasse à
casa de Quaresma. Lá foram. A tarde se aproximava e as toilettes
domingueiras já apareciam nas janelas. Pretos com roupas claras e
grandes charutos ou cigarros; grupos de caixeiros com flores
estardalhantes; meninas em cassas bem engomadas: cartolas
antediluvianas ao lado de vestidos pesados de cetim negro,
envergados em corpos fartos de matronas sedentárias; e o domingo
aparecia assim decorado com a simplicidade dos humildes, com a
riqueza dos pobres e a ostentação dos tolos.
Dona Adelaide não estava só. Ricardo viera visitá-la e conversavam.
Quando o compadre de seu irmão bateu no portão, ele contava à velha
senhora o seu último triunfo:
- Não sei como há de ser, Dona Adelaide. Eu não guardo as minhas
músicas, não escrevo - é um inferno!
O caso era de pôr um autor em maus lençóis. O Senhor Paysandón, de
Córdoba (República Argentina), autor muito conhecido na mesma
cidade, lhe tinha escrito, pedindo exemplares de suas músicas e
canções. Ricardo estava atrapalhado, Tinha os versos escritos, mas a
música não. É verdade que as sabia de cor, porém, escrevê-las de uma
hora para outra era trabalho acima de sua força.
- É o diabo! continuou ele. Não é por mim; a questão é que se perde
uma ocasião de fazer o Brasil conhecido no estrangeiro.
A velha irmã de Quaresma não tinha grande interesse pelo violão. A
sua educação, que se fizera vendo semelhante instrumento entregue a
escravos ou gente parecida, não podia admitir que ele preocupasse a
atenção de pessoas de certa ordem, Delicada, entretanto, suportava a
mania de Ricardo, mesmo porque já começava a ter uma ponta de estima
pelo famoso trovador dos suburbanos. Nasceu-lhe essa estima pela
dedicação com que ele se houve no seu drama familiar. Os pequenos
serviços e trabalhos, os passos para ali e para aqui, ficaram a
cargo de Ricardo, que os desempenhara com boa vontade e diligência.
Atualmente era ele o encarregado de tratar da aposentadoria do seu
antigo discípulo. É um trabalho árduo, esse de liquidar uma
aposentadoria, como se diz na gíria burocrática. Aposentado o
sujeito, solenemente por um decreto, a coisa corre uma dezena de
repartições e funcionários para ser ultimada. Nada há mais grave do
que a gravidade com que o empregado nos diz; ainda estou fazendo o
cálculo; e a coisa demora um mês, mais até, como se se tratasse de
mecânica celeste.
Coleoni era o procurador do major, mas não sendo entendido em coisas
oficiais, entregou ao Coração dos Outros aquela parte do seu
mandato.
Graças à popularidade de Ricardo, e da sua lhaneza, vencera a
resistência da máquina burocrática e a liquidação estava anunciada para
Foi isso que ele anunciou a Coleoni, quando este entrou seguido da
filha. Pediram, tanto ele como Dona Adelaide, notícias do amigo e do
irmão.
A irmã nunca entendera direito o irmão, com a crise não o ficou
compreendendo melhor; mas o sentira profundamente com o sentimento
simples de irmã e desejava ardentemente a sua cura.
Ricardo Coração dos Outros gostava do major, encontrara nele certo
apoio moral e intelectual de que precisava. Os outros gostavam de
ouvir o seu canto, apreciavam como simples diletantes; mas o major
era o único que ia ao fundo da sua tentativa e compreendia o alcance
patriótico de sua obra.
De resto, ele agora sofria particularmente - sofria na sua glória,
produto de um lento e seguido trabalho de anos. É que aparecera um
crioulo a cantar modinhas e cujo nome começava a tomar força e já
era citado ao lado do seu.
Aborrecia-se com o rival, por dois fatos: primeiro: pelo sujeito ser
preto; e segundo: por causa das suas teorias.
Não é que ele tivesse ojeriza particular aos pretos. O que ele via
no fato de haver um preto famoso tocar violão, era que tal coisa ia
diminuir ainda mais o prestígio do instrumento. Se o seu rival
tocasse piano e por isso ficasse célebre, não havia mal algum; ao
contrário: o talento do rapaz levantava a sua pessoa, por intermédio
do instrumento considerado; mas, tocando violão, era o inverso: o
preconceito que lhe cercava a pessoa, desmoralizava o misterioso
violão que ele tanto estimava. E além disso com aquelas teorias!
Ora! Querer que a modinha diga alguma coisa e tenha versos certos!
Que tolice!
E Ricardo levava a pensar nesse rival inesperado que se punha assim
diante dele como um obstáculo imprevisto na subida maravilhosa para
a sua glória. Precisava afastá-lo, esmagá-lo, mostrar a sua
superioridade indiscutível; mas como?
A réclame já não bastava; o rival a empregava também. Se ele tivesse
um homem notável, um grande literato, que escrevesse um artigo sobre
ele e a sua obra, a vitória estava certa. Era difícil encontrar.
Esses nossos literatos eram tão tolos e viviam tão absorvidos em
coisas francesas... Pensou num jornal, O Violão, em que ele
desafiasse o rival e o esmagasse numa polêmica.
Era isso que precisava obter e a esperança estava em Quaresma,
atualmente recolhido ao hospício, mas felizmente em via de cura, A
sua alegria foi justamente quando soube que o amigo estava melhor.
- Não pude ir hoje, disse ele, mas irei domingo. Está mais gordo?
- Pouca coisa, disse a moça.
- Conversou bem, acrescentou Coleoni. Até ficou contente quando
soube que Olga ia casar-se.
- Vai casar-se, Dona Olga? Parabéns.
- Obrigada, fez ela.
- Quando é, Olga? perguntou Dona Adelaide.
- Lá para o fim do ano... Tem tempo...
E logo choveram perguntas sobre o noivo e afloraram as considerações
sobre o casamento.
E ela se sentia vexada; julgava, tanto as perguntas como as
considerações, impudentes e irritantes; queria fugir à conversa, mas
voltavam ao mesmo assunto, não só Ricardo, mas a velha Adelaide,
mais loquaz e curiosa que comumente. Esse suplício que se repetia em
todas as visitas, quase a fazia arrepender-se de ter aceitado o
pedido. Por fim, achou um subterfúgio, perguntando:
- Como vai o general?
- Não o tenho visto, mas a filha sempre vem aqui. Ele deve andar
bem, a Ismênia é que anda triste, desolada - coitadinha!
Dona Adelaide contou então o drama que agitava a pequenina alma da
filha do general. Cavalcânti, aquele Jacó de cinco anos, embarcara
para o interior, há três ou quatro meses, e não mandara nem uma
carta nem um cartão. A menina tinha aquilo como um rompimento; e
ela, tão incapaz de um sentimento mais profundo, de uma aplicação
mais séria de energia mental e física, sentia-o muito, como coisa
irremediável que absorvia toda a sua atenção.
Para Ismênia, era como se todos os rapazes casadoiros tivessem
deixado de existir. Arranjar outro era problema insolúvel, era
trabalho acima de suas forças. Coisa difícil! Namorar, escrever
cartinhas, fazer acenos, dançar, ir a passeios - ela não podia mais
com isso. Decididamente, estava condenada a não se casar, a ser tia,
a suportar durante toda a existência esse estado de solteira que a
apavorava. Quase não se lembrava das feições do noivo, dos seus
olhos esgazeados, do seu nariz duro e fortemente ósseo; independente
da memória dele, vinha-lhe sempre à consciência, quando, de manhã, o
estafeta não lhe entregava carta, essa outra idéia: não casar. Era
um castigo... A Quinota ia casar-se, o Genelício já estava tratando
dos papéis; e ela que esperara tanto, e fora a primeira a noivar-se,
ia ficar maldita, rebaixada diante de todas. Parecia até que ambos
estavam contentes com aquela fuga inexplicável de Cavalcânti. Como
eles se riam durante o carnaval! Como eles atiraram aos seus olhos
aquela viuvez prematura, durante os folguedos carnavalescos! Punham
tanta fúria no jogo de confetes e bisnagas, de modo a deixar bem
claro a felicidade de ambos, aquela marcha gloriosa e invejada para
o casamento, em face do seu abandono.
Ela disfarçava bem a impressão da alegria deles que lhe parecia
indecente e hostil; mas o escárnio da irmã que lhe dizia
constantemente: “Brinca, Ismênia! Ele está longe, vai aproveitando”
- metia-lhe raiva, a raiva terrível de gente fraca, que corrói
interiormente, por não poder arrebentar de qualquer forma.
Então, para espantar os maus pensamentos, ela se punha a olhar o
aspecto pueril da rua, marchetada de papeluchos multicores, e as
serpentinas irisadas pendentes nas sacadas, mas o que fazia bem à
sua natureza pobre, comprimida, eram os cordões, aquele ruído de
atabaques, e adufes, de tambores e pratos. Mergulhando nessa
barulheira, o seu pensamento repousava e como que a idéia que a
perseguia desde tanto tempo ficava impedida de lhe entrar na cabeça.
De resto, aqueles vestuários extravagantes de índios, aqueles
adornos de uma mitologia francamente selvagem, jacarés, cobras,
jabutis, vivos, bem vivos, traziam à pobreza de sua imaginação
imagens risonhas de rios claros, florestas imensas, lugares de
sossego e pureza que a reconfortavam.
Também aquelas cantigas gritadas, berradas, num ritmo duro e de uma
grande indigência melódica, vinham como reprimir a mágoa que ia
nela, abafada, comprimida, contida, que pedia uma explosão de
gritos, mas para o que não lhe sobrava força bastante e suficiente.
O noivo partira um mês antes do carnaval e depois do grande festejo
carioca a sua tortura foi maior. Sem hábito de leitura e de
conversa, sem atividade doméstica qualquer, ela passava os dias
deitada, sentada, a girar em torno de um mesmo pensamento: não
casar. Era-lhe doce chorar.
Nas horas da entrega da correspondência, tinha ainda uma alegre
esperança. Talvez? Mas a carta não vinha, e, voltava ao seu
pensamento: não casar.
Dona Adelaide, acabando de contar o desastre da triste Ismênia,
comentou:
- Merecia um castigo isso, não acham?
Coleoni interveio com brandura e boa vontade:
- Não há razão para desesperar. Há muita gente que tem preguiça de
escrever...
- Qual! fez Dona Adelaide. Há três meses, Senhor Vicente!
- Não volta, disse Ricardo sentenciosamente.
- E ela ainda o espera, Dona Adelaide? perguntou Olga.
- Não sei, minha filha. Ninguém entende essa moça. Fala pouco, se
fala diz meias palavras... É mesmo uma natureza que parece sem
sangue nem nervos. Sente-se a sua tristeza, mas não fala.
- É orgulho? perguntou ainda Olga.
- Não, não... Se fosse orgulho, ela não se referia de vez em quando
ao noivo. É antes moleza, preguiça... Parece que ela tem medo de
falar para que as coisas não venham a acontecer.
- E os pais que dizem a isso? indagou Coleoni.
- Não sei bem. Mas pelo que pude perceber, o incômodo do general
não é grande e Dona Maricota julga que ela deve arranjar “outro”.
- Era o melhor, disse Ricardo.
- Eu creio que ela não tem mais prática, disse sorrindo Dona
Adelaide. Levou tanto tempo noiva...
E a conversa já tinha virado para outros assuntos, quando a Ismênia
veio fazer a sua visita diária à irmã de Quaresma.
Cumprimentou todos e todos sentiram que ela penava. O sofrimento
dava-lhe mais atividade à fisionomia.
As pálpebras estavam roxas e até os seus pequenos olhos pardos
tinham mais brilho e expansão. Indagou da saúde de Quaresma e depois
calaram-se um instante. Por fim Dona Adelaide lhe perguntou:
- Recebeste carta, Ismênia?
- Ainda não, respondeu ela, com grande economia de voz.
Ricardo moveu-se na cadeira. Batendo com o braço num dunkerque, veio
atirar ao chão uma figurinha de biscuit, que se esfacelou em
inúmeros fragmentos, quase sem ruído.
SEGUNDA PARTE
I
NO “SOSSEGO”
Não era feio o lugar, mas não era belo. Tinha, entretanto, o aspecto
tranqüilo e satisfeito de quem se julga bem com a sua sorte.
A casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau, formando a
subida para a maior altura de uma pequena colina que lhe corria nos
fundos. Em frente, por entre os bambus da cerca, olhava uma planície
a morrer nas montanhas que se viam ao longe; um regato de águas
paradas e sujas cortava-a paralelamente à testada da casa; mais
adiante, o trem passava vincando a planície com a fita clara de sua
linha capinada; um carreiro, com casas, de um e de outro lado, saia
da esquerda e ia ter à estação, atravessando o regato e serpeando
pelo plano. A habitação de Quaresma tinha assim um amplo horizonte,
olhando para o levante, a “noruega”, e era também risonha e graciosa
nos seus muros caiados. Edificada com a desoladora indigência
arquitetônica das nossas casas de campo, possuía, porém, vastas
salas, amplos quartos, todos com janelas, e uma varanda com uma
colunata heterodoxa. Além desta principal, o sítio do “Sossego”,
como se chamava, tinha outras construções: a velha casa da farinha,
que ainda tinha o forno intacto e a roda desmontada, e uma
estrebaria coberta de sapê.
Não havia três meses que viera habitar aquela casa, naquele ermo
lugar, a duas horas do Rio, por estrada de ferro, após ter passado
seis meses no hospício da Praia das Saudades. Saíra curado? Quem
sabe lá? Parecia; não delirava e os seus gestos e propósitos eram de
homem comum embora, sob tal aparência, se pudesse sempre crer que
não se lhe despedira de todo, já não se dirá a loucura, mas o sonho
que cevara durante tantos anos. Foram mais seis meses de repouso e
útil seqüestração que mesmo de uso de uma terapêutica psiquiátrica.
Quaresma viveu lá, no manicômio, resignadamente, conversando com os
seus companheiros, onde via ricos que se diziam pobres, pobres que
se queriam ricos, sábios a maldizer da sabedoria, ignorantes a se
proclamarem sábios: mas deles todos, daquele que mais se admirou,
foi de um velho e plácido negociante da Rua dos Pescadores que se
supunha Átila. Eu, dizia o pacato velho, sou Átila, sabe? Sou Átila.
Tinha fracas notícias da personagem, sabia o nome e nada mais, Sou
Átila, matei muita gente - e era só.
Saiu o major mais triste ainda do que vivera toda a vida. De todas
as coisas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a
mais depressora e pungente.
Aquela continuação da nossa vida tal e qual, com um desarranjo
imperceptível, mas profundo e quase sempre insondável, que a
inutiliza inteiramente, faz pensar em alguma coisa mais forte que
nós, que nos guia, que nos impele e em cujas mãos somos simples
joguetes. Em vários tempos e lugares, a loucura foi considerada
sagrada, e deve haver razão nisso no sentimento que se apodera de
nós quando, ao vermos um louco desarrazoar, pensamos logo que já não
é ele quem fala, é alguém, é alguém que vê por ele, interpreta as
coisas por ele, está atrás dele, invisível!...
Quaresma saiu envolvido, penetrado da tristeza do manicômio. Voltou
à sua casa, mas a vista das suas coisas familiares não lhe tirou a
forte impressão de que vinha impregnado. Embora nunca tivesse sido
alegre, a sua fisionomia apresentava mais desgosto que antes, muito
abatimento moral, e foi para levantar o ânimo que se recolheu àquela
risonha casa de roça, onde se dedicava a modestas culturas.
Não fora ele, porém, quem se lembrara; fora a afilhada que lhe
trouxe à idéia aquele doce acabar para a sua vida. Vendo-o naquele
estado de abatimento, triste e taciturno, sem coragem de sair,
enclausurado em sua casa de São Cristóvão, Olga dirigiu-se um dia ao
padrinho meiga e filialmente:
- O padrinho por que não compra um sítio? Seria tão bom fazer as
suas culturas, ter o seu pomar, a sua horta... não acha?
Tão taciturno que ele estivesse, não pôde deixar de modificar
imediatamente a sua fisionomia à lembrança da moça. Era um velho
desejo seu, esse de tirar da terra o alimento, a alegria e a
fortuna; e foi lembrando dos seus antigos projetos que respondeu à
a:
- É verdade, minha filha. Que magnífica idéia, tens tu! Há por ai
tantas terras férteis sem emprego... A nossa terra tem os terrenos
mais férteis do mundo... O milho pode dar até duas colheitas e
quatrocentos por um...
A moça esteve quase arrependida da sua lembrança. Pareceu-lhe que ia
atear no espírito do padrinho manias já extintas.
- Em toda a parte - não acha, meu padrinho? - há terras férteis.
- Mas como no Brasil, apressou-se ele em dizer, há poucos países
que as tenham. Vou fazer o que tu dizes: plantar, criar, cultivar o
milho, o feijão, a batata inglesa... Tu irás ver as minhas culturas,
a minha horta, o meu pomar - então é que te convencerás como são
fecundas as nossas terras!
A idéia caiu-lhe na cabeça e germinou logo. O terreno estava
amanhado e só esperava uma boa semente. Não lhe voltou a alegria que
jamais teve, mas a taciturnidade foi-se com o abatimento moral, e
veio-lhe a atividade mental cerebrina, por assim dizer, de outros
tempos. Indagou dos preços correntes das frutas, dos legumes, das
batatas, dos aipins; calculou que cinqüenta laranjeiras, trinta
abacateiros, oitenta pessegueiros, outras árvores frutíferas, além
dos abacaxis (que mina!), das abóboras e outros produtos menos
importantes, podiam dar o rendimento anual de mais de quatro contos,
tirando as despesas. Seria ocioso trazer para aqui os detalhes dos
seus cálculos, baseados em tudo no que vem estabelecido nos boletins
da Associação de Agricultura Nacional. Levou em linha de conta a
produção média de cada pé de fruteira, de hectare cultivado, e
também os salários, as perdas inevitáveis; e, quanto aos preços, ele
foi em pessoa ao mercado buscá-los.
Planejou a sua vida agrícola com a exatidão e meticulosidade que
punha em todos os seus projetos. Encarou-a por todas as faces, pesou
as vantagens e ônus; e muito contente ficou em vê-la monetariamente
atraente, não por ambição de fazer fortuna, mas por haver nisso mais
uma demonstração das excelências do Brasil.
E foi obedecendo a essa ordem de idéias que comprou aquele sítio,
cujo nome - “Sossego” - cabia tão bem à nova vida que adotara,
após a tempestade que o sacudira durante quase um ano. Não ficava
longe do Rio e ele o escolhera assim mesmo maltratado, abandonado,
para melhor demonstrar a força e o poder da tenacidade, do carinho,
no trabalho agrícola. Esperava grandes colheitas de frutas, de
grãos, de legumes; e do seu exemplo, nasceriam mil outros
cultivadores, estando em breve a grande capital cercada de um
verdadeiro celeiro, virente e abundante a dispensar os argentinos e
europeus.
Com que alegria ele foi para lá! Quase não teve saudades de sua
velha casa de São Januário, agora propriedade de outras mãos, talvez
destinada ao mercenário mister de lar de aluguel... Não sentiu que
aquela vasta sala, abrigo calmo dos seus livros durante tantos anos,
fosse servir para salão de baile fútil, fosse testemunhar talvez
rixas de casais desentendidos, ódios de família - ela tão boa, tão
doce, tão simpática, com o seu teto alto e as suas paredes lisas, em
que se tinham incrustado os desejos de sua alma e toda ela penetrada
da exalação dos seus sonhos!...
Ele foi contente. Como era tão simples viver na nossa terra! Quatro
contos de réis por ano, tirados da terra, facilmente, docemente,
alegremente! Oh! terra abençoada! Como é que toda a gente queria ser
empregado público, apodrecer numa banca, sofrer na sua independência
e no seu orgulho? Como é que se preferia viver em casas apertadas,
sem ar, sem luz, respirar um ambiente epidêmico, sustentar-se de
maus alimentos, quando se podia tão facilmente obter uma vida feliz,
farta, livre, alegre e saudável?”
E era agora que ele chegava a essa conclusão, depois de ter sofrido
a miséria da cidade e o emasculamento da repartição pública, durante
tanto tempo! Chegara tarde, mas não a ponto de que não pudesse antes
da morte travar conhecimento com a doce vida campestre e a
feracidade das terras brasileiras. Então pensou que foram vãos
aqueles seus desejos de reformas capitais nas instituições e
costumes: o que era principal à grandeza da pátria estremecida, era
uma forte base agrícola, um culto pelo seu solo ubérrimo, para
alicerçar fortemente todos os outros destinos que ela linha de
preencher,
Demais, com terras tão férteis, climas variados, a permitir uma
agricultura fácil e rendosa, este caminho estava naturalmente indicado.
E ele viu então diante dos seus olhos as laranjeiras, em flor,
olentes, muito brancas, a se enfileirar pelas encostas das colinas,
como teorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a
sopesar com esforço os grandes pomos verdes; as jabuticabas negras a
estalar dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis,
recebendo a unção quente do sol; as abobreiras a se arrastarem com
flores carnudas cheias de pólen; as melancias de um verde tão fixo
que parecia pintado; os pêssegos veludosos, as jacas monstruosas, os
jambos, as mangas capitosas; e dentre tudo aquilo surgia uma linda
mulher, com o regaço cheio de frutos e um dos ombros nu, a lhe
sorrir agradecida, com um imaterial sorriso demorado de deusa - era
Pomona, a deusa dos vergéis e dos jardins!...
As primeiras semanas que passou no “Sossego”, Quaresma as empregou
numa exploração em regra da sua nova propriedade. Havia nela terra
bastante, velhas árvores frutíferas, um capoeirão grosso com
camarás, bacurubus, tinguacibas, tibibuias, monjolos, e outros
espécimes. Anastácio que o acompanhara, apelava para as suas
recordações de antigo escravo de fazenda, e era quem ensinava os
nomes dos indivíduos da mata a Quaresma muito lido e sabido em
coisas brasileiras.
O major logo organizou um museu dos produtos naturais do “Sossego”.
As espécies florestais e campesinas foram etiquetadas com os seus
nomes vulgares, e quando era possível com os científicos. Os
arbustos, em herbário, e as madeiras, em pequenos tocos, seccionados
longitudinal e transversalmente,
Os azares de leituras tinham-no levado a estudar as ciências
naturais e o furor autodidata dera a Quaresma sólidas noções de
Botânica, Zoologia, Mineralogia e Geologia.
Não foram só os vegetais que mereceram as honras de um inventário;
os animais também, mas como ele não tinha espaço suficiente e a
conservação dos exemplares exigia mais cuidado, Quaresma limitou-se
a fazer o seu museu no papel, por onde sabia que as terras eram
povoadas de tatus, cutias, preás, cobras variadas, saracuras, sanãs,
avinhados, coleiros, tiês, etc. A parte mineral era pobre, argilas,
areia e, aqui e ali, uns blocos de granito esfoliando-se.
Acabado esse inventário, passou duas semanas a organizar a sua
biblioteca agrícola e uma relação de instrumentos meteorológicos
para auxiliar os trabalhos da lavoura.
Encomendou livros nacionais, franceses, portugueses; comprou
termômetros, barômetros, pluviômetros, higrômetros, anemômetros.
Vieram estes e foram arrumados e colocados convenientemente.
Anastácio assistia a todos esses preparativos com assombro. Para que
tanta coisa, tanto livro, tanto vidro? Estaria o seu antigo patrão
dando para farmacêutico? A dúvida do preto velho não durou muito,
Estando certa vez Quaresma a ler o pluviômetro, Anastácio, ao lado,
olhava-o espantado, como quem assiste a um passe de feitiçaria. O
patrão notou o espanto do criado e disse:
- Sabes o que estou fazendo, Anastácio?
- Não “sinhô”.
- Estou vendo se choveu muito.
- Pra que isso, patrão? A gente sabe logo “de olho” quando chove
muito ou pouco... Isso de plantar é capinar, pôr a semente na terra,
deixar crescer e apanhar...
Ele falava com a voz mole de africano, sem “rr” fortes, com lentidão
e convicção.
Quaresma, sem abandonar o instrumento, tomou em consideração o
conselho de seu empregado, O capim e o mato cobriam as suas terras.
As laranjeiras, os abacateiros, as mangueiras estavam sujos, cheios
de galhos mortos, e cobertos de uma medusina cabeleira de
erva-de-passarinho; mas, como não fosse época própria à poda e ao
corte dos galhos, Quaresma limitou-se a capinar por entre os pés das
fruteiras. De manhã, logo ao amanhecer, ele mais o Anastácio, lá
iam, de enxada ao ombro, para o trabalho do campo. O sol era forte e
rijo; o verão estava no auge, mas Quaresma era inflexível e
corajoso. Lá ia.
Era de vê-lo, coberto com um chapéu de palha de coco, atracado a um
grande enxadão de cabo nodoso, ele, muito pequeno, míope, a dar
golpes sobre golpes para arrancar um teimoso pé de guaximba. A sua
enxada mais parecia uma draga, um escavador, que um pequeno
instrumento agrícola. Anastácio, junto ao patrão, olhava-o com
piedade e espanto. Por gosto andar naquele sol a capinar sem
saber?... Há cada coisa neste mundo!
E os dois iam continuando. O velho preto, ligeiro, rápido, raspando
o mato rasteiro, com a mão habituada, a cujo impulso a enxada
resvalava sem obstáculo pelo solo, destruindo a erva má; Quaresma,
furioso, a arrancar torrões de terra daqui, dali, demorando-se muito
em cada arbusto e, às vezes, quando o golpe falhava e a lâmina do
instrumento roçava a terra, a força era tanta que se erguia uma
poeira infernal, fazendo supor que por aquelas paragens passara um
pelotão de cavalaria. Anastácio, então, intervinha humildemente, mas
em tom professoral:
- Não é assim, “seu majó”. Não se mete a enxada pela terra adentro.
É de leve, assim.
E ensinava ao Cincinato inexperiente o jeito de servir-se do velho
instrumento de trabalho.
Quaresma agarrava-o, punha-se em posição e procurava com toda a boa
vontade usá-lo da maneira ensinada. Era em vão. O flange batia na
erva, a enxada saltava e ouvia-se um pássaro ao alto soltar uma
piada irônica: bem-te-vi! O major enfurecia-se, tentava outra vez,
fatigava-se, suava, enchia-se de raiva e batia com toda a força; e
houve várias vezes que a enxada, batendo em falso, escapando ao
chão, fê-lo perder o equilíbrio, cair, e beijar a terra, mãe dos
frutos e dos homens. O pince-nez saltava, partia-se de encontro a um
seixo.
O major ficava todo enfurecido e voltava com mais rigor e energia à
tarefa que se impusera; mas, tanto é em nossos músculos firme a
memória ancestral desse sagrado trabalho de tirar da terra o
sustento de nossa vida, que não foi impossível a Quaresma acordar
nos seus o jeito, a maneira de empregar a enxada vetusta.
Ao fim de um mês, ele capinava razoavelmente, não seguido, de sol a
sol, mas com grandes repousos de hora em hora que a sua idade e
falta de hábito requeriam.
Às vezes, o fiel Anastácio seguia-o no descanso e ambos, lado a
lado, à sombra de uma fruteira mais copada, ficavam a ver o ar
pesado daqueles dias de verão que enrodilhava as folhas das árvores
e punha nas coisas um forte acento de resignação mórbida. Então, aí
por depois do meio-dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e
mergulhar em silêncio a vida inteira, é que o velho major percebia
bem a alma dos trópicos, feita de desencontros como aquele que se
via agora, de um sol alto, claro, olímpico, a brilhar sobre um
torpor de morte, que ele mesmo provocava.
Almoçavam mesmo no eito, comidas do dia anterior, aquecidas
rapidamente sobre um improvisado fogão de calhaus, e o trabalho ia
assim até à hora do jantar. Havia em Quaresma um entusiasmo sincero,
entusiasmo de ideólogo que quer pôr em prática a sua idéia. Não se
agastou com as primeiras ingratidões da terra, aquele seu mórbido
amor pelas ervas daninhas e o incompreensível ódio pela enxada
fecundante. Capinava e capinava sempre até vir jantar.
Esta refeição ele fazia mais demorada. Conversava um pouco com a
irmã, contava-lhe a tarefa do dia, consistindo sempre em avaliar a
área já limpa.
- Sabes, Adelaide, amanhã estarão as laranjeiras limpas, não ficará
nem mais uma touceira de mato.
A irmã, mais velha que ele, não partilhava aquele seu entusiasmo
pelas coisas da roça. Considerava-o silenciosa, e, se viera viver
com ele, não foi senão pelo hábito de acompanhá-lo. Decerto, ela o
estimava, mas não o compreendia. Não chegava a entender nem os seus
gestos nem a sua agitação interna. Por que não seguira ele o caminho
dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito...
Andar com livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira!
Seguira-o ao “Sossego” e, para entreter-se, criava galinhas, com
grande alegria do irmão cultivador.
- Está direito, dizia ela, quando o irmão lhe contava as coisas do
seu trabalho. Não vá ficares doente... Neste sol todo o dia...
- Qual, doente, Adelaide! Não estás vendo como essa gente tem tanta
saúde por aí... Se adoecem, é porque não trabalham.
Acabado o jantar, Quaresma chegava à janela que dava para o
galinheiro e atirava migalhas de pão às aves.
Ele gostava desse espetáculo, daquela luta encarniçada entre patos,
gansos, galinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida
da vida e dos prêmios que ela comporta. Depois, fazia indagações
sobre a vida do galinheiro:
- Já nasceram os patos, Adelaide?
- Ainda não. Faltam oito dias ainda.
E logo a irmã acrescentava:
- Tua afilhada deve casar-se sábado, tu não vais?
- Não. Não posso... Vou incomodar-me, luxo... Mando um leitão e um peru.
- Ora, tu! Que presente!
- Que é que tem? É da tradição.
Justamente estavam nesse dia assim a conversar as dois irmãos na
sala de jantar da velha casa roceira, quando Anastácio veio
avisar-lhes que se achava um cavalheiro na porteira.
Desde que ali se instalara, nenhuma visita batera à porta de
Quaresma, a não ser a gente pobre do lugar, a pedir isso ou aquilo,
esmolando disfarçadamente. Ele mesmo não travara conhecimento com
ninguém, de modo que foi com surpresa que recebeu o aviso do velho
Apressou-se em ir receber o visitante na sala principal. Ele já
subia a pequena escada da frente e penetrava pela varanda adentro.
- Boas tardes, major.
- Boas tardes. Faça o favor de entrar.
O desconhecido entrou e sentou-se. Era um tipo comum, mas o que
havia nele de estranho, era a gordura. Não era desmedida ou
grotesca, mas tinha um aspecto desonesto. Parecia que a fizera de
repente e comia, a mais não poder, com medo de a perder de um dia
para outro. Era assim como a de um lagarto que entesoura enxúndia
para o inverno ingrato. Através da gordura de suas bochechas, via-se
perfeitamente a sua magreza natural, normal, e se devia ser gordo
não era naquela idade, com pouco mais de trinta anos, sem dar tempo
que todo ele engordasse; porque, se as suas faces eram gordas, as
suas mãos continuavam magras com longos dedos fusiformes e ágeis. O
visitante falou:
- Eu sou o Tenente Antonino Dutra, escrivão da coletoria...
- Alguma formalidade? indagou medroso Quaresma.
- Nenhuma, major. Já sabemos quem o senhor é; não há novidade nem
nenhuma exigência legal.
O escrivão tossiu, tirou um cigarro, ofereceu outro a Quaresma e
continuou.
- Sabendo que o major vem estabelecer-se aqui, tomei a iniciativa
de vir incomodá-lo... Não é coisa de importância... Creio que o
major...
- Oh! Por Deus, tenente!
- Venho pedir-lhe um pequeno auxílio, um óbulo, para a festa da
Conceição, a nossa padroeira, de cuja irmandade sou tesoureiro.
- Perfeitamente. É muito justo. Apesar de não ser religioso,
estou...
- Uma coisa nada tem com a outra. É uma tradição do lugar que
devemos manter.
- É justo.
- O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre
e a irmandade também, de forma que somos obrigados a apelar para a
boa vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto,
major...
- Não. Espere um pouco...
- Oh! major, não se incomode, Não é pra já.
Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fora e
acrescentou:
- Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem,
major?
- Muito bem.
- Pretende dedicar-se à agricultura?
- Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.
- Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sítio já foi uma
lindeza, major! Quanta fruta, quanta farinha! As terras estão
cansadas e...
- Qual cansadas, Seu Antonino! Não há terras cansadas... A Europa é
cultivada há milhares de anos, entretanto...
- Mas lá se trabalha.
- Por que não se há de trabalhar aqui também?
- Lá isso é verdade; mas há tantas contrariedades na nossa terra que...
- Qual, meu caro tenente! Não há nada que não se vença.
- O senhor verá com o tempo, major. Na nossa terra não se vive
senão de política, fora disso, babau! Agora mesmo anda tudo brigado
por causa da questão da eleição de deputados...
Ao dizer isto, o escrivão lançou por baixo das suas pálpebras gordas
um olhar pesquisador sobre a ingênua fisionomia de Quaresma.
- Que questão é? indagou Quaresma.
O tenente parecia que esperava a pergunta e logo fez com alegria:
- Então não sabe?
- Não.
- Eu lhe explico: o candidato do governo é o doutor Castrioto, moço
honesto, bom orador; mas entenderam aqui certos presidentes de
Câmaras Municipais do Distrito que se hão de sobrepor ao governo, só
porque o Senador Guariba rompeu com o governador; e - zás -
apresentaram um tal Neves que não tem serviço algum ao partido e
nenhuma influência... Que pensa o senhor?
- Eu... Nada!
O serventuário do fisco ficou espantado. Havia no mundo um homem
que, sabendo e morando no município de Curuzu, não se incomodasse
com a briga do Senador Guariba com o governador do Estado! Não era
possível! Pensou e sorriu levemente. Com certeza, disse ele consigo,
este malandro quer ficar bem com os dois, para depois arranjar-se
sem dificuldade. Estava tirando sardinha com mão de gato... Aquilo
devia ser um ambicioso matreiro; era preciso cortar as asas daquele
“estrangeiro”, que vinha não se sabe donde!
- O major é um filósofo, disse ele com malícia.
- Quem me dera? fez com ingenuidade Quaresma.
Antonino ainda fez rodar um pouco a conversa sobre a grave questão,
mas, desanimado de penetrar nas tenções ocultas do major, apagou a
fisionomia e disse em ar de despedida:
- Então o major não se recusa a concorrer para a nossa festa, não é?
- Decerto.
Os dois se despediram. Debruçado na varanda, Quaresma ficou a vê-lo
montar no seu pequeno castanho, luzidio de suor, gordo e vivo. O
escrivão afastou-se, desapareceu na estrada, e o major ficou a
pensar no interesse estranho que essa gente punha nas lutas
políticas, nessas tricas eleitorais, como se nelas houvesse qualquer
coisa de vital e importante. Não atinava porque uma rezinga entre
dois figurões importantes vinha pôr desarmonia entre tanta gente,
cuja vida estava tão fora da esfera daqueles. Não estava ali a terra
boa para cultivar e criar? Não exigia ela uma árdua luta diária? Por
que não se empregava o esforço que se punha naqueles barulhos de
votos, de atas, no trabalho de fecundá-la, de tirar dela seres,
vidas - trabalho igual ao de Deus e dos artistas? Era tolo estar a
pensar em governadores e guaribas, quando a nossa vida pede tudo à
terra e ela quer carinho, luta, trabalho e amor...
O sufrágio universal pareceu-lhe um flagelo.
O trem apitou e ele demorou-se a vê-lo chegar. É uma emoção especial
de quem mora longe, essa de ver chegar os meios de transporte que
nos põem em comunicação com o resto do mundo. Há uma mescla de
e de alegria, Ao mesmo tempo que se pensa em boas novas, pensam-se
também más. A alternativa angustia...
O trem ou o vapor como que vem do indeterminado, do Mistério, e
traz, além de notícias gerais, boas ou más, também o gesto, um
sorriso, a voz das pessoas que amamos e estão longe.
Quaresma esperou o trem. Ele chegou arfando e se estirando como um
réptil pela estação afora à luz forte do sol poente. Não se demorou
muito. Apitou de novo e saiu a levar notícias, amigos, riquezas,
tristezas por outras estações além. O major pensou ainda um pouco
como aquilo era bruto e feio, e como as invenções do nosso tempo se
afastam tanto da linha imaginária da beleza que os nossos educadores
de dois mil anos atrás nos legaram. Olhou a estrada que levava à
estação. Vinha um sujeito... Dirigia-se para a sua casa... Quem
podia ser? Limpou o pince-nez e assestou-o para o homem que
caminhava com pressa... Quem era? Aquele chapéu dobrado, como um
morrião... Aquele fraque comprido... Passo miúdo... Um violão! Era
ele!
- Adelaide, está aí o Ricardo.
II
ESPINHOS E FLORES
Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa coisa em matéria
de edificação da cidade. A topografia do local, caprichosamente
montuosa, influiu decerto para tal aspecto, mais influíram, porém,
os azares das construções.
Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode
ser imaginado. As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e,
conforme as casas, as ruas se fizeram. Há algumas delas que começam
largas como boulevards e acabam estreitas que nem vielas; dão
voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um
ódio tenaz e sagrado.
Às vezes se sucedem na mesma direção com uma freqüência irritante,
outras se afastam, e deixam de permeio um longo intervalo coeso e
fechado de casas. Num trecho, há casas amontoadas umas sobre outras
numa angústia de espaço desoladora, logo adiante um vasto campo abre
ao nosso olhar uma ampla perspectiva.
Marcham assim ao acaso as edificações e conseguintemente o
arruamento. Há casas de todos os gostos e construídas de todas as
s.
Vai-se por uma rua a ver um correr de chalets, de porta e janela,
parede de frontal, humildes e acanhados, de repente se nos depara
uma casa burguesa, dessas de compoteiras na cimalha rendilhada, a se
erguer sobre um porão alto com mezaninos gradeados. Passada essa
surpresa, olha-se acolá e dá-se com uma choupana de pau-a-pique,
coberta de zinco ou mesmo palha, em torno da qual formiga uma
população; adiante, é uma velha casa de roça, com varanda e colunas
de estilo pouco classificável, que parece vexada e querer ocultar-se
diante daquela onda de edifícios disparatados e novos.
Não há nos nossos subúrbios coisa alguma que nos lembre os famosos
das grandes cidades européias, com as suas vilas de ar repousado e
satisfeito, as suas estradas e ruas macadamizadas e cuidadas, nem
mesmo se encontram aqueles jardins, cuidadinhos, aparadinhos,
penteados, porque os nossos, se os há, são em geral pobres, feios e
desleixados.
Os cuidados municipais também são variáveis e caprichosos. Às vezes,
nas ruas, há passeios, em certas partes e outras não; algumas vias
de comunicação são calçadas e outras da mesma importância estão
ainda em estado de natureza. Encontra-se aqui um pontilhão bem
cuidado sobre o rio seco e passos além temos que atravessar um
ribeirão sobre uma pinguela de trilhos mal juntos.
Há pelas ruas damas elegantes, com sedas e brocados, evitando a
custo que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido; há
operários de tamancos; há peralvilhos à última moda; há mulheres de
chita; e assim pela tarde, quando essa gente volta do trabalho ou do
passeio, a mescla se faz numa mesma rua, num quarteirão, e quase
sempre o mais bem posto não é que entra na melhor casa.
Além disto, os subúrbios têm mais aspectos interessantes, sem falar
no namoro epidêmico e no espiritismo endêmico; as casas de cômodos
(quem as suporia lá!) constituem um deles bem inédito. Casas que mal
dariam para uma pequena família, são divididas, subdivididas, e os
minúsculos aposentos assim obtidos, alugados à população miserável
da cidade. Aí, nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna
menos observada da nossa vida, sobre a qual a miséria paira com um
rigor londrino.
Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da
gente que habita tais caixinhas. Além dos serventes de repartições,
contínuos de escritórios, podemos deparar velhas fabricantes de
rendas de bilros, compradores de garrafas vazias, castradores de
gatos, cães e galos, mandingueiros, catadores de ervas medicinais,
enfim, uma variedade de profissões miseráveis que as nossas pequena
e grande burguesias não podem adivinhar. Às vezes num cubículo
desses se amontoa uma família, e há ocasiões em que os seus chefes
vão a pé para a cidade por falta do níquel do trem.
Ricardo Coração dos Outros morava em uma pobre casa de cômodos de
dos subúrbios. Não era das sórdidas, mas era uma casa de cômodos dos
subúrbios.
Desde anos que ele a habitava e gostava da casa que ficava trepada
sobre uma colina, olhando a janela do seu quarto para uma ampla
extensão edificada que ia da Piedade a Todos os Santos. Vistos assim
do alto, os subúrbios têm a sua graça. As casas pequeninas, pintadas
de azul, de branco, de oca, engastadas nas comas verde-negras das
mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro ou uma
palmeira, alta e soberba, fazem a vista boa e a falta de percepção
do desenho das ruas põe no panorama um sabor de confusão
democrática, de solidariedade perfeita entre as gentes que as
habitam; e o trem minúsculo, rápido, atravessa tudo aquilo, dobrando
à esquerda, inclinando-se para a direita, muito flexível nas suas
grandes vértebras de carros, como uma cobra entre pedrouços.
Era daquela janela que Ricardo espraiava as suas alegrias, as suas
satisfações, os seus triunfos e também os seus sofrimentos e mágoas.
Ainda agora estava ele lá, debruçado no peitoril, com a mão em
concha no queixo, colhendo com a vista uma grande parte daquela
bela, grande e original cidade, capital de um grande país, de que
ele a modos que era e se sentia ser, a alma, consubstanciando os
seus tênues sonhos e desejos em versos discutíveis, mas que a
plangência do violão, se não lhes dava sentido, dava um quê de
balbucio, de queixume dorido da pátria criança ainda, ainda na sua
ção...
Em que pensava ele? Não pensava só, sofria também. Aquele tal preto
continuava na sua mania de querer fazer a modinha dizer alguma
coisa, e tinha adeptos. Alguns já o citavam como rival dele,
Ricardo; outros já afirmavam que o tal rapaz deixava longe o Coração
dos Outros, e alguns mais - ingratos! - já esqueciam os trabalhos,
o tenaz trabalhar de Ricardo Coração dos Outros em prol do
levantamento da modinha e do violão, e nem nomeavam o abnegado
o.
Com o olhar perdido, Ricardo lembrava-se de sua infância, daquela
sua aldeia sertaneja, da casinha dos seus pais, com seu curral e o
mugido dos vitelos... E o queijo? Aquele queijo tão substancial, tão
forte, feio como aquela terra, mas feraz como ela tanto que bastava
comer dele uma pequena fatia para se sentir almoçado... E as festas?
Saudades... E o violão, como aprendeu? O seu mestre, o Maneco
Borges, não lhe predissera o futuro: “Irás longe, Ricardo. A viola
quer teu coração”?
Por que então aquele encarniçamento, aquele ódio contra ele - ele
que trouxera para esta terra de estrangeiros a alma, o suco, a
substância do país!
E as lágrimas lhe saltaram quentes dos olhos afora. Olhou um pouco
as montanhas, farejou o mar lá longe... Era bela a terra, era linda,
era majestosa, mas parecia ingrata e áspera no seu granito
onipresente que se fazia negro e mau quando não era amaciado pela
verdura das árvores.
E ele estava ali só, só com a sua glória e o seu tormento, sem amor,
sem confidente, sem amigo, só como um deus ou como um apóstolo em
terra ingrata que não lhe quer ouvir a boa nova.
Sofria em não ter um peito amado, amigo em que derramasse aquelas
lágrimas que iam cair no solo indiferente. Por aí, lembrou-se dos
famosos versos:
“Se choro... bebe o pranto a areia ardente”...
Com a lembrança, ele baixou um pouco o olhar à terra e viu que, no
tanque da casa, um tanto escondida dele, uma rapariga preta lavava.
Ela abaixava o corpo sobre a roupa, carregava todo o seu peso,
ensaboava-a ligeira, batia-a de encontro à pedra, e recomeçava. Teve
pena daquela pobre mulher, duas vezes triste na sua condição e na
sua cor. Veio-lhe um afluxo de ternura e, depois, pôs-se a pensar no
mundo, nas desgraças, ficando um instante enleado no enigma do nosso
miserável destino humano.
A rapariga não o viu, distraída com o trabalho; e se pôs a cantar:
Da doçura dos teus olhos
A brisa inveja já tem
Era dele. Ricardo sorriu satisfeito e teve vontade de ir beijar
aquela pobre mulher, abraçá-la...
E como eram as coisas? Ele recebia lenitivo daquela rapariga; era a
sua humilde e dorida voz que vinha afagar o seu tormento! Vieram-lhe
então à memória aqueles versos do Padre Caldas, esse seu antecessor
feliz que teve um auditório de fidalgas:
Lereno alegrou os outros
E nunca teve alegria...
Enfim era uma missão!... A rapariga acabou de cantar e Ricardo não
se pôde conter:
- Vai bem, Dona Alice, vai bem! Se não fosse, por que lhe pedia bis?
A rapariga estendeu a cabeça, reconheceu quem falava e disse:
- Não sabia que o senhor estava aí, senão não cantava na vista do senhor.
- Qual o quê! Posso garantir-lhe que está bom, muito bom. Cante.
- Deus me livre! Para o senhor me “acriticar”...
Embora insistisse muito, a rapariga não quis continuar. As mágoas
pareciam ter passado do pensamento de Ricardo. Veio ao interior do
quarto e pôs-se à mesa na tenção de escrever.
O seu quarto tinha o mobiliário mais reduzido possível. Havia uma
rede com franjas de rendas, uma mesa de pinho, sobre ela objetos de
escrever; uma cadeira, uma estante com livros, e, pendurado a uma
parede, o violão na sua armadura de camurça. Havia também uma
máquina para fazer café.
Sentou-se e quis começar uma modinha sobre a Glória, essa coisa
fugace, que se tem e se pensa que não se tem, alguma coisa
impalpável, incolhível como um sopro, que nos alanceia, queima,
inquieta e abrasa como o Amor.
Tentou começar, dispôs o papel, mas não pôde. A emoção tinha sido
forte, toda a sua natureza tinha sido lavrada, baralhada, com a
idéia daquele furto que se queria fazer ao seu mérito. Não conseguiu
assentar o pensamento, apanhar as palavras no ar, sentir a música
zumbir no ouvido.
A manhã ia alta. As cigarras defronte chilreavam no tamarineiro
desfolhado; começava a esquentar e o céu estava de um azul ligeiro,
tênue, fino. Quis sair, procurar um amigo, espairecer com ele, mas
quem? Ainda se o Quaresma... Ah! O Quaresma! Esse, sim, trazia-lhe
conforto e consolo.
É verdade que ultimamente esse seu amigo achava-se pouco interessada
pela modinha; mas assim mesmo compreendia o seu propósito, os fins e
o alcance da obra a que ele, Ricardo, se propunha. Ainda se o major
estivesse perto, mas tão longe! Consultou as algibeiras. Não chegava
a dois mil-réis a sua fortuna. Como ir? Arranjaria um passe e iria.
Bateram à porta. Traziam-lhe uma carta. Não reconheceu a letra;
rasgou o envelope com emoção. Que seria? Leu:
“Meu caro Ricardo - Saúde - Minha filha Quinota casa-se depois de
amanhã, quinta-feira. Ela e o noivo fazem muito gosto que você
apareça. Se o amigo não estiver comprometido com alguém, agarre o
violão e venha até cá tomar uma chávena de chá conosco - Seu amigo
Albernaz”.
O trovador, à proporção que lia, ia mudando de fisionomia. Até então
estava carregada e dura; quando acabou de ler o bilhete, um sorriso
brincava por toda ela, descia e subia, ia de uma face a outra. O
general não o abandonara; para o respeitável militar, Ricardo
Coração dos Outros ainda era o rei do violão. Iria e arranjaria
passagem com o antigo vizinho de Quaresma. Contemplou um pouco o
violão, demoradamente, ternamente, agradecidamente como se fosse um
ídolo benfazejo.
Quando Ricardo penetrou em casa do General Albernaz, o último brinde
havia sido levantado e todos se dirigiam para a sala de visitas em
pequenos grupos. Dona Maricota vestia seda malva e o seu busto curto
parecia ainda mais abafado, mais socado, naquele tecido caro que
parece requerer corpos elegantes e flexíveis. Quinota estava
radiante no vestido de noiva. Ela era alta, de feições mais
regulares que a irmã Ismênia, mas menos interessante e mais comum de
temperamento e alma, embora faceira. Lalá, a terceira filha do
general, que já se ajeitava a moça, tinha muito pó-de-arroz, estava
sempre a concertar o penteado e o sorrir para o Tenente Fontes. Um
casamento bem cotado e esperado. Genelício dava o braço à noiva,
encasacado numa casaca mal talhada, que punha bem à mostra a sua
gibosidade, e caminhava todo atrapalhado nos apertados sapatos de
.
Ricardo não os viu passar, pois ao entrar, a fila estava no general,
metido num segundo uniforme dos grandes dias, que lhe ia mal como a
farda de um guarda-nacional endomingado; mas, quem tinha um ar
importante, marcial e navegado, ao mesmo tempo palaciano, era o
Contra-Almirante Caldas. Fora padrinho e estava irrepreensível na
sua casaca do uniforme. As âncoras reluziam como metais de bordo em
hora de revista e os seus favoritos, muito penteados, alargavam a
sua face e pareciam desejar com ardor os grandes ventos do vasto
oceano sem fim. Ismênia estava de rosa e andava pelas salas com o
seu ar dolente, com o seu vagar, com os seus gestos lentos, dando
providências. O Lulu, o único filho do general, impava no seu
uniforme do Colégio Militar, cheio de dourados e cabelos, tanto mais
que passara de ano, graças aos empenhos do pai.
O general não tardou em vir falar com Ricardo; e os noivos, quando o
trovador os cumprimentou, agradeceram-lhe muito, e até Quinota disse
um - “sou muito feliz...” - deitando a cabeça de lado e sorrindo
para o chão, sorriso que encheu de imenso transporte a cândida alma
do menestrel.
Deram começo às danças e o general, o almirante, o Major Inocêncio
Bustamante, que também viera de uniforme, com a sua banda roxa de
honorário, o doutor Florêncio, Ricardo e dois convidados outros
foram para a sala de jantar palestrar um pouco.
O general estava satisfeito. Sonhava há tantos anos uma cerimônia
daquelas em sua casa e enfim pela primeira vez via realizado esse anseio.
A Ismênia foi aquela desgraça... O ingrato!... Mas para que recordar?
Os cumprimentos se repetiram.
- É um rapagão, o seu novo genro, disse um dos convidados novos.
O general tirou o pince-nez que era preso por um trancelim de ouro,
e enquanto o limpava, respondeu, olhando com aquele jeito dos
míopes:
- Estou muito contente.
Por aí pôs o pince-nez, endireitou o trancelim e continuou:
- Creio que casei bem minha filha; rapaz formado, bem encaminhado e
inteligente.
O almirante acudiu:
- E que carreira! Não é por ser meu parente, mas com trinta e dois
anos primeiro escriturário do Tesouro, é coisa nunca vista.
- O Genelício não está no Tribunal de Contas, não passou? perguntou
Florêncio.
- Passou, mas é a mesma coisa, replicou o outro convidado novo, que
era da amizade do recém-casado.
De fato, Genelício tinha arranjado a transferência e não fora só
isso que o decidira a casar-se. Tendo escrito uma - Síntese de
Contabilidade Pública Científica - viu-se, sem saber como, cumulado
de elogios pela “imprensa desta capital.” O ministro, atendendo ao
mérito excepcional da obra, mandou-lhe dar dois contos de prêmio,
tendo sido a edição feita à custa do Estado, na Imprensa Nacional.
Era um grosso volume de quatrocentas páginas, tipo doze, escrito em
estilo de ofício, com uma basta documentação de decretos e
portarias, ocupando dois terços do livro.
A primeira frase da primeira parte, o quinhão do livro
verdadeiramente sintético e científico, fora até muito notada e
gabada pelos críticos, não só pela novidade da idéia, como também
pela beleza da expressão.
Dizia assim: “A Contabilidade Pública é a arte ou ciência de
escriturar convenientemente a despesa e receita do Estado”.
Além do prêmio e da transferência, ele já tinha promessa de ser
subdiretor na primeira vaga.
Ouvindo tudo isso que tinham dito o almirante, o general e os
convidados novos, o major não pôde deixar de observar:
- Depois da militar, a melhor carreira é a de Fazenda, não acham?
- Sim... Bem entendido, fez o doutor Florêncio.
- Eu não quero falar dos formados, apressou-se o major. Esses...
Ricardo sentia-se na obrigação de dizer qualquer coisa e foi
soltando a primeira frase que lhe veio aos lábios:
- Quando se prospera, todas as profissões são boas.
- Não é tanto assim, obtemperou o almirante, alisando um dos
favoritos. Não é para desfazer nas outras, mas a nossa, hein
Albernaz? hein Inocêncio?
Albernaz levantou a cabeça como se quisesse apanhar no ar uma
lembrança e depois replicou:
- É, mas tem os seus percalços, Quando se está numa trapalhada,
fogo daqui, tiro dali, morre um, grita outro como em Curupaiti,
então...
- O senhor esteve lá, general? perguntou o convidado amigo de
Genelício.
- Não estive, Adoeci e vim para o Brasil. Mas o Camisão... Não
imaginam o que foi - você sabe, não é Inocêncio?
- Se estive lá...
- Polidoro tinha ordem de atacar Sauce, Flores à esquerda e “nós”
caímos sobre os paraguaios. Mas os malandros estavam bem
entrincheirados, tinham aproveitado o tempo.
- Foi “Seu” Mitre, disse Inocêncio.
- Foi. Atacamos com fúria. Era um ribombar de canhões que metia
medo, bala por todo canto, os homens morriam como moscas... Um o!
- Quem venceu? perguntou um dos convidados novos.
Todos se entreolharam admirados, exceto o general que julgava a
sabedoria do Paraguai excepcional.
- Foram os paraguaios, isto é, repeliram o nosso ataque. É por isso
que eu digo que a nossa profissão é bela, mas tem as suas “coisas””.
- Isso não quer dizer nada, Também na passagem de Humaitá... ia
dizendo o almirante.
- O senhor estava a bordo?
- Não, eu fui mais tarde. Perseguições fizeram com que eu não fosse
designado, porque o embarque equivalia a uma promoção... Mas, na
passagem de Humaitá...
Na sala de visitas as danças continuavam com animação. Era raro que
alguém viesse lá de dentro até onde eles estavam. Os risos, a
música, e o mais que se adivinhava não distraíam aqueles homens das
suas preocupações belicosas.
O general, o almirante e o major enchiam de pasmo aqueles burgueses
pacíficos, contando batalhas em que não estiveram e pugnas valorosas
que não pelejaram.
Não há como um cidadão pacato, bem comido, tendo tomado alguns
vinhos generosos, para apreciar as narrações de guerra. Ele só vê a
parte pitoresca, a parte por assim dizer espiritual das batalhas,
dos encontros; os tiros são os de salva e se matam é coisa de
somenos. A Morte mesmo, nas narrações feitas assim, perde a sua
importância trágica: três mil mortos, só!!!
De resto, contadas pelo General Albernaz, que nunca tinha visto a
guerra, a coisa ficava edulcorada, uma guerra bibliothèque rose,
guerra de estampa popular, em que não aparecem a carniçaria, a
brutalidade e a ferocidade normais.
Estavam Ricardo, o doutor Florêncio, o exato empregado como
engenheiro das águas, aqueles dois recentes conhecimentos de
Albernaz, embevecidos, boquiabertos e invejosos diante das proezas
imaginárias daqueles três militares, um honorário, talvez o menos
pacífico dos três, o único que tivesse mesmo tomado parte em alguma
coisa guerreira - quando Dona Maricota chegou, sempre diligente,
altiva, dando movimento e vida à festa. Era mais moça que o marido,
tinha ainda inteiramente pretos os cabelos na sua cabeça pequena,
que contrastava tanto com o seu corpo enorme. Ela vinha ofegante e
dirigiu-se ao marido:
- Então, Chico, que é isso? Ficam ai e eu que faça sala, que anime
as moças... Pra sala todos!
- Já vamos, Dona Maricota, disse alguém.
- Não, fez com rapidez a dona da casa, é já. Vamos, “Seu” Caldas,
“Seu” Ricardo, os senhores!
E foi empurrando um a um pelo ombro.
- Depressa, depressa, que a filha do Lemos vai cantar; e depois é o
senhor... Está ouvindo, “Seu” Ricardo!
- Pois não, minha senhora. É uma ordem...
E foram. No caminho o general parou um pouco, chegou-se a Coração
dos Outros e perguntou:
- Diga-me uma coisa: como vai o nosso amigo Quaresma?
- Vai bem.
- Tem-lhe escrito?
- Às vezes. Eu queria, general...
O general suspendeu a cabeça, levantou um pouco o pince-nez que
começava a cair, e perguntou:
- O quê?
Ricardo ficou intimidado com o ar marcial com que Albernaz lhe fez a
pergunta. Depois de uma ligeira hesitação, respondeu de um jato, com
medo de perder as palavras.
- Eu queria que o senhor me arranjasse uma passagem, um passe, para
ir vê-lo.
O general esteve uns instantes de cabeça baixa, coçou o cabelo e
disse:
- Isso é difícil, mas você apareça lá, na repartição, amanhã.
E continuaram a andar. Ainda andando, Coração dos Outros
acrescentou:
- Estou com saudades dele, depois tenho certos desgostos... O
senhor sabe: um homem que tem nome...
- Vá lá amanhã.
Dona Maricota apareceu na frente e falou agastada:
- Vocês não vêm!
- Já vamos, fez o general.
E depois, dirigindo-se a Ricardo, ajuntou:
- Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi meter-se com livros... É
isto! Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro...
Chegaram à sala. Era vasta. Tinha dois grandes retratos em pesadas
molduras douradas, furiosos retratos a óleo de Albernaz e da mulher;
um espelho oval e alguns quadrinhos, e a decoração estava completa.
Da mobília não se pode julgar, tinha sido retirada, para dar mais
espaço aos dançantes. A noiva e o noivo estavam no sofá sentados a
presidir a festa. Havia um ou outro decote, poucas casacas, algumas
sobrecasacas e muitos fraques. Por entre as cortinas de uma janela,
Ricardo pôde ver a rua. A calçada defronte estava cheia. A casa era
alta e tinha jardim; só de lá os curiosos, os “serenos”, podiam ver
alguma coisa da festa. Lalá, no vão de uma sacada, conversava com o
Tenente Fontes. O general contemplou-os e abençoou-os com um olhar
aprovador...
A moça, a famosa filha do Lemos, dispôs-se a cantar. Foi ao piano,
colocou a partitura e começou. Era uma romanza italiana que ela
cantou com a perfeição e o mau gosto de uma moça bem-educada.
Acabou. Palmas gerais, mas frias, soaram.
O doutor Florêncio que ficara atrás do general, comentou:
- Tem uma bela voz esta moça. Quem é?
- É a filha do Lemos, o doutor Lemos da Higiene, respondeu o
general.
- Canta muito bem.
- Está no último ano do conservatório, observou ainda Albernaz.
Chegou a vez de Ricardo. Ele ocupou um canto da sala, agarrou o
violão, afinou-o, correu a escala; em seguida, tomou o ar trágico de
quem vai representar o Édipo-Rei e falou com voz grossa:
“Senhoritas, senhores e senhoras”. Concertou a voz e continuou: “Vou
cantar ‘Os teus braços’, modinha de minha composição, música e
versos. É uma composição terna, decente e de uma poesia exaltada”.
Seus olhos, por aí, quase lhe saíam das órbitas. Emendou: “Espero
que nenhum ruído se ouça, porque senão a inspiração se evola. É o
violão instrumento muito... mui... to ‘dê-li-cádo’. Bem”.
A atenção era geral. Deu começo. Principiou brando, gemebundo, macio
e longo, como um soluço de onda; depois, houve uma parte rápida,
saltitante, em que o violão estalava. Alternando um andamento e
outro, a modinha acabou.
Aquilo tinha ido ao fundo de todos, tinha acudido ao sonho das moças
e aos desejos dos homens. As palmas foram ininterruptas. O general
abraçou-o, Genelicio levantou-se e deu-lhe a mão, Quinota, no seu
imaculado vestido de noiva, também.
Para fugir aos cumprimentos, Ricardo correu à sala de jantar. No
corredor chamavam-no: “Senhor Ricardo, Senhor Ricardo!” Voltou-se.
“Que ordena minha senhora?” Era uma moça que lhe pedia uma cópia da
modinha.
- Não se esqueça, dizia ela com meiguice, não se esqueça. Gosto
tanto das suas modinhas... São tão ternas, tão delicadas... Olhe: dê
aqui a Ismênia para me entregar.
A noiva de Cavalcânti aproximava-se e, ouvindo falar em seu nome,
perguntou:
- Que é, Dulce?
A outra explicou-lhe. Ela aceitou a incumbência e, por sua vez,
perguntou a Ricardo com a sua voz dolente:
- “Seu” Ricardo, quando é que o senhor pretende estar com Dona
Adelaide?
- Depois de amanhã, espero eu.
- Vai lá?
- Vou.
- Pois então diga-lhe que me escreva. Eu queria tanto receber uma
carta...
E limpou os olhos furtivamente, com o seu pequenino lenço rendado.
III
GOLIAS
No sábado da semana seguinte àquela em que a filha do general
recebera como marido o grave e giboso Genelício, glória e orgulho do
nosso funcionalismo público, Olga casara-se. A cerimônia correra com
a pompa e a riqueza acostumada em pessoas de sua camada. Houve uns
arremedos parisienses de corbeille de noiva e outros pequenos
detalhes chics, que não a aborreceram, mas que não a encheram lá de
satisfação maior que as noivas comuns. Talvez nem mesmo essa ela
tivesse.
Não foi para a igreja em virtude de uma determinação certa de sua
vontade. Continuava a não encontrar dentro de si motivo para aquele
ato, mas, aparentemente, nenhuma vontade estranha à sua influíra
para isso. O marido é que estava contente. Não seria muito com a
noiva, mas com a volta que a sua vida ia tomar. Ficando rico e sendo
médico, cheio de talento nas notas e recompensas escolares, via
diante de si uma larga estrada de triunfos nas posições e na
indústria clínica. Não tinha fortuna alguma, mas julgava o seu banal
título um foral de nobreza, equivalente àqueles com que os
autênticos fidalgos da Europa brunem o nascimento das filhas dos
salchicheiros yankees. Apesar de ser seu pai um importante
fazendeiro por aí, em algum lugar deste Brasil, o sogro lhe dera
tudo e tudo ele aceitara sem pejo, com o desprezo de um duque, duque
de plenamentes e medalhas, a receber homenagens de um vilão que não
roçou os bancos de uma “academia”.
Julgava que a noiva o aceitara pelo seu maravilhoso título, o
pergaminho; é verdade que foi, não tanto pelo título, mas pela sua
simulação de inteligência, de amor à ciência, de desmedidos sonhos
de sábio. Tal imagem que dele fizera, durara instantes em Olga;
depois foi a inércia da sociedade, a sua tirania e a timidez natural
da moça em romper que a levaram ao casamento. Tanto mais que ela, de
si para si, pensava que se não fosse este, seria outro a ele igual,
e o melhor era não adiar.
Era por isso que ela não ia para a igreja, em virtude de uma
determinação certa de sua vontade, embora sem perceber o
constrangimento de um comando fora dela.
Apesar da pompa, esteve longe de ser uma noiva majestosa. Não
obstante as origens puramente européias, era pequena, muito mesmo,
ao lado do noivo, alto, ereto, com uma fisionomia irradiante de
felicidade; e, desse modo, ela desaparecia dentro do vestido, dos
véus e daqueles atavios obsoletos com que se arreiam as moças que se
vão casar. De resto, a sua beleza não era a grande beleza - aquela
que nós exigimos das noivas ricas, segundo o modelo das estampas
clássicas.
No seu rosto, nada de grego, desse grego autêntico ou de pacotilha,
ou também dessa majestade de ópera lírica. Havia nos seus traços
muita irregularidade, mas a sua fisionomia era profunda e própria.
Não só a luz dos seus grandes olhos negros, que quase cobriam toda a
cavidade orbitária, fazia fulgurar o seu rosto móbil, como a sua
pequena boca, de um desenho fino, exprimia bondade, malícia e o seu
ar geral era de reflexão e curiosidade.
Ao contrário do costume, não saíram da cidade e foram morar em casa
do antigo empreiteiro.
Quaresma não fora à festa, mandara o leitão e o peru da tradição e
escrevera uma longa carta. O sítio empolgara-o, o calor ia passar,
vinha a época das chuvas, das semeaduras, e não queria afastar-se de
suas terras. A viagem seria breve, mas mesmo assim, perdendo um dia
ou dois, era como se começasse a desertar da batalha.
O pomar estava todo limpo e já estavam preparados os canteiros da
horta. A visita de Ricardo veio distraí-lo um pouco, sem desviá-lo
contudo, dos seus afazeres agrícolas.
Passou um mês com o major, e foi um triunfo. A fama do seu nome
precedia-o, de forma que todo o município o disputava e festejava.
O seu primeiro trabalho foi ir à vila. Ficava a quatro quilômetros
adiante da casa de Quaresma e a estrada de ferro tinha uma estação
lá. Ricardo dispensou a estrada e foi a pé, pela estrada de rodagem,
se assim se pode chamar um trilho, cheio de caldeirões, que subia e
descia morros, cortava planícies e rios em toscas pontes. A vila!...
Tinha duas ruas principais: a antiga, determinada pelo velho caminho
de tropas, e a nova, cuja origem veio da ligação da velha com a
estrada de ferro. Elas se encontravam em T, sendo o braço vertical o
caminho da estação. As outras partiam delas, as casas juntavam-se
urbanamente no começo, depois iam espaçando, espaçando, até acabar
em mato, em campo. A antiga chamava-se Marechal Deodoro,
ex-Imperador; e a nova, Marechal Floriano, ex-Imperatriz. De uma das
extremidades da Rua Marechal Deodoro, partia a da Matriz, que ia ter
à igreja, ao alto de uma colina, feia e pobre no seu estilo
jesuítico. À esquerda da estação, num campo, a Praça da República, a
que ia dar uma rua mal esboçada por espaçadas casas, ficava a Câmara
Municipal.
Era um grande paralelepípedo de tijolo, cimalha, janela com sacadas
de grade de ferro, puro estilo mestre-de-obras. Compungia essa
pobreza de gosto a quem se lembrasse dos edifícios da mesma natureza
das pequenas comunas francesas e belgas da Idade Média.
Ricardo entrou num barbeiro da Rua Marechal Deodoro, Salão Rio de
Janeiro, e fez a barba. O fígaro deu-lhe informações sobre a vila e
ele se deu a conhecer. Havia certos circunstantes, um deles tomou-o
a seu cargo e daí em pouco estava relacionado.
Quando voltou para a casa do major já tinha convite para o baile do
doutor Campos, presidente da Câmara, festa que teria lugar na
quarta- feira próxima.
Chegara sábado e fora passear à vila domingo.
Tinha havido missa e o trovador assistiu a saída. A concorrência
nunca é grande na roça, mas Ricardo pôde ver algumas daquelas moças
do interior, linfáticas e tristes, ataviadinhas, cheias de laços,
descendo silenciosas a colina em que se erguia a igreja,
espalhando-se pela rua e logo entrando para as casas, onde iriam
passar uma semana de reclusão e tédio. Foi na saída da missa que lhe
apresentaram o doutor Campos.
Era o médico do lugar, morava, porém, fora, na sua fazenda, e viera
de “aranha”” com a sua filha, Nair, assistir o ofício religioso.
O trovador e o médico estiveram um instante conversando, enquanto a
filha, muito magra, pálida, com uns longos braços descarnados,
olhava com um vexame fingido o solo poeirento da rua. Quando eles
partiram, ainda Ricardo considerou um pouco aquele rebento dos ares
livres do Brasil.
À festa do doutor Campos, seguiram-se outras a que Ricardo deu a
honra de sua presença e alegria da sua voz. Quaresma não o
acompanhava, mas gozava a sua vitória. Se bem que o major tivesse
abandonado o violão, ainda continuava a prezar aquele instrumento
essencialmente nacional. As conseqüências desastrosas do seu
requerimento em nada tinham abalado as suas convicções patrióticas.
Continuavam as suas idéias profundamente arraigadas, tão-somente ele
as escondia, para não sofrer com a incompreensão e maldade dos
homens.
Gozava, portanto a fulminante vitória de Ricardo, que indicava bem
naquela população a existência de um resíduo forte da nossa
nacionalidade a resistir às invasões das modas e gostos
estrangeiros.
Ricardo recebia todas as honras, todos os favores, por parte de
todos os partidos. O doutor Campos, presidente da Câmara, era quem
mais o cumulava de homenagens. Naquela manhã até esperava um dos
cavalos do edil, para dar um passeio ao Carico; e, esperando, foi
dizendo a Quaresma, que ainda não tinha partido para o eito:
- Major, foi uma boa idéia vir para a roça. Vive-se bem e pode-se
subir...
- Não tenho nenhum desejo disso. Você sabe como me são estranhas
todas essas coisas.
- Sei... É... Não digo que se peça, mas, quando nos oferecem, não
devemos rejeitar, não acha?
- Conforme, meu caro Ricardo. Eu não podia aceitar encargo de
comandar uma esquadra.
- Até aí não vou. Olhe, major: eu gosto muito de violão, mesmo
dedico a minha vida ao seu levantamento moral e intelectual,
entretanto, se amanhã o presidente dissesse: “Seu Ricardo, você vai
ser deputado”, o senhor pensa que eu não aceitava, sabendo
perfeitamente que não podia mais desferir os trenos do instrumento?
Ora se não! Não se deve perder vaza, major.
- Cada um tem as suas teorias.
- Decerto. Outra coisa, major: conhece o doutor Campos?
- De nome.
- Sabe que ele é presidente da Câmara?
Quaresma olhou um instante para Ricardo com uma ligeira
desconfiança. O menestrel não notou o gesto do amigo e emendou:
- Mora daqui a uma légua. Já lhe toquei em casa e hoje vou a cavalo
passear com ele.
- Fazes bem.
- Ele quer conhecê-lo. Posso trazê-lo aqui?
- Podes.
Um camarada do doutor Campos, neste instante, entrava pela porteira
trazendo o cavalo prometido. Ricardo montou e Quaresma seguiu para a
roça ao encontro dos seus dois empregados. Eram agora dois, pois,
além do Anastácio, que não era bem um empregado, mas agregado,
admitira o Felizardo.
Era manhã de verão, mas as chuvas continuadas dos dias anteriores
tinham atenuado a temperatura.
Havia uma grande profusão de luz e os ares estavam doces. Quaresma
foi caminhando por entre aquele rumor de vida, rumor que vinha do
farfalhar do mato e do piar das aves e pássaros. Esvoaçavam tiês
vermelhos, bandos de coleiros; anuns voavam e punham pequenas
manchas negras no verdor das árvores. Até as flores, essas tristes
flores dos nossos campos, no momento, parece que tinham saído à luz,
não somente para a fecundação vegetal mas também para a beleza.
Quaresma e seus empregados trabalhavam agora longe, faziam um
roçado, e fora para auxiliar esse serviço que contratou o Felizardo.
Era este um camarada magro, alto, de longos braços, longas pernas,
como um símio. Tinha a face cor de cobre, a barba rala e, sob uma
aparência de fraqueza muscular, não havia ninguém mais valente que
ele a roçar. Com isto era um tagarela incansável. De manhã, quando
chegava, aí pelas seis horas, já sabia todas as intriguinhas do
município.
O roçado tinha por fim ganhar terreno ao mato, no lado do norte do
sítio, que o capão invadira. Obtido ele, o major plantaria obra de
meio alqueire ou pouco mais de milho, e nos intervalos batatas
inglesas, cultura nova em que depositava grandes esperanças. Já se
fizera a derrubada e o aceiro estava aberto; Quaresma, porém, não
lhe quisera atear fogo. Evitava assim calcinar o terreno, eliminando
dele os princípios voláteis ao fogo. Agora o seu trabalho era
separar os paus mais grossos, para aproveitar como lenha; os galhos
miúdos e folhas, ele removia para longe, onde então queimaria em
coivaras pequenas.
Isso levava tempo, custava tombos ao seu corpo mal habituado aos
cipós e tocos; mas prometia dar um rendimento maior ao plantio.
Durante o trabalho, Felizardo ia contando as suas novidades para se
distrair. Há quem cante, ele falava e pouco se incomodava que lhe
dessem ou não atenção.
- Essa gente anda acesa por aí, disse Felizardo logo que o major
chegou.
Certas vezes Quaresma fazia-lhe perguntas, atendia-lhe a conversa,
raras não. Anastácio era silencioso e grave. Nada dizia: trabalhava
e, de quando em quando, parava, considerava, numa postura hierática
de uma pintura mural tebana. O major perguntou ao Felizardo:
- Que é que há, Felizardo?
O camarada descansou o grosso tronco de camará no monte, limpou o
suor com os dedos e respondeu com a sua fala branda e chiante:
- Negócio de política... “Seu” Tenente Antonino quase briga ontem
com “Seu dotô Campo”.
- Onde?
- Na estação.
- Por quê?
- Negócio de partido. Pelo que ouvi: “Seu” Tenente Antonino é pelo
“governadô” e “Seu dotô Campo” é pelo “senadô”... Um “sarcero”,
patrão!
- E você, por quem é?
Felizardo não respondeu logo. Apanhou a foice e acabou de cortar um
galho que enleava o tronco a remover. Anastácio estava de pé e
considerou um instante a figura do companheiro palrador. Respondeu
afinal:
- Eu! Sei lá... Urubu pelado não se mete no meio dos coroados. Isso
é bom pro “sinhô”.
- Eu sou como você, Felizardo.
- Quem me dera, meu “sinhô”. Inda “trasantonte” ouvi “dizê” que o
patrão é amigo do “marechá”.
Afastou-se com o pau; e, quando voltou Quaresma indagou assustado:
- Quem disse?
- Não sei, não “sinhô”. Ouvi a modo de “dizê” lá na venda do
espanhol, tanto assim que “dotô Campo tá” inchado que nem sapo com a
sua amizade.
- Mas é falso, Felizardo. Eu não sou amigo coisa alguma...
Conheci-o... E nunca disse isso aqui a ninguém... Qual amigo!
- “Quá!” fez Felizardo com um riso largo e duro. O patrão “tá” é
varrendo a testada.
Apesar de todo o esforço de Quaresma, não houve meio de tirar
daquela cabeça infantil a idéia de que ele fosse amigo do Marechal
Floriano. “Conheci-o no meu emprego” - dizia o major; Felizardo
sorria grosso e por uma vez dizia: “ ‘Quá!’ o patrão é fino que nem cobra”.
Tal teimosia não deixou de impressionar Quaresma. Que queria dizer
aquilo? Demais, as palavras de Ricardo, as suas insinuações pela
manhã... Ele tinha o trovador em conta de homem leal e amigo fiel,
incapaz de lhe estar armando laços para passar maus momentos; os
entusiasmos dele, entretanto, junto à vontade de ser bom amigo,
podiam iludi-lo e fazê-lo instrumento de algum perverso. Quaresma
ficou um instante pensativo, deixando de remover os galhos cortados;
em breve, porém, esqueceu-se e a preocupação dissipou-se. À tarde,
quando foi jantar, já nem mais se lembrava da conversa e a refeição
correu natural, nem muito alegre, nem muito triste, mas sem sombra
alguma de cogitações por parte dele.
Dona Adelaide, sempre com a sua matinée creme e saia preta,
sentava-se à cabeceira; Quaresma à direita e à esquerda, Ricardo.
Era a velha quem sempre puxava a língua do trovador.
- Gostou muito do passeio, Senhor Ricardo?
Não havia meio dela dizer “seu”. A sua educação de “senhora” de
outros tempos, não lhe permitia usar esse plebeísmo generalizado.
Vira os pais, gente ainda fortemente portugueses, dizerem “senhor” e
continuava a dizer, sem fingimento, naturalmente.
- Muito. Que lugar! Uma catadupa... Que maravilha! Aqui, na roça, é
que se tem inspiração.
E ele tomava aquela atitude de arroubo: uma fisionomia de máscara de
trágico grego e uma voz cavernosa que rolava como uma trovoada
abafada.
- Tens composto muito, Ricardo? indagou Quaresma.
- Hoje acabei uma modinha.
- Como se chama? indagou Dona Adelaide.
- “Os Lábios da Carola”.
- Bonito! Já fez a música?
Era ainda a irmã de Quaresma a perguntar, Ricardo levava agora o
garfo à boca; deixou-o suspenso entre os lábios e o prato e
respondeu com toda a convicção:
- A música, minha senhora, é a primeira coisa que faço.
- Hás de no-la cantar logo.
- Pois não, major.
Após o jantar, Quaresma e Coração dos Outros saíram a passear no
sítio. Fora essa a única concessão que ao amigo fizera Policarpo, no
tocante ao regime de seus trabalhos agrícolas. Levava sempre o
pedaço de pão, que esfarelava em migalhas no galinheiro, para ver a
atroz disputa entre as aves. Acabando, ficava um instante a
considerar aquelas vidas, criadas, mantidas e protegidas para
sustento da sua. Sorria para os frangos, agarrava os pintinhos,
ainda implumes, muito vivos e ávidos, e demorava- se a apreciar a
estupidez do peru, imponente, fazendo roda, a dar estouros
presunçosos. Em seguida ia ao chiqueiro; assistia Anastácio dar a
ração, despejando-a nos cochos. O enorme cevado de grandes orelhas
pendentes levantava-se dificilmente, e solenemente vinha mergulhar a
cabeça na caldeira; noutro compartimento os bacorinhos grunhiam e
grunhindo vinham com a mãe chafurdar-se na comida.
A avidez daqueles animais era deveras repugnante, mas os seus olhos
tinham uma longa doçura bem humana que os fazia simpáticos.
Ricardo apreciava pouco aquelas formas inferiores de vida, mas
Quaresma ficava minutos esquecido a contemplá-las numa demorada
interrogação muda. Sentavam-se a um tronco de árvore, e Quaresma
olhava o céu alto, enquanto Coração dos Outros contava qualquer
ia.
A tarde ia adiantada. A terra já começava a amolecer, pelo fim
daquele beijo ardente e demorado do sol. Os bambus suspiravam; as
cigarras ciciavam; as rolas gemiam amorosamente. Ouvindo passos, o
major voltou-se. Padrinho! Olga!
Mal se viram, abraçaram-se, e quando se separaram ficaram ainda a
olhar um para o outro, com as mãos presas. E vieram aquelas
estúpidas e tocantes frases dos encontros satisfeitos: Quando
chegaste? Não esperava... É longe... Ricardo olhava embevecido com a
ternura dos dois; Anastácio tirara o chapéu e olhava a “sinhazinha”,
com o seu terno e vazio olhar de africano.
Passada a emoção, a moça se debruçou sobre o chiqueiro, depois
passou a vista pelos quatro pontos e Quaresma perguntou:
- Quedê teu marido?
- O doutor?... Está lá dentro.
O marido tinha resistido muito em acompanhá-la até ali. Não lhe
parecia bem aquela intimidade com um sujeito sem título, sem posição
brilhante e sem fortuna. Ele não compreendia como o seu sogro,
apesar de tudo um homem rico, de outra esfera, tinha podido manter e
estreitar relações com um pequeno empregado de uma repartição
secundária, e até fazê- lo seu compadre! Que o contrário se desse,
era justo; mas como estava a coisa parecia que abalava toda a
hierarquia da sociedade nacional. Mas, em definitivo, quando Dona
Adelaide o recebeu cheia de um imenso respeito, de uma particular
consideração, ele ficou desarmado e todas as suas pequenas vaidades
foram tocadas e satisfeitas.
Dona Adelaide, mulher velha, do tempo em que o Império armava essa
nobreza escolar, possuía em si uma particular reverência, um culto
pelo doutorado; e não lhe foi, pois, difícil demonstrá-lo quando se
viu diante do doutor Armando Borges, de cujas notas e prêmios ela
tinha exata notícia.
Quaresma mesmo recebeu-o com as maiores marcas de admiração e o
doutor, gozando aquele seu sobre-humano prestígio, ia conversando
pausadamente, sentenciosamente, dogmaticamente; e, à proporção que
conversava, talvez para que o efeito não se dissipasse, virava com a
mão direita o grande anelão “simbólico”, o talismã, que cobria a
falange do dedo indicador esquerdo, ao jeito de marquise.
Conversaram muito. O jovem par contou a agitação política do Rio, a
revolta da fortaleza de Santa Cruz; Dona Adelaide a epopéia da
mudança, móveis quebrados, objetos partidos. Pela meia-noite todos
foram dormir com uma alegria particular, enquanto os sapos
levantavam no riacho defronte o seu grave hino à transcendente
beleza do céu negro, profundo e estrelado.
Acordaram cedo. Quaresma não foi logo para o trabalho. Tomou café e
esteve conversando com o doutor. O correio chegou e trouxe-lhe um
jornal. Rasgou a cinta e leu o título. Era o O Município, órgão
local, hebdomadário, filiado ao partido situacionista. O doutor se
havia afastado; ele aproveitou a ocasião para ler o jornaleco. Pôs o
pince-nez, recostouse na cadeira de balanço e desdobrou o jornal.
Estava na varanda; o terral soprava nos bambus que se inclinavam
molemente. Começou a leitura. O artigo de fundo intitulava-se
“Intrusos” e consistia em uma tremenda descompostura aos não ascidos
no lugar que moravam nele - “verdadeiros estrangeiros que se vinham
intrometer na vida particular e política da família curuzuense,
perturbando-lhe a paz e a tranqüilidade”.
Que diabo queria dizer aquilo? Ia deitar fora o jornaleco, quando
lhe pareceu ler seu nome entre versos. Procurou o lugar e deu com
estas quadrinhas:
POLÍTICA DE CURUZU
Quaresma, meu bem, Quaresma!
Quaresma do coração!
Deixa as batatas em paz,
Deixa em paz o feijão.
Jeito não tens para isso
Quaresma, meu cocumbi!
Volta à mania antiga
De redigir em tupi.
OLHO VIVO.
O major ficou estuporado. Que vinha ser aquilo? Por quê? Quem era?
Não atinava, não achava o motivo e o fundo de semelhante ataque. A
irmã aproximara-se acompanhada da afilhada. Quaresma estendeu-lhe o
jornal com o braço tremendo: “Lê isto, Adelaide”.
A velha senhora viu logo a perturbação do irmão e leu com pressa e
solicitude. Ela tinha aquela ampla maternidade das solteironas; pois
parece que a falta de filhos reforça e alarga o interesse da mulher
pelas dores dos outros. Enquanto ela lia, Quaresma dizia: mas que
fiz eu? que tenho com política? E coçava os cabelos já bastante
encanecidos.
Dona Adelaide disse então docemente:
- Sossega, Policarpo. Por isso só?... Ora!
A afilhada leu também os versos e perguntou ao padrinho:
- O senhor se meteu algum dia nessa política daqui?
- Eu nunca!... Vou até declarar que...
- Está doido! exclamaram as duas mulheres a um tempo, ajuntando a
irmã:
- Isto seria uma covardia... Uma satisfação... Nunca!
O doutor e Ricardo chegavam de fora e encontraram os três nessas
considerações. Notaram a alteração de Quaresma. Estava pálido, tinha
os olhos úmidos e coçava sucessivamente a cabeça.
- Que há, major? indagou o troveiro.
As senhoras explicaram o caso e deram-lhe as quadrinhas a ler.
Ricardo depois contou o que ouvira na vila. Acreditavam todos que o
major viera para ali no intuito de fazer política, tanto assim que
dava esmolas, deixava o povo fazer lenha no seu mato, distribuía
remédios homeopáticos... O Antonino afirmara que havia de
desmascarar semelhante tartufo.
- E não desmentiste? perguntou Quaresma.
Ricardo afirmou que sim, mas o escrivão não quisera acreditar nele e
reiterara os seus propósitos de ataque.
O major ficou profundamente impressionado com tudo; mas, de acordo
com seu gênio, incubou nos primeiros tempos a impressão, e, enquanto
estiveram com ele os seus amigos, não demonstrou preocupação.
Olga e o marido passaram no “Sossego” cerca de quinze dias. O
marido, ao fim de uma semana, já parecia cansado. Os passeios não
eram muitos. Em geral, os nossos lugarejos são de uma grande pobreza
do pitoresco; há um ou dois lugares célebres, assim como na Europa
cada aldeia tem a sua curiosidade histórica.
Em Curuzu, o passeio afamado era o Carico, uma cachoeira distante
duas léguas da casa de Quaresma, para as bandas das montanhas que
lhe barravam o horizonte fronteiro. O doutor Campos já travara
relações com o major e, graças a ele, houve cavalos e silhão que
também permitissem à moça ir à cachoeira.
Foram de manhã, o presidente da Câmara, o doutor, sua mulher e a
filha de Campos. O lugar não era feio. Uma pequena cachoeira, de uns
quinze metros de altura, despenhava-se em três partes, pelo flanco
da montanha abaixo. A água estremecia na queda, como que se
enrodilhava e vinha pulverizar-se numa grande bacia de pedra,
mugindo e roncando. Havia muita verdura e como que toda a cascata
vivia sob uma abóbada de árvores. O sol coava-se dificilmente e
vinha faiscar sobre a água ou sobre as pedras em pequenas manchas,
redondas ou oblongas. Os periquitos, de um verde mais claro,
pousados nos galhos eram como as incrustações daquele salão
fantástico.
Olga pôde ver tudo isso bem à vontade, andando de um para outro
lado, porque a filha do presidente era de um silêncio de túmulo e o
pai desta tomava com o seu marido informações sobre novidades
medicinais: Como se cura hoje erisipela? Ainda se usa muito o
tártaro emético?
O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de
cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre.
Educada na cidade, ela tinha dos roceiros idéia de que eram felizes,
saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, por que as
casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquele
sapê sinistro e aquele “sopapo” que deixava ver a trama de varas,
como o esqueleto de um doente. Por que, ao redor dessas casas, não
havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho
de horas? E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma
cabra, um carneiro. Por quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não
era mais animador. Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente
e a horta suculenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ela
não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. Não podia ser
preguiça só ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o
homem tem sempre energia para trabalhar. As populações mais acusadas
de preguiça, trabalham relativamente. Na África, na Índia, na
Cochinchina, em toda parte, os casais, as famílias, as tribos,
plantam um pouco, algumas coisas para eles. Seria a terra? Que
seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu
desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles
párias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome,
sorumbáticos!...
Pensou em ser homem. Se o fosse passaria ali e em outras localidades
meses e anos, indagaria, observaria e com certeza havia de encontrar
o motivo e o remédio. Aquilo era uma situação do camponês da Idade
Média e começo da nossa: era o famoso animal de La Bruyère que tinha
face humana e voz articulada...
Como no dia seguinte fosse passear ao roçado do padrinho, aproveitou
a ocasião para interrogar a respeito o tagarela Felizardo. A faina
do roçado ia quase no fim; o grande trato da terra estava quase
inteiramente limpo e subia um pouco em ladeira a colina que formava
a lombada do sítio.
Olga encontrou o camarada cá embaixo, cortando a machado as madeiras
mais grossas; Anastácio estava no alto, na orla do mato, juntando, a
ancinho, as folhas caídas. Ela lhe falou.
- Bons dias, “sá dona”.
- Então trabalha-se muito, Felizardo?
- O que se pode.
- Estive ontem no Carico, bonito lugar... Onde é que você mora,
Felizardo?
- É doutra banda, na estrada da vila.
- É grande o sítio de você?
- Tem alguma terra, sim senhora, “sá dona”.
- Você por que não planta para você?
- “Quá sá dona!” O que é que a gente come?
- O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.
- “Sá dona tá” pensando uma coisa e a coisa é outra. Enquanto
planta cresce, e então? “Quá, sá dona”, não é assim.
Deu uma machadada; o tronco escapou: colocou-o melhor no picador e,
antes de desferir o machado, ainda disse:
- Terra não é nossa... E “frumiga”?... Nós não “tem” ferramenta...
isso é bom para italiano ou “alamão”, que governo dá tudo... Governo
não gosta de nós...
Desferiu o machado, firme, seguro; e o rugoso tronco se abriu em
duas partes, quase iguais, de um claro amarelado, onde o cerne
escuro começava a aparecer.
Ela voltou querendo afastar do espírito aquele desacordo que o
camarada indicara, mas não pôde. Era certo. Pela primeira vez notava
que o self-help do Governo era só para os nacionais; para os outros
todos os auxílios e facilidades, não contando com a sua anterior
educação e apoio dos patrícios.
E a terra não era dele? Mas de quem era então, tanta terra
abandonada que se encontrava por aí? Ela vira até fazendas fechadas,
com as casas em ruínas... Por que esse acaparamento, esses
latifúndios inúteis e improdutivos?
A fraqueza de atenção não lhe permitiu pensar mais no problema. Foi
vindo para casa, tanto mais que era hora de jantar e a fome lhe
chegava.
Encontrou o marido e o padrinho a conversar. Aquele perdera um pouco
da sua morgue, havia mesmo ocasião em que era até natural. Quando
ela chegou, o padrinho exclamava:
- Adubos! É lá possível que um brasileiro tenha tal idéia! Pois se
temos as terras mais férteis do mundo!
- Mas se esgotam, major, observou o doutor.
Dona Adelaide, calada, seguia com atenção o crochet que estava
fazendo; Ricardo ouvia, com os olhos arregalados; e Olga
intrometeu-se na conversa:
- Que zanga é essa, padrinho?
- É teu marido que quer convencer-me que as nossas terras precisam
de adubos... Isto é até uma injúria!
- Pois fique certo, major, se eu fosse o senhor, aduziu o doutor,
ensaiava uns fosfatos...
- Decerto, major, obtemperou Ricardo. Eu, quando comecei a tocar
violão, não queria aprender música... Qual música! Qual nada! A
inspiração basta!... Hoje vejo que é preciso... É assim, resumia
ele.
Todos se entreolharam, exceto Quaresma que logo disse com toda a
força d’alma:
- Senhor doutor, o Brasil é o país mais fértil do mundo, é o mais
bem dotado e as suas terras não precisam “empréstimos” para dar
sustento ao homem. Fique certo!
- Há mais férteis, avançou o doutor.
- Onde?
- Na Europa.
- Na Europa!
- Sim, na Europa. As terras negras da Rússia, por exemplo.
O major considerou o rapaz durante algum tempo e exclamou
triunfante:
- O senhor não é patriota! Esses moços...
O jantar correu mais calmo. Ricardo fez ainda algumas considerações
sobre o violão. À noite, o menestrel cantou a sua última produção:
“Os Lábios da Carola”. Suspeitava-se que Carola fosse uma criada do
doutor Campos; mas ninguém aludiu a isso, Ouviram-no com interesse e
ele foi muito aclamado. Olga tocou no velho piano de Dona Adelaide;
e, antes das onze horas, estavam todos recolhidos.
Quaresma chegou a seu quarto, despiu-se, enfiou a camisa de dormir
e, deitado, pôs-se a ler um velho elogio das riquezas e opulências
do Brasil.
A casa estava em silêncio; do lado de fora, não havia a mínima
bulha. Os sapos tinham suspendido um instante a sua orquestra
noturna. Quaresma lia; e lembrava-se que Darwin escutava com prazer
esse concerto dos charcos. Tudo na nossa terra é extraordinário!
pensou. Da despensa, que ficava junto a seu aposento, vinha um ruído
estranho. Apurou o ouvido e prestou atenção. Os sapos recomeçaram o
seu hino. Havia vozes baixas, outras mais altas e estridentes; uma
se seguia à outra, num dado instante todas se juntaram num unisono
sustentado. Suspenderam um instante a música. O major apurou o
ouvido; o ruído continuava, Que era? Eram uns estalos tênues;
parecia que quebravam gravetos, que deixavam outros cair no chão...
Os sapos recomeçaram; o regente deu uma martelada e logo vieram os
baixos e os tenores. Demoraram muito; Quaresma pôde ler umas cinco
páginas. Os batráquios pararam; a bulha continuava. O major
levantou-se, agarrou o castiçal e foi à dependência da casa donde
partia o ruído, assim mesmo como estava, em camisa de dormir.
Abriu a porta; nada viu. la procurar nos cantos, quando sentiu uma
ferroada no peito do pé. Quase gritou. Abaixou a vela para ver
melhor e deu com uma enorme saúva agarrada com toda a fúria à sua
pele magra. Descobriu a origem da bulha. Eram formigas que, por um
buraco no assoalho, lhe tinham invadido a despensa e carregavam as
suas reservas de milho e feijão, cujos recipientes tinham sido
deixados abertos por inadvertência. O chão estava negro, e
carregadas com os grãos, elas, em pelotões cerrados, mergulhavam no
solo em busca da sua cidade subterrânea.
Quis afugentá-las. Matou uma, duas, dez, vinte, cem; mas eram
milhares e cada vez mais o exército aumentava. Veio uma, mordeu-o,
depois outra, e o foram mordendo pelas pernas, pelos pés, subindo
pelo seu corpo. Não pôde agüentar, gritou, sapateou e deixou a vela
cair.
Estava no escuro. Debatia-se para encontrar a porta; achou e correu
daquele ínfimo inimigo que, talvez, nem mesmo à luz radiante do sol
o visse distintamente...
IV
“PEÇO ENERGIA, SIGO JÁ”
Dona Adelaide, a irmã de Quaresma, tinha uns quatro anos mais que
ele. Era uma bela velha, com um corpo médio, uma tez que começava a
adquirir aquela pátina da grande velhice, uma espessa cabeleira já
inteiramente amarelada e um olhar tranqüilo, calmo e doce. Fria, sem
imaginação, de inteligência lúcida e positiva, em tudo formava um
grande contraste com o irmão; contudo, nunca houve entre eles uma
separação profunda nem tampouco uma penetração perfeita. Ela não
entendia nem procurava entender a substância do irmão, e sobre ele
em nada reagia aquele ser metódico, ordenado e organizado, de idéias
simples, médias e claras.
Ela já atingira aos cinqüenta e ele para lá marchava; mas ambos
tinham ar saudável, poucos achaques, e prometiam ainda muita vida. A
existência calma, doce e regrada que tinham levado até ali,
concorrera muito para a boa saúde de ambos. Quaresma incubou as suas
manias até depois dos quarenta e ela nunca tivera qualquer.
Para Dona Adelaide, a vida era coisa simples, era viver, isto é, ter
uma casa, jantar e almoço, vestuário, tudo modesto, médio. Não tinha
ambições, paixões, desejos. Moça, não sonhara príncipes, belezas,
triunfos, nem mesmo um marido. Se não casou foi porque não sentiu
necessidade disso; o sexo não lhe pesava e de alma e corpo ela
sempre se sentiu completa.
O seu aspecto tranqüilo e o sossego dos seus olhos verdes, de um
brilho lunar de esmeralda, emolduravam e realçavam naquele interior
familiar a agitação e a inquietude, o alanceado do irmão.
Não se vá supor que Quaresma andasse transtornado como um doido.
Felizmente não. Na aparência até poder-se-ia imaginar que nada
conturbava sua alma; porém, se mais vagarosamente se examinassem os
seus hábitos, gestos e atitudes, logo se havia de ver que o sossego
e a placidez não moravam no seu pensamento.
Ocasiões havia em que ficava a olhar, durante minutos seguidos, ao
longe o horizonte, perdido em cisma; outras, isso quando no trabalho
da roça, em que suspendia todos os movimentos, fincava o olhar rio
chão, demorava-se assim um instante, coçando uma mão com a outra,
dava depois um muxoxo, continuava o trabalho; e mesmo momentos
surgiam em que não reprimia uma exclamação ou uma frase.
Anastácio em tais instantes, olhava por baixo dos olhos o patrão. O
antigo escravo não os sabia mais fixar, e nada dizia; Felizardo
continuava a contar a fuga da filha do Custódio com o Manduca da
venda; e o trabalho marchava.
Inútil dizer que a irmã não fazia reparo nisso, mesmo porque, a não
ser no jantar e nas primeiras horas do dia, eles viviam separados.
Quaresma na roça, nas plantações, e ela superintendendo o serviço
doméstico.
As outras pessoas de suas relações não podiam também notar as
preocupações absorventes do major, pelo simples motivo de que
estavam longe.
Ricardo havia seis meses que não lhe visitava e da afilhada e do
compadre as últimas cartas que recebera datavam de uma semana, não
vendo aquela há tanto tempo, quanto ao trovador, e aquele desde
quase um ano, isto é, o tempo em que estava no “Sossego”.
Durante esse tempo, Quaresma não cessou de se interessar pelo
aproveitamento de suas terras. Os seus hábitos não foram mudados e a
sua atividade continuava sempre a mesma. É verdade que deixara de
parte os instrumentos de meteorologia.
O higrômetro, o barômetro e os outros companheiros não eram mais
consultados e as observações registradas num caderno. Dera-se mal
com eles. Fosse inexperiência e ignorância das bases teóricas deles,
fosse porque fosse, o certo é que toda a previsão que Quaresma fazia
baseado em combinações dos seus dados, saíam erradas. Se esperava
tempo seguro, lá vinha chuva; se esperava chuva, lá vinha seca.
Assim perdeu muita semente e Felizardo mesmo sorria dos seus
aparelhos, com aquele grosso e cavernoso sorriso de troglodita:
- “Quá” patrão! Isso de chuva vem quando Deus “qué”.
O barômetro aneróide continuava a um canto a dançar o seu ponteiro
sem ser percebido; o termômetro de máxima e mínima, legítimo
Casella, jazia dependurado na varanda sem receber um olhar amigo; a
caçamba do pluviômetro estava no galinheiro e servia de bebedouro às
aves; só o anemômetro continuava teimosamente a rodar, a rodar, já
sem fio, no alto do mastro, como se protestasse contra aquele
desprezo pela ciência que Quaresma representava.
Quaresma vivia assim, sentindo que a campanha que lhe tinham movido,
embora tendo deixado de ser pública, lavrava ocultamente. Havia no
seu espírito e no seu caráter uma vontade de acabá-la de vez, mas
como? Se não o acusavam, se não articulavam nada contra ele
diretamente? Era um combate com sombras, com aparências, que seria
ridículo aceitar.
De resto, a situação geral que o cercava, aquela miséria da
população campestre que nunca suspeitara, aquele abandono de terras
à improdutividade, encaminhavam sua alma de patriota meditativo a
preocupações angustiosas.
Via o major com tristeza não existir naquela gente humilde
sentimento de solidariedade, de apoio mútuo. Não se associavam para
coisa alguma e viviam separados, isolados, em famílias geralmente
irregulares, sem sentir a necessidade de união para o trabalho da
terra. Entretanto, tinham bem perto o exemplo dos portugueses que,
unidos aos seis e mais, conseguiam em sociedade cultivar a arado
roças de certa importância, lucrar e viver. Mesmo o velho costume do
“moitirão” já se havia apagado.
Como remediar isso?
Quaresma desesperava...
A tal afirmação de falta de braços pareceu-lhe uma afirmação de
má-fé ou estúpida, e estúpido ou de má-fé era o Governo que os
andava importando aos milhares, sem se preocupar com os que já
existiam. Era como se no campo em que pastavam mal meia dúzia de
cabeças de gado, fossem introduzidas mais três, para aumentar o
estrume!...
Pelo seu caso, ele via bem as dificuldades, os óbices de toda sorte
que havia para fazer a terra produtiva e remunerada. Um fato veio
mostrar-lhe com eloqüência um dos aspectos da questão. Vencendo a
erva-de-passarinho, os maus-tratos e o abandono de tantos anos, os
abacateiros de suas terras conseguiram frutificar, fracamente é
verdade, mas de forma superior às necessidades de sua casa.
A sua alegria foi grande. Pela primeira vez, ia passar-lhe pelas
mãos dinheiro que lhe dava a terra, sempre mãe e sempre virgem.
Tratou de vender, mas como? a quem? No lugar havia um ou outro que
os queria comprar por preços ínfimos. Com decisão foi ao Rio
procurar comprador. Andou de porta em porta. Não queriam, eram
muitos. Ensinaram-lhe que procurasse um tal Senhor Azevedo no
Mercado, o rei das frutas. Lá foi.
- Abacates! Ora! Tenho muitos... Estão muito baratos!
- Entretanto, disse Quaresma, ainda hoje indaguei em uma
confeitaria e pediram-me pela dúzia cinco mil-réis.
- Em porção, o senhor sabe que... É isso... Enfim, se quer mande-os...
Depois, tilintou a pesada corrente de ouro, pôs uma das mãos na cava
do colete e quase de costas para o major:
- É preciso vê-los... O tamanho influi...
Quaresma os mandou e, quando lhe veio o dinheiro, teve a satisfação
orgulhosa de quem acaba de ganhar uma grande batalha imortal. Aca-
riciou uma por uma aquelas notas encardidas, leu-lhes bem o número e
a estampa, arrumou-as todas uma ao lado da outra sobre uma mesa e
muito tempo levou sem ânimo de trocá-las.
Para avaliar o lucro, descontou o frete, de estrada de ferro e
carroça, o custo dos caixões, o salário dos auxiliares e, após esse
cálculo que não era laborioso, teve a evidência de que ganhara mil e
quinhentos réis, nem mais nem menos. O Senhor Azevedo tinha-lhe pago
pelo cento a quantia com que se compra uma dúzia.
Assim mesmo o seu orgulho não diminuiu e ele viu naquele ridículo
lucro objeto para maior contentamento do que se recebesse um
avultado ordenado.
Foi, portanto, com redobrada atividade que se pôs ao trabalho. Para
o ano, o lucro seria maior. Tratava-se agora de limpar as fruteiras.
Anastácio e Felizardo continuavam ocupados nas grandes plantações;
contratou um outro empregado para ajudá-lo no tratamento das velhas
árvores frutíferas.
Foi, pois, com o Mané Candeeiro que ele se pôs a serrar os galhos
das árvores, os galhos mortos e aqueles em que a erva daninha
segurava as suas raízes. Era árduo e difícil o trabalho. Tinham às
vezes que subir às grimpas para a extirpação do galho atingido; os
espinhos rasgavam as roupas e feriam as carnes; e em muitas ocasiões
estiveram em risco de vir ao chão serrote e Quaresma ou o camarada.
Mané Candeeiro falava pouco, a não ser que se tratasse de coisas de
caça; mas cantava que nem passarinho. Estava a serrar, estava a
cantar trovas roceiras, ingênuas, onde com surpresa o major não via
entrar a fauna, a flora locais, os costumes das profissões roceiras.
Eram vaporosamente sensuais e muito ternas, melosas até; por acaso
lá vinha uma em que um pássaro local entrava; então o major
escutava:
Eu vou dar a despedida
Como deu o bacurau,
Uma perna no caminho
Outra no galho de pau.
Este bacurau que entrava aí satisfazia particularmente às aspirações
de Quaresma. A observação popular já começava a interessar-se pelo
espetáculo ambiente, já se emocionava com ele e a nossa raça
deitava, portanto, raízes na grande terra que habitava. Ele a copiou
e mandou ao velho poeta de São Cristóvão. Felizardo dizia que Mané
Candeeiro era um mentiroso, pois todas aquelas caçadas de caitetus,
jacus, onças eram patranhas; mas, respeitava o seu talento poético,
principalmente no desafio: o moleque é bom!
Ele era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e
fortes, um tanto amolecidas pelo sangue africano.
Quaresma procurou descobrir nele aquela odiosa catadura que Darwin
achou nos mestiços; mas, sinceramente, não a encontrou.
Com auxílio de Mané Candeeiro, foi que Quaresma conseguiu acabar de
limpar as fruteiras daquele velho sítio abandonado há quase dez
anos. Quando o serviço ficou pronto, ele viu com tristeza aquelas
velhas árvores amputadas, mutiladas, com folhas aqui e sem folhas
ali... Pareciam sofrer e ele se lembrou das mãos que as tinham
plantado há vinte ou trinta anos, escravos, talvez, banzeiros e
desesperançados!...
Mas não tardou que os botões rebentassem e tudo reverdecesse, e o
renascimento das árvores como que trouxe o contentamento das aves e
do passaredo solto. De manhã, esvoaçavam os tiês vermelhos, com o
seu pio pobre, espécie de ave tão inútil e tão bela de plumas que
parece ter nascido para os chapéus das damas; as rolas pardas e
caboclas em bando, mariscando, no chão capinado; pelo correr do dia,
eram os sanhaçus a cantar nos galhos altos, os papa-capins, as
nuvens de coleiros; e de tarde como que todos eles se reuniam,
piando, cantando, chilreando, pelas altas mangueiras, pelos
cajueiros, pelos abacateiros, entoando louvores ao trabalho tenaz e
fecundo do velho Major Quaresma.
Não durou muito essa alegria. Um inimigo apareceu inopinadamente,
com a rapidez ousadíssima de um general consumado. Até ali ele se
mostrara tímido, parecia que somente mandava esclarecedores.
Desde aquele ataque às provisões de Quaresma, logo afugentadas, não
mais as formigas reapareceram; mas, naquela manhã, quando contemplou
o seu milharal, foi como se lhe tirassem a alma, e ficou sem ação e
as lágrimas lhe vieram aos olhos.
O milho que já tinha repontado, muito verde, pequenino, com uma
timidez de criança, crescera cerca de meio palmo acima da terra; o
major até mandara buscar o sulfato de cobre para a solução em que ia
lavar a batata inglesa a plantar nos intervalos dos pés.
Toda a manhã, ele ia lá e já via o milharal crescido com o seu
pendão branco e as espigas de coma cor de vinho, oscilando ao vento;
naquela, ele não viu nada mais, Até os tenros colmos tinham sido
cortados e levados para longe! “A modo que é obra de gente” disse
Felizardo; entretanto, tinham sido as saúvas, os terríveis
himenópteros, piratas ínfimos que lhe caíam em cima do trabalho com
uma rapacidade turca... Era preciso combatê-los. Quaresma pôs-se
logo em campo, descobriu as aberturas principais do formigueiro e em
cada uma queimou o formicida mortal. Passaramse dias; os inimigos
pareciam derrotados; mas, certa noite, indo ao pomar para melhor
apreciar a noite estrelada, Quaresma ouviu uma bulha esquisita, como
se alguém esmagasse as folhas mortas das árvores... Um estalido... E
era perto... Acendeu um fósforo e o que viu, meu Deus! Quase todas
as laranjeiras estavam negras de imensas saúvas. Havia delas às
centenas, pelos troncos e pelos galhos acima e agitavam-se,
moviam-se, andavam como em ruas transitadas e vigiadas a população
de uma grande cidade: umas subiam, outras desciam; nada de
atropelos, de confusão, de desordem. O trabalho como que era
regulado a toques de corneta. Lá em cima umas cortavam as folhas
pelo pecíolo; cá embaixo, outras serravam-nas em pedaços e afinal
eram carregadas por terceiras, levantando-as acima da descomunal
cabeça, em longas fileiras pelo trilho limpo, aberto entre a erva
rasteira.
Houve um instante de desânimo na alma do major. Não tinha contado
com aquele obstáculo nem o supusera tão forte. Agora via bem que era
a uma sociedade inteligente, organizada, ousada e tenaz com quem se
tinha de haver. Veio-lhe então à lembrança aquela frase de
Saint-Hilaire. se nós não expulsássemos as formigas, elas nos
expulsariam.
O major não estava lembrado ao certo se eram essas as palavras, mas
o sentido era, e ficou admirado que só agora ela lhe ocorresse.
No dia seguinte, tinha recobrado o ânimo. Comprou ingredientes e
ei-lo mais o Mané Candeeiro, a abrir picadas, a fazer esforços de
sagacidade, para descobrir os redutos centrais, as “panelas” dos
insetos terríveis. Então era como se os bombardeassem; o sulfeto
queimava, estourava em tiros seguidos, mortíferos, letais!
E daí em diante, foi uma batalha sem tréguas. Se aparecia uma
abertura, um “olho”, logo se lhe aplicava o formicida, pois do
contrário, nenhuma plantação era possível, tanto mais que extintos
os das suas terras, não tardariam os formigueiros das vizinhanças ou
dos logradouros públicos a deitar canículos para o seu terreno.
Era um suplício, um castigo, uma espécie de vigilância a dique
holandês e Quaresma viu bem que só uma autoridade central, um
governo qualquer, ou um acordo entre os cultivadores, podia levar a
efeito a extinção daquele flagelo, pior que a saraiva, que a geada,
que a seca, sempre presente, inverno ou verão, outono ou primavera.
Não obstante essa luta diária, o major não desanimou e pôde colher
alguns produtos das plantações que tinha feito. Se por ocasião das
frutas, a sua alegria foi grande, mais expressiva e mais profunda
ela foi, quando viu partir para a estação em sucessivas carretas, as
abóboras, os aipins, as batatas-doces, em cestos cobertos com sacos
cosidos. Os frutos, em parte, eram de outras mãos; as árvores não
tinham sido plantadas por ele; mas aquilo não, vinha do seu suor, da
sua iniciativa, do seu trabalho!
Ele ainda foi ver aqueles cestos na estação, com a ternura de um pai
que vê partir seu filho para a glória e para a vitória. Recebeu o
dinheiro dias depois, contou-o e esteve deduzindo os lucros.
Não foi à roça nesse dia; o trabalho de guarda-livros roubou o de
cultivador. A sua atenção, já um tanto gasta, não lhe favorecia a
tarefa das cifras, e só pelo meio-dia pôde dizer à irmã:
- Sabes qual foi o lucro, Adelaide?
- Não. Menor do que o dos abacates?
- Um pouco mais.
- Então... Quanto?
- Dois mil quinhentos e setenta réis, respondeu Quaresma,
destacando sílaba por sílaba.
- O quê?
- Foi isso. Só de frete paguei cento e quarenta e dois mil e
quinhentos.
Dona Adelaide esteve algum tempo com os olhos baixos, seguindo a
costura que fazia, depois, levantando o olhar:
- Homem, Policarpo, o melhor é deixares isso... Tens gasto muito
dinheiro... Só com as formigas!
- Ora, Adelaide! Pensas que quero fazer fortuna? Faço isso para dar
exemplo, levantar a agricultura, aproveitar as nossas terras
feracíssimas...
- É isto... Queres sempre ser a abelha-mestra... Já viste os
grandes fazerem esses sacrifícios?... Vê lá se fazem! Histórias...
Metem-se no café que tem todas as proteções...
- Mas, faço eu.
A irmã prestou mais atenção à costura, Policarpo levantou-se, foi
até à janela que dava para o galinheiro. Fazia um dia fosco e
irritante. Ele concertou o pince-nez, esteve olhando e de lá falou:
- Oh! Adelaide! Aquilo não é uma galinha morta?
A velha senhora ergueu-se com a costura, foi até à janela e
verificou com a vista:
- É... É já a segunda que morre hoje.
Após esta leve conversa, Quaresma voltou à sua sala de estudos.
Meditava grandes reformas agrícolas. Mandara buscar catálogos e ia
examiná-los. Tinha já em mente uma charrua dupla, um capinador
mecânico, um semeador, um destocador, grades, tudo americano, de
aço, dando o rendimento efetivo de vinte homens. Até então, não
quisera essas inovações; as terras mais ricas do mundo, não
precisavam desses processos que lhe pareciam artificiais, para
produzir; estava, porém, agora disposto a empregá-los como
experiência. Aos adubos, no entanto, o seu espírito resistia. Terra
virada, dizia Felizardo, terra estrumada; parecia a Quaresma uma
profanação estar a empregar nitratos, fosfatos ou mesmo estrume
comum, numa terra brasileira... Uma injúria!
Quando se convencesse de que eram necessários, parecia-lhe que todo
o seu sistema de idéias ia por terra e os móveis de sua vida
desapareceriam. Estava assim a escolher arados e outros “Planets”,
“Bajacs” e “Brabants” de vários feitios, quando o seu pequeno
copeiro lhe anunciou a visita do doutor Campos.
O edil entrou com a sua jovialidade, a sua mansidão e o seu grande
corpo. Era alto e gordo, pançudo um pouco, tinha os olhos castanhos,
quase à flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz, malfeito. Um
tanto trigueiro, cabelos corridos e já grisalhos, era o que se chama
por ai um caboclo, embora o seu bigode fosse crespo. Não nascera em
Curuzu, era da Bahia ou de Sergipe, habitava, porém, o lugar há mais
de vinte anos, onde casara e prosperara, graças ao dote da mulher e
à sua atividade clínica. Com esta, não gastava grande energia
mental: tendo de cor uma meia dúzia de receitas, ele, desde muito,
conseguira enquadrar as moléstias locais no seu reduzido formulário.
Presidente da Câmara, era das pessoas mais consideráveis de Curuzu,
e Quaresma o estimava particularmente pela sua familiaridade, pela
sua afabilidade e simplicidade.
- Ora viva, major! Como vai isto por aí? Muita formiga? Lá em casa
já não há mais.
Quaresma respondeu com menos entusiasmo e jovialidade, mas contente
com a alegria comunicativa do doutor. Ele continuava a falar com
desembaraço e naturalidade.
- Sabe o que me traz aqui, major? Não sabe, não é? Preciso de um
pequeno obséquio seu.
O major não se espantou; simpatizava com o homem e abriu-se em
oferecimentos.
- Como o major sabe...
Agora a sua voz era doce, flexível, sutil; as palavras caíam-lhe da
boca adocicadas, dobravam-se, coleavam-se:
- Como o major sabe, as eleições se devem realizar por estes dias.
A vitória é “nossa”. Todas as mesas estão conosco, exceto uma... Aí
mesmo, se o major quiser...
- Mas, como? se eu não sou eleitor, não me meto, nem quero meter-me
em política? perguntou Quaresma ingenuamente.
- Exatamente por isso, disse o doutor com voz forte; e em seguida
brandamente: a seção funciona na sua vizinhança, é ali, na escola, se...
- E dai?
- Tenho aqui uma carta do Neves, dirigida ao senhor. Se o major
quer responder (é melhor já) que não houve eleição... Quer?
Quaresma olhou o doutor com firmeza, coçou um instante o cavanhaque
e respondeu claramente, firmemente:
- Absolutamente não.
O doutor não se zangou. Pôs mais unção e maciez na voz, aduziu
argumentos: que era para o partido, o único que pugnava pelo
levantamento da lavoura. Quaresma foi inflexível; disse que não, que
lhe eram absolutamente antipáticas tais disputas, que não tinha
partido e mesmo que tivesse não iria afirmar uma coisa que ele não
sabia ainda se era mentira ou verdade.
Campos não deu mostras de aborrecimento, conversou um pouco sobre
coisas banais e despediu-se com o ar amável, com a jovialidade mais
sua que era possível.
Isto se passou na terça-feira, naquele dia de luz fosca e irritante.
À tarde houve trovoada, choveu muito, O tempo só levantou na
quinta-feira, dia em que o major foi surpreendido com a visita de um
sujeito com um uniforme velho e lamentável, portador de um papel
oficial para ele, proprietário do “Sossego”, conforme mesmo disse o
tal homem fardado.
Em virtude das posturas e leis municipais, rezava o papel, o Senhor
Policarpo Quaresma, proprietário do sítio “Sossego” era intimado,
sob as penas das mesmas posturas e leis, a roçar e capinar as
testadas do referido sítio que confrontavam com as vias públicas.
O major ficou um tempo pensando. Julgava impossível uma tal
intimação. Seria mesmo? Brincadeira... Leu de novo o papel, viu a
assinatura do doutor Campos. Era certo... Mas que absurda intimação
esta de capinar e limpar estradas na extensão de mil e duzentos
metros, pois seu sítio dava de frente para um caminho e de um dos
lados acompanhava outro na extensão de oitocentos metros - era
possível!?
A antiga corvéia!... Um absurdo! Antes confiscassem-lhe o sítio.
Consultando a irmã, ela lhe aconselhou que falasse ao doutor Campos.
Contou-lhe então Quaresma a conversa que tivera com ele dias antes.
- Mas és tolo, Policarpo. Foi ele mesmo...
A luz se lhe fez no pensamento... Aquela rede de leis, de posturas,
de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais
caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de
suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações,
crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e
desmoralizando-as.
Pelos seus olhos passaram num instante aquelas faces amareladas e
chupadas que se encostavam nos portais das vendas preguiçosamente;
viu também aquelas crianças maltrapilhas e sujas, d’olhos baixos, a
esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquelas terras
abandonadas, improdutivas, entregues às ervas e insetos daninhos;
viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador,
sem ânimo de plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o
dinheiro que lhe passava pelas mãos - este quadro passou-lhe pelos
olhos com a rapidez e o brilho sinistro do relâmpago; e só se apagou
de todo, quando teve que ler a carta que a sua afilhada lhe mandara.
Vinha viva e alegre. Contava pequenas histórias de sua vida, a
viagem próxima do papai, à Europa, o desespero do marido no dia em
que saiu sem anel, pedia notícias do padrinho, de Dona Adelaide e,
sem desrespeito, recomendava à irmã de Quaresma que tivesse muito
cuidado com o manto de arminho da “Duquesa”.
A “Duquesa” era uma grande pata branca, de penas alvas e macias ao
olhar, que, pela lentidão e majestade do andar, com o pescoço alto e
o passo firme, merecera de Olga esse apelido nobre. O animal tinha
morrido havia dias. E que morte! Uma peste que lhe levava duas
dúzias de patos, levara “Duquesa” também. Era uma espécie de
paralisia que tomava as pernas, depois o resto do corpo. Três dias
levou a agonizar. Deitada sobre o peito, com o bico colado ao chão,
atacada pelas formigas, o animal só dava sinal de vida por uma lenta
oscilação do pescoço em torno do bico, espantando as moscas que a
importunavam na sua última hora.
Era de ver como aquela vida tão estranha à nossa, naquele instante
penetrava em nós e sentíamos-lhe o sofrimento, a agonia e a dor.
O galinheiro ficou como uma aldeia devastada; a peste atacou
galinhas, perus, patos; ora sobre uma forma, ora sobre outra, foi
ceifando, matando, até reduzir a sua população a menos de metade.
E não havia quem soubesse curar. Numa terra, cujo governo tinha
tantas escolas que produziam tantos sábios, não havia um só homem
que pudesse reduzir, com as suas drogas ou receitas, aquele
considerável prejuízo.
Esses contratempos, essas contrariedades abateram muito o cultivador
entusiástico dos primeiros meses; entretanto não passara pela mente
de Quaresma abandonar os seus propósitos. Adquiriu compêndios de
veterinária e até já tratava de comprar as máquinas agrícolas
descritas nos catálogos.
Uma tarde, porém, estava à espera da junta de bois que encomendara
para o trabalho do arado, quando lhe apareceu à porta um soldado de
polícia com um papel oficial. Ele se lembrou da intimação municipal.
Estava disposto a resistir, não se incomodou muito.
Recebeu o papel e leu. Não vinha mais da municipalidade, mas da
coletoria, cujo escrivão, Antonino Dutra, conforme estava no papel,
intimava o Senhor Policarpo Quaresma a pagar quinhentos mil-réis de
multa, por ter enviado produtos de sua lavoura sem pagamento dos
respectivos impostos.
Viu bem o que havia nisso de vingança mesquinha; mas o seu
pensamento voou logo para as coisas gerais, levado pelo seu
patriotismo profundo.
A quarenta quilômetros do Rio, pagavam-se impostos para se mandar ao
mercado umas batatas? Depois de Turgot, da Revolução, ainda havia
alfândegas interiores?
Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas
barreiras e impostos? Se ao monopólio dos atravessadores do Rio se
juntavam as exações do Estado, como era possível tirar da terra a
remuneração consoladora?
E o quadro que já lhe passara pelos olhos, quando recebeu a
intimação da municipalidade, voltou-lhe de novo, mais tétrico, mais
sombrio, mais lúgubres; e anteviu a época em que aquela gente teria
de comer sapo, cobras, animais mortos, como em França os camponeses,
em tempos de grandes reis.
Quaresma veio a recordar-se do seu tupi, do seu folk-lore, das
modinhas, das suas tentativas agrícolas - tudo isso lhe pareceu
insignificante, pueril, infantil.
Era preciso trabalhos maiores, mais profundos; tornava-se necessário
refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado,
inteligente, removendo todos esses óbices, esses entraves, Sully e
Henrique IV, espalhando sábias leis agrárias, levantando o
cultivador... Então sim! o celeiro surgiria e a pátria seria feliz.
Felizardo entregou-lhe o jornal que toda manhã mandava comprar à
estação, e lhe disse:
- Seu patrão, amanhã não venho “trabaiá”.
- Por certo; é dia feriado... A Independência.
- Não é por isso.
- Por que então?
- Há “baruio” na Corte e dizem que vão “arrecrutá”. Vou pro mato...
Nada!
- Que barulho?
- “Tá” nas “foias”, sim “sinhô”.
Abriu o jornal e logo deu com a notícia de que os navios da esquadra
se haviam insurgido e intimado ao presidente a sair do poder.
Lembrou-se das suas reflexões de instantes atrás; um governo forte,
até à tirania... Medidas agrárias... Sully e Henrique IV...
Os seus olhos brilhavam de esperança. Despediu o empregado. Foi ao
interior da casa, nada disse à irmã, tomou o chapéu, e dirigiu-se à
estação.
Chegou ao telégrafo e escreveu:
“Marechal Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já. - Quaresma”.
V
O TROVADOR
- Decerto, Albernaz, não é possível continuar assim... Então
mete-se um sujeito num navio, assesta os canhões pra terra e diz:
sai daí “seu” presidente; e o homem vai saindo?... Não! É preciso um
exemplo...
- Eu penso também da mesma maneira, Caldas. A República precisa
ficar forte, consolidada... Esta terra necessita de governo que se
faça respeitar... É incrível! Um país como este, tão rico, talvez o
mais rico do mundo, é, no entanto, pobre, deve a todo mundo... Por
quê? Por causa dos governos que temos tido que não têm prestígio,
força... É por isso.
Vinham andando, à sombra das grandes e majestosas árvores do parque
abandonado; ambos fardados e de espada. Albernaz, depois de um curto
intervalo, continuou:
- Você viu o imperador, o Pedro II... Não havia jornaleco, pasquim
por aí, que o não chamasse de “banana” e outras coisas... Saia no
carnaval... Um desrespeito sem nome! Que aconteceu? Foi-se como um
intruso.
- E era um bom homem, observou o almirante. Amava o seu país...
Deodoro nunca soube o que fez.
Continuavam a andar. O almirante coçou um dos favoritos e Albernaz
olhou um instante para todos os lados, acendeu o cigarro de palha e
retomou a conversa:
- Morreu arrependido... Nem com a farda quis ir para a cova!...
Aqui para nós que ninguém nos ouve: foi um ingrato; o imperador
tinha feito tanto por toda a família, não acha?
- Não há dúvida nenhuma!... Albernaz, você quer saber de uma coisa:
estávamos melhor naquele tempo, digam lá o que disserem...
- Quem diz o contrário? Havia mais moralidade... Onde está um
Caxias? um Rio Branco?
- E mais justiça mesmo, disse com firmeza o almirante. O que eu
sofri, não foi por causa do “velho”, foi a canalha... Demais, tudo
barato...
- Eu não sei, disse Albernaz com particular acento, como há ainda
quem se case... Anda tudo pela hora da morte!
Eles olharam um instante as velhas árvores da Quinta Imperial, por
onde vinham atravessando. Nunca as tinham contemplado; e agora
parecia- lhes que jamais tinham pousado os olhos sobre árvores tão
soberbas, tão belas, tão tranqüilas e seguras de si, como aquelas
que espalhavam sob os seus grandes ramos uma vasta sombra, deliciosa
e macia. Pareciam que medravam sentindo-se em terra própria, delas,
da qual nunca sairiam desalojadas a machado, para edificação de
casebres; e esse sentimento lhes havia dado muita força de vegetar e
uma ampla vontade de se expandirem. O solo sobre o qual cresciam,
era delas e agradeciam à terra estendendo muito os seus ramos,
cerrando e tecendo a folhagem, para dar à boa mãe, frescura e
proteção contra a inclemência do sol.
As mangueiras eram as mais gratas; os ramos longos e cheios de
folhas, quase beijavam o chão. As jaqueiras se espreguiçavam; os
bambus se inclinavam, de um lado e outro da aléia, e cobriam a terra
com uma ogiva verde...
O velho edifício imperial se erguia sobre a pequena colina, Eles lhe
viam o fundo, aquela parte de construção mais antiga, joanina, com a
torre do relógio um pouco afastada e separada do corpo do edifício.
Não era belo o palácio, não tinha mesmo nenhum traço de beleza, era
até pobre e monótono. As janelas acanhadas daquela fachada velha, os
andares de pequena altura impressionavam mal; todo ele, porém, tinha
uma tal ou qual segurança de si, um ar de confiança pouco comum nas
nossas habitações, uma certa dignidade, alguma coisa de quem se
sente viver, não para um instante, mas para anos, para séculos... As
palmeiras cercavam-no, eretas, firmes, com os seus grandes penachos
verdes, muito altos, alongados para o céu...
Eram como que a guarda da antiga moradia imperial, guarda orgulhosa
do seu mister e função.
Albernaz interrompeu o silêncio:
- Em que dará isto tudo, Caldas?
- Sei lá.
- O “homem” deve estar atrapalhado... Já tinha o Rio Grande, agora
o Custódio... hum!
- O poder é o poder, Albernaz.
Vinham andando em demanda à estação de São Cristóvão. Atravessaram o
velho parque imperial transversalmente, desde o portão da Cancela
até à linha da estrada de ferro. Era de manhã, e o dia estava
límpido e fresco.
Caminhavam com pequenos passos seguros, mas sem pressa. Pouco antes
de saírem da quinta, deram com um soldado a dormir numa moita.
Albernaz teve vontade de acordá-lo: camarada! camarada! O soldado
levantou-se estremunhado; e, dando com aqueles dois oficiais
superiores, concertou-se rapidamente, fez a continência que lhes era
devida e ficou com a mão no boné, um instante firme, mas logo
bambeou.
- Abaixe a mão, fez o general. Que faz você aqui?
Albernaz falou em tom ríspido e de comando. A praça, falando a medo,
explicou que tinha estado de ronda ao litoral toda a noite. A força
se recolhera aos quartéis; ele obtivera licença para ir em casa mas
o sono fora muito e descansava ali um pouco.
- Então como vão as coisas? perguntou o general.
- Não sei, não “sinhô”.
- Os “homens” desistem ou não?
O general esteve um instante examinando o soldado. Era branco e
tinha os cabelos alourados, de um louro sujo e degradado; as feições
eram feias: malares salientes, testa óssea e todo ele anguloso e
desconjuntado.
- Donde você é? perguntou-lhe ainda Albernaz.
- Do Piauí, sim “sinhô”.
- Da capital?
- Do sertão, de Paranaguá, sim “sinhô”.
O almirante até ali não interrogara o soldado que continuava
amedrontado, respondendo tropegamente. Caldas, para acalmá-lo,
resolveu falar-lhe com doçura.
- Você não sabe, camarada, quais são os navios que “eles” têm?
- O “Aquidabã”... A “Luci”.
- A “Luci” não é navio.
- É verdade, sim “sinhô”. O “Aquidabã”... Um “bandão” deles, sim,
“sinhô”.
O general interveio então, Falou-lhe com brandura, quase paternal,
mudando o tratamento de você para tu, que parece mais doce e íntimo
quando se fala aos inferiores:
- Bem, descansa, meu filho. É melhor ires para casa... Podem
furtar-te o sabre e estás na “inácia”.
Os dois generais continuaram o seu caminho e, em breve, estavam na
plataforma da estação. A pequena estação tinha um razoável
movimento. Um grande número de oficiais, ativos, reformados,
honorários moravam-lhe nas cercanias e os editais chamavam todos a
se apresentar às autoridades competentes. Albernaz e Caldas
atravessaram a plataforma no meio de continências. O general era
mais conhecido, em virtude de seu emprego; o almirante, não. Quando
passavam, ouviam perguntar: “Quem é este almirante?” Caldas ficava
contente e orgulhava-se um pouco do seu posto e do seu incógnito.
Havia uma única mulher na estação, uma moça. Albernaz olhou-a e
lembrou-se um instante de sua filha Ismênia... Coitada!... Ficaria
boa?
Aquelas manias? Onde iria parar? Vieram-lhe as lágrimas, mas ele as
reteve com força.
Já a levara a uma meia dúzia de médicos e nenhum fazia parar aquele
escapamento do juízo que parecia fugir aos poucos do cérebro da
moça.
A bulha de um expresso, chocalhando ferragens com estrépido,
apitando com fúria e deixando fumaça pesada pelos ares que rompia,
afastou-o de pensar na filha. Passou o monstro, pejado de soldados,
de uniformes e os trilhos, depois de ter passado, ainda estremeciam.
Bustamante apareceu; morava nos arredores e vinha tomar o trem, para
apresentar-se. Trazia o seu velho uniforme do Paraguai, talhado
segundo os moldes dos guerreiros da Criméia. A barretina era um
tronco de cone que avançava para a frente; e, com aquela banda roxa
e casaquinha curta, parecia ter saído, fugido, saltado de uma tela
de Vítor Meireles”.
- Então por aqui?... Que é isto? indagou o honorário.
- Viemos pela quinta, disse o almirante.
- Nada, meus amigos, esses bondes andam muito perto do mar... Não
me importa morrer, mas quero morrer combatendo; isso de morrer por
ai, à toa, sem saber como, não vai comigo...
O general falara um pouco alto e os jovens oficiais que estavam
próximo, olharam-no com mal disfarçada censura. Albernaz percebeu e
ajuntou imediatamente:
- Conheço bem esse negócio de balas... Já vi muito fogo... Você
sabe, Bustamante, que, em Curuzu...
- A coisa foi terrível, acrescentou Bustamante.
O trem atracava na estação. Veio chegando manso, vagaroso; a
locomotiva, muito negra, bufando, suando gordurosamente, com a sua
grande lanterna na frente, um olho de ciclope, avançava que nem uma
aparição sobrenatural. Foi chegando; o comboio estremeceu todo e
parou por fim.
Estava repleto, muitas fardas de oficiais; a avaliar por ali o Rio
devia ter uma guarnição de cem mil homens. Os militares palravam
alegres, e os civis vinham calados e abatidos, e mesmo apavorados.
Se falavam, era cochichando, olhando com precaução para os bancos de
trás.
A cidade andava inçada de secretas, “familiares” do Santo Ofício
Republicano, e as delações eram moedas com que se obtinham postos e
recompensas.
Bastava a mínima critica, para se perder o emprego, a liberdade, -
quem sabe? - a vida também. Ainda estávamos no começo da revolta,
mas o regime já publicara o seu prólogo e todos estavam avisados. O
chefe de polícia organizara a lista dos suspeitos. Não havia
distinção de posição e talentos. Mereciam as mesmas perseguições do
governo um pobre contínuo e um influente senador; um lente e um
simples empregado de escritório. Demais surgiam as vinganças
mesquinhas, o revide de pequenas implicâncias... Todos mandavam; a
autoridade estava em todas as mãos.
Em nome do Marechal Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão,
sem função pública alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá
ficava esquecido, sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação
dominicana. Os funcionários disputavam-se em bajulação, em
servilismo... Era um terror, um terror baço, sem coragem, sangrento,
às ocultas, sem grandeza, sem desculpa, sem razão e sem
responsabilidades... Houve execuções; mas não houve nunca um
Fouquier-Tinville.
Os militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os
alferes, os tenentes e os capitães. Para a maioria a satisfação
vinha da convicção de que iam estender a sua autoridade sobre o
pelotão e a companhia, a todo esse rebanho de civis; mas, em outros
muitos havia sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade. Eram
os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo
tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências,
todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da
ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao
advento do regime normal, a religião da humanidade, a adoração do
grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos
detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escritura fonética e
eleitos calçados com sapatos de sola de borracha!...
Os positivistas discutiam e citavam teoremas de mecânica para
justificar as suas idéias de governo, em tudo semelhantes aos
canatos e emirados orientais.
A matemática do positivismo foi sempre um puro falatório que,
naqueles tempos, amedrontava toda gente. Havia mesmo quem estivesse
convencido que a matemática tinha sido feita e criada para o
positivismo, como se a Bíblia tivesse sido criada unicamente para a
Igreja Católica e não também para a Anglicana. O prestígio dele era,
portanto, enorme.
O trem correu, parou inda em uma estação e foi ter à Praça da
República. O almirante, cosido com as paredes, seguiu para o Arsenal
de Marinha; Albernaz e Bustamante entraram no Quartel-General.
Penetraram no grande casarão, no meio do retinir de espadas, de
toques de cornetas; o grande pátio estava cheio de soldados,
bandeiras, canhões, feixes de armas ensarilhadas, baionetas
reluzindo ao sol oblíquo...
No sobrado, nas proximidades do gabinete do ministro, havia um
vaivém de fardas, dourados, fazendas multicores, uniformes de várias
corporações e milícias, no meio dos quais os trajes escuros dos
civis eram importunos como moscas. Misturavam-se oficiais da guarda
nacional, da polícia, da armada, do exército, de bombeiros e de
batalhões patrióticos que começavam a surgir.
Apresentaram-se e, depois de tê-lo feito ao ajudante general e
ministro da Guerra, a um só tempo, ficaram a conversar nos
corredores, com bastante prazer, pois que tinham encontrado o
Tenente Fontes e ambos gostavam de ouvi-lo.
O general porque já era noivo de sua filha Lalá, e Bustamante porque
aprendia com ele alguma coisa de nomenclatura dos armamentos
modernos.
Fontes estava indignado, todo ele era horror, maldição contra os
insurretos, e propunha os piores castigos.
- Hão de ver o resultado... Piratas! Bandidos! Eu, no caso do
marechal, se os pegasse... ai deles!
O tenente não era feroz nem mau, antes bom e até generoso, mas era
positivista e tinha da sua República uma idéia religiosa e
transcendente. Fazia repousar nela toda a felicidade humana e não
admitia que a quisessem de outra forma que não aquela que imaginava
boa. Fora daí não havia boa-fé, sinceridade; eram heréticos
interesseiros, e, dominicano do seu barrete frígio, raivoso por não
poder queimá-los em autos-de-fé, congesto, via passar por seus olhos
uma série enorme de réus confitentes, relapsos, contumazes, falsos,
simulados, fictos e confictos, sem samarra, soltos por aí...
Albernaz não tinha tanta fúria contra os adversários, No fundo
d’alma, ele os queria até, tinha amigos lá, e essas divergências
nada significavam para a sua idade e experiência,
Depositava, entretanto, uma certa esperança na ação do marechal.
Estando em apuros financeiros, não lhe dando o bastante a sua
reforma e a gratificação de organizador do arquivo do Largo do
Moura, esperava obter uma outra comissão, que lhe permitisse mais
folgadamente adquirir o enxoval de Lalá.
O almirante, também, tinha grande confiança nos talentos guerreiros
e de estadista de Floriano. A sua causa não ia lá muito bem.
Perdera-a em primeira instância, estava gastando muito dinheiro... O
governo precisava de oficiais de Marinha, quase todos estavam na
revolta; talvez lhe dessem uma esquadra a comandar... É verdade
que... Mas, que diabo! Se fosse um navio, então sim: mas uma
esquadra a coisa não era difícil: bastava coragem para combater.
Bustamante cria com força na capacidade do General Peixoto, tanto
assim que, para apoiá-lo e defender o seu governo, imaginava
organizar um batalhão patriótico, de que já tinha o nome “Cruzeiro
do Sul” e naturalmente seria o seu comandante, com todas as
vantagens do posto de coronel.
Genelício, cuja atividade nada tinha de guerreira, esperava muito da
energia e da decisão do governo de Floriano: esperava ser subdiretor
e não podia um governo sério, honesto e enérgico, fazer outra coisa,
desde que quisesse pôr ordem na sua seção.
Essas secretas esperanças eram mais gerais do que se pode supor. Nós
vivemos do governo e a revolta representava uma confusão nos
empregos, nas honrarias e nas posições que o Estado espalha. Os
suspeitos abririam vagas e as dedicações supririam os títulos e
habilitações para ocupálas; além disso, o governo, precisando de
simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar,
inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e
gratificações.
O próprio doutor Armando Borges, o marido de Olga e sábio sereno e
dedicado quando estudante, colocava na revolta a realização de
risonhos anelos.
Médico e rico, pela fortuna da mulher, ele não andava satisfeito. A
ambição de dinheiro e o desejo de nomeada esporeavam-no. Já era
médico do Hospital Sírio, onde ia três vezes por semana e, em meia
hora, via trinta e mais doentes. Chegava, o enfermeiro dava-lhe
informações, o doutor ia, de cama em cama, perguntando: “Como vai?”
“Vou melhor, seu doutor”, respondia o sírio com voz gutural. Na
seguinte, indagava: “Já está melhor?” E assim passava a visita;
chegando ao gabinete, receitava: “Doente n. I, repita a receita;
doente 5... quem é?”... “É aquele barbado”... “Ahn!” E receitava.
Mas médico de um hospital particular não dá fama a ninguém: o
indispensável é ser do governo, senão ele não passava de um simples
prático. Queria ter um cargo oficial, médico, diretor ou mesmo lente
da faculdade.
E isso não era difícil, desde que arranjasse boas recomendações,
pois já tinha certo nome, graças à sua atividade e fertilidade de
recursos.
De quando em quando, publicava um folheto O Cobreiro, Etiologia,
Profilaxia e Tratamento ou Contribuição para o Estudo da Sarna no
Brasil; e mandava o folheto, quarenta e sessenta páginas, aos
jornais que se ocupavam dele duas ou três vezes por ano; o “operoso
doutor Armando Borges, o ilustre clínico, o proficiente médico dos
nossos hospitais”, etc., etc.
Obtinha isso graças à precaução que tomara em estudante de se
relacionar com os rapazes da imprensa.
Não contente com isso escrevia artigos, estiradas compilações, em
que não havia nada de próprio, mas ricos de citações em francês,
inglês e alemão.
O lugar de lente é que o tentava mais; o concurso porém, metia-lhe
medo. Tinha elementos, estava bem relacionado e cotado na
congregação, mas aquela história de argüição apavorava-o.
Não havia dia em que não comprasse livros, em francês, inglês e
italiano, tomara até um professor de alemão, para entrar na ciência
germânica; mas faltava-lhe energia para o estudo prolongado e a sua
felicidade pessoal fizera evolar-se a pequena que tivera quando
estudante.
A sala da frente do alto porão tinha sido transformada em
biblioteca. As paredes estavam forradas de estantes que gemiam ao
peso dos grandes tratados. À noite, ele abria as janelas das
venezianas, acendia todos os bicos-de-gás e se punha à mesa, todo de
branco com um livro aberto sob os olhos.
O sono não tardava a vir ao fim da quinta página... Isso era o
diabo! Deu em procurar os livros da mulher. Eram romances franceses,
Goncourt, Anatole France, Daudet, Maupassant, que o faziam dormir da
mesma maneira que os tratados. Ele não compreendia a grandeza
daquelas análises, daquelas descrições, o interesse e o valor delas,
revelando a todos, à sociedade, a vida, os sentimentos, as dores
daqueles personagens, um mundo! O seu pedantismo, a sua falsa
ciência e a pobreza de sua instrução geral faziam-no ver, naquilo
tudo, brinquedos, passatempos, falatórios, tanto mais que ele dormia
à leitura de tais livros.
Precisava, porém, iludir-se, a si mesmo e à mulher, De resto, da
rua, viam-no e se dessem com ele a dormir sobre os livros?!...
Tratou de encomendar algumas novelas de Paulo de Kock em lombadas
com títulos trocados e afastou o sono.
A sua clínica, entretanto, prosperava. De comandita com o tutor,
chegou a ganhar uns seis contos, tratando de um febrão de uma órfã
rica.
Desde muito que a mulher lhe entrara na sua simulação de
inteligência, mas aquela manobra indecorosa, indignou-a. Que
necessidade tinha ele disso? Não era já rico? Não era moço? Não
tinha o privilégio de um título universitário? Tal ato pareceu à
moça mais vil, mais baixo, que a usura de um judeu, que o aluguel de
uma pena...
Não foi desprezo, nojo que ela teve pelo marido; foi um sentimento
mais calmo, menos ativo; desinteressou-se dele, destacou-se de sua
pessoa. Ela sentiu que tinham cortado todos os laços de afeição, de
simpatia, que prendiam ambos, toda a ligação moral, enfim.
Mesmo quando noiva, verificara que aquelas coisas de amor ao estudo,
de interesse pela ciência, de ambições de descobertas, nele, eram
superficiais, estavam à flor da pele; mas desculpou. Muitas vezes
nós nos enganamos sobre as nossas próprias forças e capacidades;
sonhamos ser Shakespeare e saímos Mal das Vinhas, Era perdoável, mas
charlatão? Era demais!
Passou-lhe um pensamento mau, mas de que valeria essa quase
indignidade?... Todos os homens deviam ser iguais; era inútil mudar
deste para aquele...
Quando chegou a esta conclusão, sentiu um grande alívio, e a sua
fisionomia se iluminou de novo como se já estivesse de todo passada
a nuvem que empanava o sol dos seus olhos.
Naquela carreira atropelada para o nome fácil, ele não deu pelas
modificações da mulher. Ela dissimulava os seus sentimentos, mais
por dignidade e delicadeza, que mesmo por qualquer outro motivo; e a
ele faltavam a sagacidade e finura necessárias para descobri-los sob
o seu esconderijo.
Continuavam a viver como se nada houvesse, mas quanto estavam longe
um do outro! ...
A revolta veio encontrá-los assim; e o doutor, desde três dias, pois
há tanto ela rebentara, meditava a sua ascensão social e monetária,
O sogro suspendera a viagem à Europa, e, naquela manhã, após o
almoço, conforme o seu hábito, lia recostado numa cadeira de viagem
os jornais do dia. O genro vestia-se e a filha ocupava-se com sua
correspondência, escrevendo à cabeceira da mesa de jantar. Ela tinha
um gabinete, com todo o luxo, livros, secretária, estantes, mas
gostava pela manhã, de escrever ali, ao lado do pai. A sala lhe
parecia mais clara, a vista para a montanha, feia e esmagadora, dava
mais seriedade ao pensamento e a vastidão da sala mais liberdade no
escrever.
Ela escrevia e o pai lia; num dado momento ele disse:
- Sabes quem vem ai, minha filha?
- Quem é?
- Teu padrinho. Telegrafou ao Floriano, dizendo que vinha... Está
aqui, n’O País.
A moça adivinhou logo o motivo, o modo de agir e reagir do fato
sobre as idéias e sentimentos de Quaresma. Quis desaprovar,
censurar; sentiu-o, porém, tão coerente com ele mesmo, tão de acordo
com a substância da vida que ele mesmo fabricara, que se limitou a
sorrir complacente:
- O padrinho...
- Está doido, disse Coleoni. Per la madonna! Pois um homem que está
quieto, sossegado, vem meter-se nesta barafunda, neste inferno...
O doutor voltara já inteiramente vestido, com a sobrecasaca fúnebre
e a cartola reluzente na mão. Vinha irradiante e o seu rosto redondo
reluzia, exceto onde o grande bigode punha sombras. Ainda ouviu as
últimas palavras do sogro, pronunciadas com aquele seu português
rouco:
- Que há? perguntou ele.
Coleoni explicou e repetiu os comentários que já fizera:
- Mas não há tal, disse o doutor. É o dever de todo patriota... Que
tem a idade? Quarenta e poucos anos, não é lá velho... Pode ainda
bater-se pela República...
- Mas não tem interesse nisso, objetou o velho.
- E há de ser só quem tem interesse que se deve bater pela
República? interrogou o doutor.
A moça que acabava de ler a carta que tinha escrito, mesmo sem
levantar a cabeça, disse:
- Decerto.
- E vem você com as suas teorias, filhinha. O patriotismo não está
na barriga...
E sorriu com um falso sorriso que o brilho morto dos seus dentes
postiços mais falsificava.
- Mas vocês só falam em patriotismo? E os outros? É monopólio de
vocês o patriotismo? fez Olga.
- Decerto. Se eles fossem patriotas não estariam a despejar balas
para a cidade, a entorpecer, a desmoralizar a ação da autoridade
constituída.
- Deviam continuar a presenciar as prisões, as deportações, os
fuzilamentos, toda a série de violências que se vêm cometendo, aqui
e no Sul?
- Você, no fundo, é uma revoltosa, disse o doutor, fechando a
discussão.
Ela não deixava de ser. A simpatia dos desinteressados, da população
inteira era pelos insurgentes. Não só isso sempre acontece em toda
parte, como particularmente, no Brasil, devido a múltiplos fatores,
há de ser assim normalmente.
Os governos, com os seus inevitáveis processos de violência e
hipocrisias, ficam alheados da simpatia dos que acreditam nele; e
demais, esquecidos de sua vital impotência e inutilidade, levam a
prometer o que não podem fazer, de forma a criar desesperados, que
pedem sempre mudanças e mudanças.
Não era, pois, de admirar que a moça tendesse para os revoltosos; e
Coleoni, estrangeiro e conhecendo, graças à sua vida, as nossas
autoridades, calasse as suas simpatias num mutismo prudente.
- Não me vá comprometer, hein Olga?
Ela se tinha levantado para acompanhar o marido. Parou um pouco,
deitou-lhe o seu grande olhar luminoso, e com os finos lábios um
pouco franzidos:
- Você sabe bem que eu não te comprometo.
O doutor desceu a escada da varanda, atravessou o jardim e ainda do
portão disse adeus à mulher, que lhe seguia a saída, debruçada na
varanda, conforme o ritual dos bem ou mal casados.
Por esse tempo, Coração dos Outros sonhava desligado das
contingências terrenas.
Ricardo vivia ainda na sua casa de cômodos dos subúrbios, cuja vista
ia de Todos os Santos à Piedade, abrangendo um grande trato de área
edificada, um panorama de casas e árvores.
Já não se falava mais no seu rival e a sua mágoa tinha assentado.
Por esses dias o seu triunfo desfilava sem contestação. Toda a
cidade o tinha na consideração devida e ele quase se julgava ao
termo da sua carreira. Faltava o assentimento de Botafogo, mas
estava certo de obter.
Já publicara mais de um volume de canções; e agora pensava em
publicar mais outro.
Há dias vivia em casa, pouco saindo, organizando o seu livro.
Passava confinado no seu quarto, almoçando café, que ele mesmo
fazia, e pão, indo à tarde jantar a uma tasca próxima à estação.
Notara que sempre que chegava, os carroceiros e trabalhadores, que
jantavam nas mesas sujas, abaixavam a voz e olhavam-no desconfiados;
mas não deu importância...
Apesar de popular no lugar, não encontrara pessoa alguma conhecida
durante os três últimos dias; ele mesmo evitava falar e, em sua
casa, limitava-se ao “bom dia” e à “boa tarde” trocados com os
vizinhos.
Gostava de passar assim dias, metido em si mesmo e ouvindo o seu
coração. Não lia jornais para não distrair a atenção do seu
trabalho. Vivia a pensar nas suas modinhas e no seu livro que havia
de ser mais uma vitória para ele e para o violão estremecido.
Naquela tarde estava sentado à mesa, corrigindo um dos seus
trabalhos, um dos últimos, aquele que compusera no sítio de Quaresma
- “Os Lábios de Carola”.
Primeiro, leu toda a produção, cantarolando; voltou a lê-la, agarrou
o violão para melhor apanhar o efeito e empacou nestes:
É mais bela que Helena e Margarida,
Quando sorri meneando a ventarola.
Só se encontra a ilusão que adoça a vida
Nos lábios de Carola.
Nisto ouviu um tiro, depois outro, outro... Que diabo? pensou. Hão
de ser salvas a algum navio estrangeiro. Repinicou o violão e
continuou a cantar os lábios de Carola, onde encontrava a ilusão que
adoça a vida...
TERCEIRA PARTE
I
PATRIOTAS
Havia mais de uma hora que ele estava ali, num grande salão do
palácio, vendo o marechal, mas sem lhe poder falar. Quase não se
encontravam dificuldades para se chegar à sua presença, mas
falar-lhe, a coisa não era tão fácil.
O palácio tinha um ar de intimidade, de quase relaxamento,
representativo e eloqüente. Não era raro ver-se pelos divãs, em
outras salas, ajudantes-de-ordens, ordenanças, contínuos,
cochilando, meio deitados e desabotoados. Tudo nele era desleixo e
moleza. Os cantos dos tetos tinham teias de aranha; dos tapetes,
quando pisados com mais força, subia uma poeira de rua mal varrida.
Quaresma não pudera vir logo, como anunciara no telegrama. Fora
preciso pôr em ordem os seus negócios, arranjar quem fizesse
companhia à irmã. Fizera Dona Adelaide mil objeções à sua partida;
mostrara-lhe os riscos da luta, da guerra, incompatíveis com a sua
idade e superiores à sua força; ele, porém, não se deixara abater,
fizera pé firme, pois sentia, indispensável, necessário que toda a
sua vontade, que toda a sua inteligência, que tudo o que ele tinha
de vida e atividade fosse posto à disposição do governo, para
então!... oh!
Aproveitara os dias até para redigir um memorial que ia entregar a
Floriano. Nele expunham-se as medidas necessárias para o
levantamento da agricultura e mostravam-se todos os entraves,
oriundos da grande propriedade, das exações fiscais, da carestia de
fretes, da estreiteza dos mercados e das violências políticas.
O major apertava o manuscrito na mão e lembrava-se da sua casa, lá
longe, no canto daquela planície feia, olhando, no poente, as
montanhas que se alongavam, se afilavam nos dias claros e
transparentes; lembrava-se de sua irmã, dos seus olhos verdes e
plácidos que o viram partir com uma impassibilidade que não era
natural; mas do que se lembrava mais, naquele momento, era do
Anastácio, o seu preto velho, o seu longo olhar, não mais com aquela
ternura passiva de animal doméstico, mas cheio de assombro, de
espanto e piedade, rolando muito nas órbitas as escleróticas muito
brancas, quando o viu penetrar no vagão da estrada de ferro, Parecia
que farejava desgraça... Não lhe era comum tal atitude e como que a
tomava por ter descoberto nas coisas sinais de dolorosos
acontecimentos a vir... Ora!...
Ficara Quaresma a um canto vendo entrar um e outro, à espera que o
presidente o chamasse. Era cedo, pouco devia faltar para o meio-dia,
e Floriano tinha ainda, como sinal do almoço, o palito na boca.
Falou em primeiro lugar a uma comissão de senhoras que vinham
oferecer o seu braço e o seu sangue em defesa das instituições e da
pátria. A oradora era uma mulher baixa, de busto curto, gorda, com
grandes seios altos e falava agitando o leque fechado na mão
direita.
Não se podia dizer bem qual a sua cor, sua raça, ao menos: andavam
tantas nela que uma escondia a outra, furtando toda ela a uma
classificação honesta.
Enquanto falava, a mulherzinha deitava sobre o marechal os grandes
olhos que despediam chispas. Floriano parecia incomodado com aquele
chamejar; era como se temesse derreter-se ao calor daquele olhar que
queimava mais sedução que patriotismo, Fingia encará-la, abaixava o
rosto como um adolescente, batia com os dedos na mesa...
Quando lhe chegou a vez de falar, levantou um pouco o rosto, mas sem
encarar a mulher, e, com um grosso e difícil sorriso de roceiro,
declinou da oferta, visto a República ainda dispor de bastante força
para vencer.
A última frase, ele a disse com mais vagar e quase ironicamente. As
damas despediram-se; o marechal girou olhar em torno do salão e deu
com Quaresma.
- Então, Quaresma? fez ele familiarmente.
O major ia aproximar-se, mas logo estacou no lugar em que estava.
Uma chusma de oficiais subalternos e cadetes cercou o ditador e a
sua atenção convergiu para eles. Não se ouvia o que diziam. Falavam
ao ouvido de Floriano, cochichavam, batiam-lhe nas espáduas. O
marechal quase não falava: movia com a cabeça ou pronunciava um
monossílabo, coisa que Quaresma percebia pela articulação dos
lábios.
Começaram a sair. Apertavam a mão do ditador e, um deles, mais
jovial, mais familiar, ao despedir-se, apertou-lhe com força a mão
mole, bateu-lhe no ombro com intimidade, e disse alto e com ênfase:
- Energia, marechal!
Aquilo tudo parecia tão natural, normal, tendo entrado no novo
cerimonial da República, que ninguém, nem o próprio Floriano, teve a
mínima surpresa, ao contrário alguns até sorriram alegres por ver o
califa, o cã, o emir, transmitir um pouco do que tinha de sagrado ao
subalterno desabusado. Não se foram todos imediatamente. Um deles
demorou-se mais a segredar coisas à suprema autoridade do país. Era
um cadete da Escola Militar, com a sua farda azul-turquesa, talim e
sabre de praça de pré.
Os cadetes da Escola Militar formavam a falange sagrada.
Tinham todos os privilégios e todos os direitos; precediam ministros
nas entrevistas com o ditador e abusavam dessa situação de esteio do
Sila, para oprimir e vexar a cidade inteira.
Uns trapos de positivismo se tinham colado naquelas inteligências e
uma religiosidade especial brotara-lhes no sentimento, transformando
a autoridade, especialmente Floriano e vagamente a República, em
artigo de fé, em feitiço, em ídolo mexicano, em cujo altar todas as
violências e crimes eram oblatas dignas e oferendas úteis para a sua
satisfação e eternidade.
O cadete lá estava...
Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia enfeixar
em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de
Imperador Romano, pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar
obstáculo algum aos seus caprichos, às suas fraquezas e vontades,
nem nas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana.
Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e
mole a que se agarrava uma grande “mosca”, os traços flácidos e
grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse
próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço,
redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era
individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso -
parecia não ter nervos.
Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o
caráter, a inteligência e o temperamento. Essas coisas não vogam,
disse ele de si para si.
O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e
desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e
supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do pais, manhoso
talvez um pouco, uma espécie de Luís XI forrado de um Bismarck.
Entretanto, não era assim. Com uma ausência total de qualidades
intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade
predominante: tibieza de ânimo, e no seu temperamento, muita
preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma
preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa,
provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo.
Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e
desamor às obrigações dos seus cargos.
Quando diretor do arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para
assinar o expediente respectivo; e durante o tempo em que foi
ministro da Guerra, passava meses e meses sem lá ir, deixando tudo
por assinar, pelo que “legou” ao seu substituto um trabalho
avultadíssimo.
Quem conhece a atividade papeleira de um Colbert, de um Napoleão, de
um Filipe II, de um Guilherme I, da Alemanha, em geral de todos os
grandes homens de Estado, não compreende o descaso florianesco pela
expedição de ordens, explicações aos subalternos,de suas vontades,
de suas vistas. Certamente necessárias deviam ser tais transmissões
para que o seu senso superior se fizesse sentir e influísse na
marcha das coisas governamentais e administrativas.
Dessa sua preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus
misteriosos monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos, as
famosas “encruzilhadas dos talvezes”, que tanto reagiram sobre a
inteligência e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes
homens.
Essa doentia preguiça fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele
aspecto de calma superior, calma de grande homem de Estado ou de
guerreiro extraordinário.
Toda a gente ainda se lembra como foram os seus primeiros meses de
governo. A braços com o levante de presos, praças e inferiores da
fortaleza de Santa Cruz, tendo mandado fazer um inquérito, abafou-o
com medo que as pessoas indicadas como instigadoras não fizessem
outra sedição, e, não contente com isto, deu a essas pessoas as
melhores e mais altas recompensas.
Demais, ninguém pode admitir um homem forte, um César, um Napoleão,
que permita aos subalternos aquelas intimidades deprimentes e tenha
com eles as condescendências que ele tinha, consentindo que o seu
nome servisse de lábaro para uma vasta série de crimes de toda
espécie.
Uma recordação basta. Sabe-se bem sob que atmosfera de má vontade
Napoleão assumiu o comando do exército da Itália. Augereau que o
chamava “general de rua”, disse a alguém, após lhe ter falado: “O
homem meteu-me medo”, e o corso estava senhor do exército, sem
batidelas no ombro, sem delegar tácita ou explicitamente a sua
autoridade a subalternos irresponsáveis.
De resto, a lentidão com que sufocou a revolta de 6 de setembro
mostra bem a incerteza, a vacilação de vontade de um homem que
dispunha daqueles extraordinários recursos que estavam às suas
ordens.
Há uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus
movimentos, atos e gestos. Era o seu amor à família, um amor
entranhado, alguma coisa de patriarcal, de antigo que já se vai
esvaindo com a marcha da civilização.
Em virtude de insucessos na exploração agrícola de duas das suas
propriedades, a sua situação particular era precária, e não queria
morrer sem deixar à família as suas propriedades agrícolas
desoneradas do peso das dívidas.
Honesto e probo como era, a única esperança que lhe restava,
repousava nas economias sobre os seus ordenados. Daí lhe veio essa
dubiedade, esse jogo com pau de dois bicos, jogo indispensável para
conservar os rendosos lugares que teve e o fez atarraxar-se
tenazmente à presidência da República. A hipoteca do “Brejão” e do
“Duarte” foi o seu nariz de Cleópatra...
A sua preguiça, a sua tibieza de ânimo e o seu amor fervoroso pelo
lar deram em resultado esse “homem-talvez” que, refratado nas
necessidades mentais e sociais dos homens do tempo, foi transformado
em estadista, em Richelieu e pôde resistir a uma séria revolta com
mais teimosia que vigor, obtendo vidas, dinheiro e despertando até
entusiasmo e fanatismo.
Esse entusiasmo e esse fanatismo, que o ampararam, que o animaram,
que o sustentaram, só teriam sido possíveis, depois de ter ele sido
ajudante general do Império, senador, ministro, isto é, após se ter
“fabricado” à vista de todos e cristalizado a lenda na mente de todos.
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia,
nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se
mal, castiga-se. Levada a coisa ao grande o portar-se mal era
fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas e o castigo não
eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte. Não há dinheiro no
Tesouro; ponham-se as notas recolhidas em circulação, assim como se
faz em casa quando chegam visitas e a sopa é pouca: põe-se mais água.
Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura deram mais
realce a essa concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto
por ele em si, pela sua perversidade natural, pelo seu desprezo pela
vida humana, mas pela fraqueza com que acobertou e não reprimiu a
ferocidade dos seus auxiliares e asseclas.
Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; ele com muitos homens
honestos e sinceros do tempo, foram tomados pelo entusiasmo
contagioso que Floriano conseguira despertar. Pensava na grande obra
que o Destino reservava àquela figura plácida e triste; na reforma
radical que ele ia levar ao organismo aniquilado da pátria, que o
major se habituara a crer a mais rica do mundo, embora, de uns
tempos para cá, já tivesse dúvidas a certos respeitos.
Decerto, ele não negaria tais esperanças e a sua ação poderosa havia
de se fazer sentir pelos oito milhões de quilômetros quadrados do
Brasil, levando-lhes estradas, segurança, proteção aos fracos,
assegurando o trabalho e promovendo a riqueza.
Não se demorou muito nessa ordem de pensamentos. Um seu nheiro
de espera, desde que o marechal lhe falou familiarmente, começou a
considerar aquele homem pequenino, taciturno, de pince-nez e foi-se
chegando, se aproximando e, quando já perto, disse a Quaresma, quase
como um terrível segredo.
- Eles vão ver o “caboclo”... O major há muito que o conhece?
Respondeu-lhe o major e o outro ainda lhe fez uma outra pergunta; o
presidente, porém, ficara só e Quaresma avançou.
- Então, Quaresma? fez Floriano.
- Venho oferecer a Vossa Excelência os meus fracos préstimos.
O presidente considerou um instante aquela pequenez de homem, sorriu
com dificuldade, mas, levemente, com um pouco de satisfação. Sentiu
por aí a força de sua popularidade e senão a razão boa de sua causa.
- Agradeço-te muito... Onde tens andado? Sei que deixaste o
arsenal.
Floriano tinha essa capacidade de guardar fisionomias, nomes,
empregos, situações dos subalternos com quem lidava. Tinha alguma
coisa de asiático; era cruel e paternal ao mesmo tempo.
Quaresma explicou-lhe a sua vida e aproveitou a ocasião para lhe
falar em leis agrárias, medidas tendentes a desafogar e dar novas
bases à nossa vida agrícola. O marechal ouviu-o distraído, com uma
dobra de aborrecimento no canto dos lábios.
- Trazia a Vossa Excelência até este memorial...
O presidente teve um gesto de mau humor, um quase “não me amole” e
disse com preguiça a Quaresma:
- Deixa aí...
Depositou o manuscrito sobre a mesa e logo o ditador dirigiu-se ao
interlocutor de ainda agora:
- Que há, Bustamante? E o batalhão, vai?
O homem aproximou-se mais, um tanto amedrontado:
- Vai bem, marechal. Precisamos de um quartel!... Se Vossa
Excelência desse ordem...
- É exato. Fala ao Rufino em meu nome que ele pode arranjar... Ou
antes: leva-lhe este bilhete.
Rasgou um pedaço de uma das primeiras páginas do manuscrito de
Quaresma, e assim mesmo, sobre aquela ponta de papel, a lápis azul,
escreveu algumas palavras ao seu ministro da Guerra. Ao acabar é que
deu com a desconsideração:
- Ora! Quaresma! rasguei o teu escrito... Não faz mal... Era a
parte de cima, não tinha nada escrito.
O major confirmou e o presidente, em seguida, voltando-se para
Bustamante:
- Aproveita Quaresma no teu batalhão. Que posto queres?
- Eu! fez Quaresma estupidamente.
- Bem. Vocês lá se entendem.
Os dois se despediram do presidente e desceram vagarosamente as
escadas do Itamarati. Até à rua nada disseram um ao outro. Quaresma
vinha um pouco frio, O dia estava claro e quente; o movimento da
cidade parecia não ter sofrido alteração apreciável. Havia a mesma
agitação de bondes, carros e carroças; mas nas fisionomias, um
terror, um espanto, alguma coisa de tremendo ameaçava todos e
parecia estar suspenso no ar.
Bustamante deu-se a conhecer. Era o Major Bustamante, agora
tenente-coronel, velho amigo do marechal, seu companheiro do
Paraguai.
- Mas nós nos conhecemos! exclamou ele.
Quaresma esteve olhando aquele velho mulato escuro, com uma grande
barba mosaica e olhos espertos, mas não se lembrou de tê-lo já
encontrado algum dia.
- Não me recordo... Donde?
- Da casa do General Albernaz... Não se lembra?
Policarpo então teve uma vaga recordação e o outro explicou-lhe a
formação do seu batalhão patriótico “Cruzeiro do Sul”.
- O senhor quer fazer parte?
- Pois não, fez Quaresma.
- Estamos em dificuldades... Fardamento, calçado para as praças...
Nas primeiras despesas devemos auxiliar o governo... Não convém
sangrar o Tesouro, não acha?
- Certamente, disse com entusiasmo Quaresma.
- Folgo muito que o senhor concorde comigo... Vejo que é um
patriota...” Resolvi por isso fazer um rateio pelos oficiais, em
proporção ao posto: um alferes concorre com cem mil-réis, um tenente
com duzentos... O senhor que patente quer? Ah! É verdade! O senhor é
major, não é?
Quaresma então explicou por que o tratavam por major. Um amigo,
influência no Ministério do Interior, lhe tinha metido o nome numa
lista de guardas-nacionais, com esse posto. Nunca tendo pago os
emolumentos, viu-se, entretanto, sempre tratado major, e a coisa
pegou. A princípio, protestou, mas como teimassem deixou.
- Bem, fez Bustamante. O senhor fica mesmo sendo major.
- Qual é a minha quota?
- Quatrocentos mil-réis. Um pouco forte, mas... O senhor sabe; é um
posto importante... Aceita?
- Pois não.
Bustamante tirou a carteira, tomou nota com uma pontinha de lápis e
despediu-se jovialmente:
- Então, major, às seis, no quartel provisório.
A conversa se havia passado na esquina da Rua Larga com o Campo de
Sant’Ana. Quaresma pretendia tomar um bonde que o levasse ao centro
da cidade. Tencionava visitar o compadre em Botafogo, fazendo,
assim, horas para a sua iniciação militar.
A praça estava pouco transitada; os bondes passavam ao chouto
compassado das mulas; de quando em quando ouvia-se um toque de
corneta, rufos de tambor, e do portão central do quartel-general
saía uma força, armas ao ombro, baionetas caladas, dançando nos
ombros dos recrutas, faiscando com um brilho duro e mau.
Ia tomar o bonde, quando se ouviram alguns disparos de artilharia e
o seco espoucar dos fuzis. Não durou muito; antes que o bonde
atingisse à Rua da Constituição, todos os rumores guerreiros tinham
cessado, e quem não estivesse avisado havia de supor-se em tempos
normais.
Quaresma chegou-se para o centro do banco e ia ler o jornal que
comprara. Desdobrou-o vagarosamente, mas foi logo interrompido;
bateram- lhe no ombro. Voltou-se.
- Oh! general!
O encontro foi cordial. O General Albernaz gostava dessas cerimônias
e tinha mesmo um prazer, uma deliciosa emoção em reatar
conhecimentos que se tinham enfraquecido por uma separação qualquer.
Estava fardado, com aquele seu uniforme maltratado; não trazia
espada e o pince- nez continuava preso por um trancelim de ouro que
lhe passava por detrás da orelha esquerda.
- Então veio ver a coisa?
- Vim. Já me apresentei ao marechal,
- “Eles” vão ver com quem se meteram. Pensam que tratam com o
Deodoro, enganam-se!... A República, graças a Deus, tem agora um
homem na sua frente... O “caboclo” é de ferro”... No Paraguai...
- O senhor conheceu-o lá, não, general?
- Isto é... Não chegamos a nos encontrar, mas o Camisão... É duro,
o homem. Estou como encarregado das munições... É fino o “caboclo”:
não me quis no litoral. Sabe muito bem quem sou e que munição que
saia das minhas mãos, é munição... Lá, no depósito, não me sai um
caixote que eu não examine... É necessário... No Paraguai, houve
muita desordem e comilança: mandou-se muita cal por pólvora - não
- Não.
- Pois foi. O meu gosto era ir para as praias, para o combate; mas
o “homem” quer que eu fique com as munições... Capitão manda,
marinheiro faz... Ele sabe lá...
Deu de ombros, concertou o trancelim que já caía da orelha e esteve
calado um instante. Quaresma perguntou:
- Como vai a família?
- Bem. Sabe que Quinota casou-se?
- Sabia, o Ricardo me disse. E Dona Ismênia, como vai?
A fisionomia do general toldou-se e respondeu como a contragosto:
- Vai no mesmo.
O pudor de pai tinha-o impedido de dizer toda a verdade. A filha
enlouquecera de uma loucura mansa e infantil. Passava dias inteiros
calada, a um canto, olhando estupidamente tudo, com um olhar morto
de estátua, numa atonia de inanimado, como que caíra em
imbecilidade; mas vinha uma hora, porém, em que se penteava toda,
enfeitava-se e corria à mãe, dizendo: “Apronta-me, mamãe. O meu
noivo não deve tardar... é hoje o meu casamento.” Outras vezes
recortava papel, em forma de participações, e escrevia: Ismênia de
Albernaz e Fulano (variava) participam o seu casamento.
O general já consultara uma dúzia de médicos, o espiritismo e agora
andava às voltas com um feiticeiro milagroso; a filha, porém, não
sarava, não perdia a mania e cada vez mais se embrenhava o seu
espírito naquela obsessão de casamento, alvo que fizeram ser da sua
vida, a que não atingira, aniquilando-se, porém, o seu espírito e a
sua mocidade em pleno verdor.
Entristecia o seu estado aquela casa outrora tão alegre, tão
festiva. Os bailes tinham diminuído; e, quando eram obrigados a dar
um, nas datas principais, a moça, com todos os cuidados, à custa de
todas as promessas, era levada para a casa da irmã casada, e lá
ficava, enquanto as outras dançavam, um instante esquecidas da irmã que
Albernaz não quis revelar aquela dor de sua velhice; reprimiu a
emoção e continuou no tom mais natural, naquele seu tom familiar e
íntimo que usava com todos:
- Isto é uma infâmia, Senhor Quaresma. Que atraso para o país! E os
prejuízos? Um porto destes fechado ao comércio nacional, quantos
anos de retardamento não representa!
O major concordou e mostrou a necessidade de prestigiar o Governo,
de forma a tornar impossível a reprodução de levantes e
insurreições.
- Decerto, aduziu o general. Assim não progredimos, não nos
adiantamos. E no estrangeiro que mau efeito!
O bonde chegara ao Largo de São Francisco e os dois se separaram.
Quaresma foi direitinho ao Largo da Carioca e Albernaz seguiu para a
Rua do Rosário.
Olga viu entrar seu padrinho sem aquela alegria expansiva de sempre.
Não foi indiferença que sentiu, foi espanto, assombro, quase medo,
embora soubesse perfeitamente que ele estava a chegar. Entretanto,
não havia mudança na fisionomia de Quaresma, no seu corpo, em todo
ele. Era o mesmo homem baixo, pálido, com aquele cavanhaque apontado
e o olhar agudo por detrás do pince-nez... Nem mesmo estava mais
queimado e o jeito de apertar os lábios era o mesmo que ela conhecia
há tantos anos. Mas, parecia-lhe mudado e ter entrado impelido,
empurrado por uma força estranha, por um turbilhão; bem examinando,
entretanto, verificou que ele entrara naturalmente, com o seu passo
miúdo e firme. Donde lhe vinha então essa coisa que a acanhava, que
lhe tirara a sua alegria de ver pessoa tão amada? Não atinou. Estava
lendo na sala de jantar e Quaresma não se fazia anunciar; ia
entrando conforme o velho hábito. Respondeu ao padrinho ainda sob a
dolorosa impressão da sua entrada.
- Papai saiu; e o Armando está lá embaixo escrevendo.
De fato, ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia
para o “clássico” um grande artigo sobre “Ferimentos por arma de
fogo”. O seu último truc intelectual era este do clássico. Buscava
nisto uma distinção, uma separação intelectual desses meninos por aí
que escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e
sobretudo, um doutor, não podia escrever da mesma forma que eles. A
sua sabedoria superior e o seu título “acadêmico” não podia usar da
mesma língua, dos mesmos modismos, da mesma sintaxe que esses
poetastros e literatecos. Veio-lhe então a idéia do clássico. O
processo era simples: escrevia do modo comum, com as palavras e o
jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com
vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor,
isto por esto, quão grande ou tão grande por quamanho, sarapintava
tudo de ao invés, empós, e assim obtinha o seu estilo clássico que
começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral.
Gostava muito da expressão - às rebatinhas; usava-a a todo momento
e, quando a punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu
estilo uma força e um brilho pascalianos e às suas idéias uma
suficiência transcendente. De noite, lia o padre Vieira, mas logo às
primeiras linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se “físico”,
tratado de mestre, em pleno Seiscentos, prescrevendo sangria e água
quente, tal e qual o doutor Sangrado.
A sua tradução estava quase no fim, já estava bastante prático, pois
com o tempo adquirira um vocabulário suficiente e a versão era feita
mentalmente, em quase metade, logo na primeira escrita. Recebeu o
recado da mulher, anunciando-lhe a visita, com um pequeno
aborrecimento, mas, como teimasse em não encontrar um equivalente
clássico para “orifício”, julgou útil a interrupção. Queria pôr
“buraco”, mas era plebeu; “orifício”, se bem que muito usado, era,
entretanto, mais digno. Na volta talvez encontrasse, pensou; e subiu
à sala de jantar. Ele entrou prazenteiro, com o seu grande bigode
esfarelado, o seu rosto redondo e encontrou padrinho e afilhada
empenhados em uma discussão sobre autoridade.
Dizia ela:
- Eu não posso compreender esse tom divino com que os senhores
falam da autoridade. Não se governa mais em nome de Deus, por que
então esse respeito, essa veneração de que querem cercar os
governantes?
O doutor, que ouvira toda a frase, não pôde deixar de objetar:
- Mas é preciso, indispensável... Nós sabemos bem que eles são
homens como nós, mas, se não for assim tudo vai por água abaixo.
Quaresma acrescentou:
- É em virtude das próprias necessidades internas e externas da
nossa sociedade que ela existe... Nas formigas, nas abelhas...
- Admito. Mas há revoltas entre as abelhas e formigas, e a
autoridade se mantém lá à custa de assassínios, exações e
violências?
- Não se sabe... Quem sabe? Talvez... fez evasivamente Quaresma.
O doutor não teve dúvidas e foi logo dizendo:
- Que temos nós com as abelhas? Então nós, os homens, o pináculo da
escala zoológica, iremos buscar normas de vida entre insetos?
- Não é isso, meu caro doutor; buscamos nos exemplos deles a
certeza da generalidade do fenômeno, da sua imanência, por assim
dizer, disse Quaresma com doçura.
Ele não tinha acabado a explicação e já Olga refletia:
- Ainda se essa tal autoridade trouxesse felicidade - vá; mas não;
de que vale?
- Há de trazer, afirmou categoricamente Quaresma. A questão é
consolidá-la.
Conversaram ainda muito tempo. O major contou a sua visita a
Floriano, a sua próxima incorporação ao batalhão “Cruzeiro do Sul”.
O doutor teve uma ponta de inveja, quando ele se referiu ao modo
familiar por que Floriano o tratara. Fizeram um pequeno lunch e
Quaresma saiu.
Sentia necessidade de rever aquelas ruas estreitas, com as suas
lojas profundas e escuras, onde os empregados se moviam como em um
subterrâneo. A tortuosa Rua dos Ourives, a esburacada Rua da
Assembléia, a casquilha Rua do Ouvidor davam-lhe saudades.
A vida continuava a mesma. Havia grupos parados e moças a passeio;
no Café do Rio, uma multidão. Eram os avançados, os “jacobinos”, a
guarda abnegada da República, os intransigentes, a cujos olhos, a
moderação, a tolerância e o respeito pela liberdade e a vida alheias
eram crimes de lesa-pátria, sintomas de monarquismo criminoso e
abdicação desonesta diante do estrangeiro. O estrangeiro era
sobretudo o português, o que não impedia de haver jornais
“jacobiníssimos” redigidos por portugueses da mais bela água.
A não ser esse grupo gesticulante e apaixonado, a Rua do Ouvidor era
a mesma. Os namoros se faziam e as moças iam e vinham. Se uma bala
zunia no alto céu azul, luminoso, as moças davam gritinhos de gata,
corriam para dentro das lojas, esperavam um pouco e logo voltavam
sorridentes, o sangue a subir às faces pouco e pouco, depois da
palidez do medo.
Quaresma jantou num restaurant e dirigiu-se ao quartel, que
funcionava provisoriamente num velho cortiço condenado pela higiene,
lá pelos lados da Cidade Nova. Tinha o tal cortiço andar térreo e
sobrado, ambos divididos em cubículos do tamanho de camarotes de
navio. No sobrado, havia uma varanda de grade de pau e uma escada de
madeira levava até lá, escada tosca e oscilante, que gemia à menor
passada. A casa da ordem funcionava no primeiro quartinho do sobrado
e o pátio, já sem as cordas de secar ao sol a roupa, mas com as
pedras manchadas das barrelas e da água de sabão, servia para a
instrução dos recrutas. O instrutor era um sargento reformado, um
tanto coxo, e admitido no batalhão com o posto de alferes, que
gritava com uma demora majestosa: “om - brô”... armas!
O major entregou a sua quota ao coronel e este esteve a mostrar-lhe
o modelo do fardamento.
Era muito singular essa fantasia de seringueiro: o dólmã era
verdegarrafa e tinha uns vivos azul-ferrete, alamares dourados e
quatro estrelas prateadas, em cruz, na gola.
Uma gritaria fê-los vir até à varanda. Entre soldados entrava um
homem, a se debater, a chorar e a implorar, ao mesmo tempo, levando
de quando em quando uma reflada.
- É o Ricardo! exclamou Quaresma. O senhor não o conhece, coronel?
continuou ele com interesse e piedade.
Bustamante estava impassível na varanda e só respondeu depois de
algum tempo:
- Conheço... É um voluntário recalcitrante, um patriota rebelde.
Os soldados subiram com o “voluntário” e Ricardo logo que deu com o
major, suplicou-lhe:
- Salve-me major!
Quaresma chamou de parte o coronel, rogou-lhe e suplicou-lhe, mas
foi inútil... Há necessidade de gente... Enfim, fazia-o cabo.
Ricardo, de longe, seguia a conversa dos dois: adivinhou a recusa e
exclamou:
- Eu sirvo sim, sim, mas dêem-me o meu violão.
Bustamante perfilou-se e gritou aos soldados:
- Restituam o violão ao cabo Ricardo!
II
VOCÊ, QUARESMA, É UM VISIONÁRIO
Oito horas da manhã. A cerração ainda envolve tudo. Do lado da
terra, mal se enxergam as partes baixas dos edifícios próximos; para
o lado do mar, então, a vista é impotente contra aquela treva
esbranquiçada e flutuante, contra aquela muralha de flocos e opaca,
que se condensa ali e aqui em aparições, em semelhanças de coisas. O
mar está silencioso: há grandes intervalos entre o seu fraco
marulho. Vê-se da praia um pequeno trecho, sujo, coberto de algas, e
o odor da maresia parece mais forte com a neblina. Para a esquerda e
para a direita, é o desconhecido, o Mistério. Entretanto, aquela
pasta espessa, de uma claridade difusa, está povoada de ruídos. O
chiar das serras vizinhas, os apitos de fábricas e locomotivas, os
guinchos de guindastes dos navios enchem aquela manhã indecifrável e
taciturna; e ouve-se mesmo a bulha compassada de remos que ferem o
mar. Acredita-se, dentro daquele decoro, que é Caronte que traz a
sua barca para uma das margens do Estige...
Atenção! Todos perscrutam a cortina de névoa pastosa. Os rostos
estão alterados; parece que do seio da bruma vão surgir demônios...
Não se ouve mais a bulha: o escaler afastou-se. As fisionomias
respiram aliviadas...
Não é noite, não é dia; não é o dilúculo, não é o crepúsculo; é a
hora da angústia, é a luz da incerteza. No mar, não há estrelas nem
sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro às paredes
brancas das casas. A nossa miséria é mais completa e a falta
daqueles mudos marcos da nossa atividade dá mais forte percepção do
nosso isolamento no seio da natureza grandiosa.
Os ruídos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da
terra ou são alucinações auditivas, A realidade só nos vem do pedaço
de mar que se avista, marulhando com grandes intervalos, fracamente,
tenuemente, a medo, de encontro à areia da praia, suja de bodelhas,
algas e sargaços.
Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela
relva que continua a praia. Alguns já cochilam; outros procuram com
os olhos o céu através do nevoeiro que lhes umedece o rosto.
O cabo Ricardo Corado dos Outros, de refle à cintura e gorro à
cabeça, sentado numa pedra, está de parte, sozinho, e olha aquela
manhã angustiosa.
Era a primeira vez que via a cerração assim perto do mar, onde ela
faz sentir toda a sua força de desesperar. Em geral, ele só tinha
olhos para as alvoradas claras e purpurinas, macias e fragrantes;
aquele amanhecer brumoso e feio, era uma novidade para ele.
Sob o fardamento de cabo, o menestrel não se aborrece. Aquela vida
solta da caserna vai-lhe bem n’alma; o violão está lá dentro e, em
horas de folga, ele o experimenta, cantarolando em voz baixa. É
preciso não enferrujar os dedos... O seu pequeno aborrecimento é não
poder, de quando em quando, soltar o peito.
O comandante do destacamento é Quaresma que talvez consentisse...
O major está no interior da casa que serve de quartel, lendo. O seu
estudo predileto é agora artilharia. Comprou compêndios; mas, como
sua instrução é insuficiente, da artilharia vai à balística, da
balística à mecânica, da mecânica ao cálculo e à geometria
analítica; desce mais a escada; vai à trigonometria, à geometria e à
álgebra e à aritmética. Ele percorre essa cadeia de ciências
entrelaçadas com uma fé de inventor. Aprende uma noção
elementaríssima após um rosário de consultas, de compêndio em
compêndio; e leva assim aqueles dias de ócio guerreiro enfronhado na
matemática, nessa matemática rebarbativa e hostil aos cérebros que
já não são mais moços.
Há no destacamento um canhão Krupp, mas ele nada tem a ver com o
mortífero aparelho; contudo, estuda artilharia. É encarregado dele o
Tenente Fontes, que não dá obediência alguma ao patriota major.
Quaresma não se incomoda com isso; vai aprendendo lentamente a
servir-se da boca de fogo e submete-se à arrogância do subalterno.
O comandante do “Cruzeiro do Sul”, o Bustamante da barba mosaica,
continua no quartel, superintendendo a vida do batalhão. A unidade
tem poucos oficiais e muito poucas praças; mas o Estado paga o pré
de quatrocentas. Há falta de capitães, o número de alferes está
justo, o de tenentes quase, mas já há um major, que é Quaresma, e o
comandante, Bustamante, que, por modéstia, se fez simplesmente
tenente-coronel.
Tem quarenta praças o destacamento que Quaresma comanda, três
alferes, dois tenentes; mas os oficiais pouco aparecem. Estão
doentes ou licenciados e só ele, o antigo agricultor do “Sossego”, e
um alferes, Polidoro, este mesmo só à noite, estão a postos. Um
soldado entrou:
- Senhor comandante, posso ir almoçar?
- Pode. Chama-me o cabo Ricardo.
A praça saiu capengando em cima de grandes botinas; o pobre homem
usava aquela peça protetora como um castigo. Assim que se viu no
mato, que levava à sua casa, tirou-as e sentiu pelo rosto o sopro da
liberdade.
O comandante chegou à janela. A cerração se ia dissipando. Já se via
o sol que brilhava como um disco de ouro fosco.
Ricardo Coração dos Outros apareceu. Estava engraçado dentro do seu
fardamento de caporal. A blusa era curtíssima, sungada; os punhos
lhe apareciam inteiramente; e as calças eram compridíssimas e
arrastavam no chão.
- Como vais, Ricardo?
- Bem. E o senhor major?
- Assim.
Quaresma deitou sobre o inferior e amigo, aquele seu olhar agudo e
demorado:
- Andas aborrecido, não é?
O trovador sentiu-se alegre com o interesse do comandante:
- Não... Para que dizer, major, que sim... Se a coisa for assim até
ao fim, não é mau... O diabo é quando há tiro... Uma coisa, major;
não se poderia, assim, aí pelas horas em que não há que fazer, ir
nas mangueiras, cantar um pouco...
O major coçou a cabeça, alisou o cavanhaque e disse:
- Eu, não sei... É...
- O senhor sabe que isto de cantar baixo é remar em seco... Dizem
que no Paraguai...
- Bem. Cante lá; mas não grite, hein?
Calaram-se um pouco; Ricardo ia partir quando o major recomendou:
- Manda-me trazer o almoço.
Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro também dormir.
As refeições eram-lhe fornecidas por um “frege” próximo e ele dormia
em um quarto daquela edificação imperial. Porque a casa em que se
acantonara o destacamento, era o pavilhão do imperador, situado na
antiga Quinta da Ponta do Caju. Ficavam nela também a estação da
estrada de ferro do Rio Douro e uma grande e bulhenta serraria.
Quaresma veio até à porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o
imperador a quisesse para banhos. A cerração se ia dissipando
inteiramente.
As formas das coisas saíam modeladas do seio daquela massa de névoa
pesada; e, satisfeitas, como se o pesadelo tivesse passado. Primeiro
surgiam as partes baixas, lentamente; e por fim, quase
repentinamente, as altas.
À direita, havia a Saúde, a Gamboa, os navios de comércio: galeras
de três mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos à vela - que
iam saindo da bruma, e, por instantes aquilo tudo tinha um ar de
paisagem holandesa; à esquerda, era o saco da Raposa, o Retiro
Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Órgãos azuis,
altos de tocar no céu; em frente, a ilha dos Ferreiros, com os seus
depósitos de carvão; e alongando a vista pelo mar sossegado,
Niterói, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céu azul, à luz
daquela manhã atrasada.
A neblina foi-se e um galo cantou. Era como se a alegria voltasse à
terra; era uma aleluia. Aqueles chiados, aqueles apitos, os guinchos
tinham um acento festivo de contentamento.
Chegou o almoço e o sargento veio dizer a Quaresma que havia duas
deserções.
- Mais duas? fez admirado o major.
- Sim, senhor. O cento e vinte e cinco e o trezentos e vinte não
responderam hoje a revista.
- Faça a parte.
Quaresma almoçava. O Tenente Fontes, o homem do canhão, chegou.
Quase nunca dormia ali; pernoitava em casa, e, durante o dia, vinha
ver as coisas como iam.
Uma madrugada, ele não estava. A treva ainda era profunda. O soldado
de vigia viu lá, ao longe, um vulto que se movia dentro da sombra,
resvalando sobre as águas do mar. Não trazia luz alguma: só o
movimento daquela mancha escura revelava uma embarcação, e também a
ligeira fosforescência das águas. O soldado deu rebate; o pequeno
destacamento pôs-se a postos e Quaresma apareceu.
- O canhão! Já! Avante! ordenou o comandante. E, em seguida,
nervoso, recomendou:
- Esperem um pouco.
Correu a casa e foi consultar os seus compêndios e tabelas.
Demorouse e a lancha avançava, os soldados estavam tontos e um deles
tomou a iniciativa: carregou a peça e disparou-a.
Quaresma reapareceu correndo, assustado e disse, entrecortado pelo
resfolegar:
- Viram bem... a distância... a alça... o ângulo... É preciso ter
sempre em vista a eficiência do fogo.
Fontes veio e sabendo do caso no dia seguinte riu-se muito:
- Ora, major, você pensa que está em um polígono, fazendo estudos
práticos... Fogo para diante!
E assim era. Quase todas as tardes havia bombardeio, do mar para as
fortalezas, e das fortalezas para o mar; e tanto os navios como os
fortes saiam incólumes de tão terríveis provas.
Lá vinha uma ocasião, porém, que acertavam, então os jornais
noticiavam: “Ontem, o forte Acadêmico fez um maravilhoso disparo.
Com o canhão tal, meteu uma bala no ‘Guanabara’.” No dia seguinte, o
mesmo jornal retificava, a pedido da bateria do cais Pharoux que era
a que tinha feito o disparo certeiro. Passavam-se dias e a coisa já
estava esquecida, quando aparecia uma carta de Niterói, reclamando
as honras do tiro para a fortaleza de Santa Cruz.
O Tenente Fontes chegou e esteve examinando o canhão com o faro de
entendedor. Havia uma trincheira de fardos de alfafa e a boca da
peça saía por entre os fiapos da palha, como as goelas de um animal
feroz oculto entre ervas.
Olhava o horizonte, depois de exame atento ao canhão, e considerava
a ilha das Cobras, quando ouviu o gemer do violão e uma voz que
dizia:
Prometo pelo Santíssimo Sacramento...
Dirigiu-se para o local donde partiam os sons e se lhe deparou este
lindíssimo quadro: à sombra de uma grande árvore, os soldados
deitados ou sentados em círculo, em torno de Ricardo Coração dos
Outros, que entoava endechas magoadas.
As praças tinham acabado de almoçar e beber a pinga, e estavam tão
embevecidas na canção de Ricardo que não deram pela chegada do jovem
oficial.
- Que é isto? disse ele severamente.
Os soldados levantaram-se todos, em continência; e Ricardo, com a
mão direita no gorro, perfilado, e a esquerda, segurando o violão,
que repousava no chão, desculpou-se:
- “Seu” tenente, foi o major quem permitiu. Vossa Senhoria sabe que
se nós não tivéssemos ordem, não iríamos brincar.
- Bem. Não quero mais isto, disse o oficial.
- Mas, objetou Ricardo, o Senhor Major Quaresma...
- Não temos aqui Major Quaresma. Não quero, já disse!
Os soldados debandaram e o Tenente Fontes seguiu para a velha casa
imperial, ao encontro do major do “Cruzeiro do Sul”. Quaresma
continuava no seu estudo, um rolar de Sísifo, mas voluntário, para a
grandeza da pátria. Fontes foi entrando e dizendo:
- Que é isto, “Seu” Quaresma! Então o senhor permite cantorias no
destacamento?
O major não se lembrava mais da coisa e ficou espantado com o ar
severo e ríspido do moço. Ele repetiu:
- Então o senhor permite que os inferiores cantem modinhas e toquem
violão, em pleno serviço?
- Mas que mal faz? Ouvi dizer que em campanha...
- E a disciplina? E o respeito?
- Bem, vou proibir, disse Quaresma.
- Não é preciso. Já proibi.
Quaresma não se deu por agastado, não percebeu motivo para
agastamento e disse com doçura:
- Fez bem.
Em seguida perguntou ao oficial o modo de extrair a raiz quadrada de
uma fração decimal; o rapaz ensinou-lhe e eles estiveram
cordialmente conversando sobre coisas vulgares. Fontes era noivo de
Lalá, a terceira filha do General Albernaz, e esperava acabar a
revolta para efetuar o casamento. Durante uma hora a conversa entre
os dois versou sobre este pequenino fato familiar a que estavam
ligados aqueles estrondos, aqueles tiros, aquela solene disputa
entre duas ambições. Subitamente, a corneta feriu o ar com a sua voz
metálica. Fontes assestou o ouvido; o major perguntou:
- Que toque é?
- Sentido.
Os dois saíram. Fontes perfeitamente fardado; e o major apertando o
talim, sem encontrar jeito, tropeçando na espada venerável que
teimava em se lhe meter entre as pernas curtas. Os soldados já
estavam nas trincheiras, armas à mão; o canhão tinha ao lado a
munição necessária. Uma lancha avançava lentamente, com a proa alta
assestada para o posto. De repente, saiu de sua borda um golfão de
fumaça espessa: Queimou! - gritou uma voz. Todos se abaixaram, a
bala passou alto, zunindo, cantando, inofensiva. A lancha continuava
a avançar impávida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a
assistir o tiroteio, e fora um destes que gritara: queimou!
E assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às
trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer,
chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá licença
que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o
homem fazia a pontaria e um tiro partia.
Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da
cidade... Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço
do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar,
no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís
de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o
céu.
Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes
como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de
teatro: “Queimou Santa Cruz! Agora é o ‘Aquidabã’! Lá vai”. E dessa
maneira a revolta ia correndo familiarmente, entrando nos hábitos e
nos costumes da cidade.
No cais Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jornais,
engraxates, quitandeiros ficavam atrás das portadas, dos urinários,
das árvores, a ver, a esperar a queda das balas; e quando acontecia
cair uma, corriam todos em bolo, a apanhá-la como se fosse uma moeda
ou guloseima,
As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de
relógio, lapiseiras, feitas com as pequenas balas de fuzis:
faziam-se também coleções das médias e com os seus estojos de metal,
areados, polidos, lixados, ornavam os consolos, os dunkerques das
casas médias; as grandes, os “melões” e as “abóboras”, como
chamavam, guarneciam os jardins, como vasos de faiança ou estátuas.
A lancha continuava a atirar. Fontes fez um disparo. O canhão
vomitou o projétil, recuou um pouco e logo foi posto em posição. A
embarcação respondeu e o rapazote gritou: queimou!
Eram sempre esses garotos que anunciavam os tiros do inimigo. Mal
viam o fuzilar breve e a fumaça, lá longe, no navio, jorrar devagar,
muito pesada, gritavam: - queimou!
Houve um em Niterói que teve o seu quarto de hora de celebridade.
Chamavam-no “Trinta-Réis”; os jornais do tempo ocuparam-se com ele,
fizeram-se subscrições a seu favor. Um herói! Passou a revolta e foi
esquecido, tanto ele como a “Luci”, uma bela lancha que chegou
fazer-se entidade na imaginação da urbs, a interessá-la, a criar
inimigos e admiradores.
A embarcação deixou de provocar a fúria do posto do Caju, e Fontes
deu instruções ao seu chefe da peça, e foi-se embora.
Quaresma recolheu-se no seu quarto e continuou os seus estudos
guerreiros. Os mais dias que passou naquele extremo da cidade não
eram diferentes deste. Os acontecimentos eram os mesmos e a guerra
caía na banalidade da repetição dos mesmos episódios.
A espaços, quando o aborrecimento lhe vinha, saía. Descia a cidade e
deixava o posto entregue a Polidoro ou a Fontes, se estava.
Raras vezes o fazia de dia, porque Polidoro, o mais assíduo,
marceneiro de profissão e em atividade numa fábrica de móveis, só
vinha à noite.
No centro da cidade, a noite era alegre e jovial. Havia muito
dinheiro, o governo pagava soldos dobrados, e, às vezes,
gratificações, além do que havia também a morte sempre presente; e
tudo isso estimulava o divertir-se. Os teatros eram freqüentados e
os restaurants noturnos também.
Quaresma, porém, não se metia naquele ruído de praça semi-sitiada.
Ia às vezes ao teatro, à paisana, e, logo acabado o espetáculo,
voltava para o quarto da cidade ou para o posto.
Em outras tardes, logo que Polidoro chegava, saía a pé, pelas ruas
dos arredores, pelas praias até ao Campo de São Cristóvão.
Ia vendo aquela sucessão de cemitérios, com as suas campas alvas que
sobem montanhas, como carneiros tosquiados e limpos a pastar;
aqueles ciprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe
representava que aquela parte da cidade era feudo e senhorio da
morte.
As casas tinham um aspecto fúnebre, recolhidas e concentradas; o mar
marulhava lugubremente na ribanceira lodosa; as palmeiras ciciavam
doridas; e até o tilintar da campainha dos bondes era triste e
lúgubre.
A paisagem se impregnava da Morte e o pensamento de quem passava ali
mais ainda, para fazer sentir nela tão forte aspecto funéreo.
Foi vindo até ao campo; aí deu-lhe vontade de ver a sua antiga casa
e afinal entrou na residência do General Albernaz. Devia-lhe aquela
visita e aproveitou o ensejo.
Acabavam de jantar e jantara com o general, além do Tenente Fontes e
o Almirante Caldas, o comandante de Quaresma, o Tenente-Coronel
Inocêncio Bustamante.
Bustamante era um comandante ativo, mas dentro do quartel, Não havia
quem como ele se interessasse pelos livros, pela boa caligrafia, com
que eram escritos os livros mestres, as relações de mostra, os mapas
de companhia e outros documentos. Com auxílio deles, a organização
do seu batalhão era irrepreensível; e, para não deixar de vigiar a
escrituração, aparecia de onde em onde nos destacamentos do seu
corpo.
Havia dez dias que Quaresma o não via. Após os cumprimentos, ele
logo perguntou ao major:
- Quantas deserções?
- Até hoje, nove, disse Quaresma.
Bustamante coçou a cabeça desesperado e refletiu:
- Eu não sei o que tem essa gente... é um desertar sem nome...
Falta-lhes patriotismo!
- Fazem muito bem... Ora! disse o almirante.
Caldas andava aborrecido, pessimista. O seu processo ia mal e até
agora o governo não lhe tinha dado coisa alguma. O seu patriotismo
se enfraquecia com o diluir-se da esperança de ser algum dia
vice-almirante. É verdade que o governo ainda não organizara a sua
esquadra; entretanto, pelo rumor que corria, ele não comandaria nem
uma divisão. Uma iniqüidade! Era velho um pouco, é verdade; mas, por
não ter nunca comandado, nessa matéria ele podia despender toda uma
energia moça.
- O almirante não deve falar assim... A pátria está logo abaixo da
humanidade.
- Meu caro tenente, o senhor é moço... Eu sei o que são essas
coisas...
- Não se deve desesperar... Não trabalhamos para nós, mas para os
outros e para os vindouros, continuou Fontes persuasivo.
- Que tenho eu com eles? fez agastado Caldas,
Bustamante, o general e Quaresma assistiam a pequena discussão
calados e os dois primeiros um tanto sorridentes com a fúria de
Caldas, que não se cansava de dançar a perna e alisar os longos
favoritos brancos. O tenente respondeu:
- Muito, almirante. Nós todos devemos trabalhar para que surjam
épocas melhores, de ordem, de felicidade e elevação moral.
- Nunca houve e nunca haverá! disse de um jato Caldas.
- Eu também penso assim, acrescentou Albernaz.
- Isto há de sempre ser o mesmo, aduziu ceticamente Bustamante.
O major nada disse; parecia desinteressado da conversa. Fontes, em
face daquelas contestações, ao contrário de seus congêneres de
seita, não se agastou. Ele era magro e chupado, moreno carregado e a
oval do seu rosto estava amassada aqui e ali.
Com a sua voz arrastada e nasal, agitando a mão direita no jeito
favorito dos sermonários, depois de ouvir todos, falou com unção:
- Houve já um esboço: a Idade Média.
Ninguém ali lhe podia contestar. Quaresma só sabia história do
Brasil e os outros nenhuma.
E a sua afirmação fez calar todos, embora no íntimo duvidosos. É uma
curiosa Idade Média, essa de elevação moral, que a gente não sabe
onde fica, em que ano? Se a gente diz: “No tempo de Clotário, ele
próprio, com suas mãos, atacou fogo na palhoça em que encerrava o
seu filho Crame mais a mulher deste e filhos” - o positivista
objeta: “Ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente da
igreja”. “São Luís”, diremos logo nós, “quis executar um senhor
feudal porque mandou enforcar três crianças que tinham morto um
coelho nas suas matas”. Objeta o fiel: “Você não sabe que a nossa
Idade Média vai até o aparecimento da Divina Comédia? São Luís já
era a decadência”... Citam-se as epidemias de moléstias nervosas, a
miséria dos campônios, as ladroagens a mão armada dos barões, as
alucinações do milênio, as cruéis matanças que Carlos Magno fez aos
saxões; eles respondem: uma hora que ainda não estava perfeitamente
estabelecido o ascendente moral da igreja; outra que ele já tinha
desaparecido.
Nada disso foi objetado ao positivista e a conversa resvalou para a
revolta. O almirante criticava severamente o governo.
Não tinha plano algum, levava a dar tiros à toa; na sua opinião, já
devia ter feito todo o esforço para ocupar a ilha das Cobras, embora
isso custasse rios de sangue. Bustamante não tinha opinião
assentada; mas Quaresma e Fontes julgavam que não: seria uma
aventura arriscada e de uma improficuidade patente. Albernaz ainda
não tinha dado o seu aviso, e veio a fazê-lo assim:
- Mas nós reconhecemos Humaitá, e por pouco!
- Entretanto, não a tomaram, disse Fontes. As condições naturais
eram outras e assim mesmo o reconhecimento foi perfeitamente
inútil... O senhor sabe, esteve lá!
- Isto é... Adoeci e vim um pouco antes para o Brasil, mas o
Camisão disse-me que foi arriscado.
Quaresma voltara ao silêncio. Ele procurava ver Ismênia. Fontes lhe
tinha inteirado do seu estado e o major se sentia por qualquer coisa
preso à moléstia da moça. Viu todos: Dona Maricota, sempre ativa e
diligente; Lalá, a arrancar, com o olhar, o noivo da conversa
interminável, e as outras que vinham, de quando em quando, da sala
de visitas à sala de jantar onde ele estava. Por fim, não se
conteve, perguntou. Soube que estava em casa da irmã casada e ia
pior, cada vez mais abismada na sua mania, enfraquecendo-se de
corpo. O general contou tudo com franqueza a Quaresma e quando
acabou de narrar aquela sua desgraça íntima, disse com um longo
suspiro:
- Não sei, Quaresma... Não sei.
Eram dez horas quando o major se despediu. Voltou de bonde para a
Ponta do Caju. Saltou e recolheu-se logo a seu quarto. Vinha cheio
da perturbação especial que põe em nós o luar que estava lindo,
terno e leitoso, naquela noite. É uma emoção de desafogo do corpo,
de delíquio; parece que nos tiram o envoltório material e ficamos só
alma, envolvidos numa branda atmosfera de sonhos e quimeras. O major
não colhia bem a sensação transcendente, mas sofria sem perceber o
efeito da luz pálida e fria do luar. Deitou-se um pouco, vestido,
não por sono, mas em virtude daquela doce embriaguez que o astro lhe
tinha posto nos sentidos.
Dentro em pouco Ricardo veio chamá-lo: o marechal estava aí. Era seu
hábito sair à noite, às vezes, de madrugada, e ir de posto em posto.
O fato se espalhou pelo público que o apreciava extraordinariamente,
e o presidente teve mais esse documento para firmar a sua fama de
estadista consumado.
Quaresma veio ao seu encontro. Floriano vestia chapéu de feltro
mole, abas largas, e uma curta sobrecasaca surrada. Tinha um ar de
malfeitor ou de exemplar chefe de família em aventuras
extraconjugais.
O major cumprimentou-o e esteve a dar-lhe notícias do ataque que
fora feito ao seu posto, há dias passados. O marechal respondia por
monossílabos preguiçosos e olhava ao redor. Quase ao despedir-se,
falou mais, dizendo vagarosamente, lentamente:
- Hei de mandar pôr um holofote aqui.
Quaresma veio acompanhá-lo até ao bonde. Atravessaram o velho sítio
de recreio dos imperadores. Um pouco afastada da estação uma
locomotiva, semi-acesa, resfolegava. Semelhava roncar, dormindo; os
carros, pequenos, banhados pelo luar, muito quietos, sossegados como
que dormiam. As anosas mangueiras, com falta de galhos aqui e ali,
pareciam polvilhadas preciosamente de prata. O luar estava
magnífico. Os dois andavam, o marechal perguntou:
- Quantos homens tem você?
- Quarenta.
O marechal mastigou um: “não é muito”; e voltou ao mutismo. Num dado
momento, Quaresma viu-lhe o rosto inundado pela luz da lua.
Pareceu-lhe mais simpática a fisionomia do ditador. Se lhe
falasse...
Preparou a pergunta; mas não teve coragem de pronunciá-la.
Continuaram a andar. O major pensou; que é que tem? não há
desrespeito algum. Aproximaram-se do portão. Num dado momento como
que houve uma bulha atrás. Quaresma voltou-se, mas Floriano quase
não o fez.
Os edifícios da serraria pareciam cobertos de neve, tanto era o
branco luar. O major continuou a mastigar a sua pergunta; urgia, era
indispensável; o portão estava a dois passos. Tomou coragem, ousou e
falou:
- Vossa Excelência já leu o meu memorial, marechal?
Floriano respondeu lentamente, quase sem levantar o lábio pendente:
- Li.
Quaresma entusiasmou-se:
- Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este pais. Desde que se
cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que
Vossa Excelência teve a bondade de ler; desde que se corrijam os
erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do
país, Vossa Excelência verá que tudo isto muda, que, em vez de
tributários, ficaremos com a nossa independência feita... Se Vossa
Excelência quisesse...
À proporção que falava, mais Quaresma se entusiasmava. Ele não podia
ver bem a fisionomia do ditador, encoberto agora como lhe estava o
rosto pelas abas do chapéu de feltro; mas, se a visse, teria de
esfriar, pois havia na sua máscara sinais do aborrecimento mais
mortal. Aquele falatório de Quaresma, aquele apelo à legislação, a
medidas governamentais, iam mover-lhe o pensamento, por mais que não
quisesse. O presidente aborrecia-se. Num dado momento, disse:
- Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de
cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse...
Quaresma espantou-se, titubeou, mas retorquiu:
- Mas, não é isso, marechal. Vossa Excelência com o seu prestígio e
poder, está capaz de favorecer, com medidas enérgicas e adequadas, o
aparecimento de iniciativas, de encaminhar o trabalho, de
favorecê-lo e torná-lo remunerador... Bastava, por exemplo...
Atravessavam o portão da velha quinta de Pedro I. O luar continuava
lindo, plástico e opalescente. Um grande edifício inacabado que
havia na rua parecia terminado, com vidraças e portas feitas com a
luz da lua. Era um palácio de sonho.
Floriano já ouvia Quaresma muito aborrecido. O bonde chegou; ele se
despediu do major, dizendo com aquela sua placidez de voz:
- Você, Quaresma, é um visionário...
O bonde partiu. A lua povoava os espaços, dava fisionomia às coisas,
fazia nascer sonhos em nossa alma, enchia a vida, enfim, com a sua
luz emprestada...
III
... E TORNARAM LOGO SILENCIOSOS...
- Eu tenho experimentado tudo, Quaresma, mas não sei... não há
meio!
- Já a levou a um médico especialista?
- Já. Tenho corrido médicos, espíritas, até feiticeiros, Quaresma!
E os olhos do velho se orvalharam por baixo do pince-nez. Os dois se
haviam encontrado na pagadoria da Guerra e vinham pelo campo de
Sant’Ana, a pé, andando a pequenos passos e conversando. O general
era mais alto que Quaresma, e enquanto este tinha a cabeça sobre um
pescoço alto, aquele a tinha metida entre os ombros proeminentes,
como cotos de asas. Albernaz reatou:
- E remédios! Cada médico receita uma coisa; os espíritas são os
melhores, dão homeopatia; os feiticeiros tisanas, rezas e
defumações... Eu não sei, Quaresma!
E levantou os olhos para o céu, que estava um tanto plúmbeo. Não se
demorou, porém, muito nessa postura; o pince-nez não permitia, ja
começava a cair.
Quaresma abaixou a cabeça e andou assim um pouco olhando as
granulações do granito do passeio. Levantou o olhar ao fim de algum
tempo, e disse:
- Por que não a recolhe a uma casa de saúde, general?
- Meu médico já me aconselhou isso... A mulher não quer e agora
mesmo, no estado em que a menina está, não vale a pena...
Falava da filha, da Ismênia, que, naqueles últimos meses, piorara
sensivelmente, não tanto da sua moléstia mental, mais da saúde
comum, vivendo de cama, sempre febril, enlanguescendo, definhando,
marchando a passos largos para o abraço frio da morte.
Albernaz dizia a verdade; para curá-la tanto de sua loucura como da
atual moléstia intercorrente, lançara mão de todos os recursos, de
todos os conselhos apontados por quem quer que fosse.
Era de fazer refletir ver aquele homem, general, marcado com um
curso governamental, procurar médiuns e feiticeiros, para sarar a
filha.
Às vezes até levava-os em casa. Os médiuns chegavam perto da moça,
davam um estremeção, ficavam com uns olhos desvairados, fixos,
gritavam: “Sai, irmão!” - e sacudiam as mãos, do peito para a moça,
de lá para cá, rapidamente, nervosamente, no intuito de descarregar
sobre ela os fluidos milagrosos.
Os feiticeiros tinham outros passes e as cerimônias para entrar no
conhecimento das forças ocultas que nos cercam eram demoradas,
lentas e acabadas. Em geral, eram pretos africanos. Chegavam,
acendiam um fogareiro no quarto, tiravam de um cesto um sapo
empalhado ou outra coisa esquisita, batiam com feixes de ervas,
ensaiavam passos de dança e pronunciavam palavras ininteligíveis. O
ritual era complicado e tinha a sua demora.
Na saída, a pobre Dona Maricota, um tanto já diminuída da sua
atividade e diligência, olhando ternamente aquele grande rosto negro
do mandingueiro, onde a barba branca punha mais veneração e certa
grandeza, perguntava:
- Então, titio?
O preto considerava um instante, como se estivesse recebendo as
últimas comunicações do que não se vê nem se percebe, e dizia com a
sua majestade de africano:
- Vô vê, nhãnhã... Tô crotando mandinga...
Ela e o general tinham assistido a cerimônia e o amor de pais e
também esse fundo de superstição que há em todos nós, levavam a
olhá-la com respeito, quase com fé.
- Então foi feitiço que fizeram à minha filha? perguntava a
senhora.
- Foi, sim, nhãnhã.
- Quem?
- Santo não qué dizê.
E o preto obscuro, velho escravo, arrancado há um meio século dos
confins da África, saía arrastando a sua velhice e deixando naqueles
dois corações uma esperança fugaz.
Era uma singular situação, a daquele preto africano, ainda
certamente pouco esquecido das dores do seu longo cativeiro,
lançando mão dos resíduos de suas ingênuas crenças tribais, resíduos
que tão a custo tinham resistido ao seu transplante forçado para
terras de outros deuses - e empregando-os na consolação dos seus
senhores de outro tempo. Como que os deuses de sua infância e de sua
raça, aqueles sanguinários manipansos da África indecifrável,
quisessem vingá-lo à legendária maneira do Cristo dos Evangelhos...
A doente assistia a tudo aquilo sem compreender e se interessar por
aqueles trejeitos e passes de tão poderosos homens que se
comunicavam, que tinham às suas ordens os seres imateriais, as
existências fora e acima da nossa.
Andando, ao lado de Quaresma, o general lembrava-se de tudo isso e
teve um pensamento amargo contra a ciência, contra os espíritos,
contra os feitiços, contra Deus que lhe ia tirando a filha aos
poucos, sem piedade e comiseração.
O major não sabia o que dizer diante daquela imensa dor de pai e
parecia-lhe toda e qualquer palavra de consolo parva e idiota.
Afinal disse:
- General, o senhor permite que eu a faça ver por um médico?
- Quem é?
- É o marido de minha afilhada... o senhor conhece... É moço, quem
sabe lá! Não acha? Pode ser, não é?
O general consentiu e a esperança de ver curada a filha lhe afagou
as faces enrugadas. Cada médico que consultava, cada espírita, cada
feiticeiro reanimava-o, pois de todos ele esperava o milagre. Nesse
mesmo dia, Quaresma foi procurar o doutor Armando.
A revolta já tinha mais de quatro meses de vida e as vantagens do
governo eram problemáticas. No Sul, a insurreição chegava às portas
de São Paulo, e só a Lapa resistia tenazmente, uma das poucas
páginas dignas e limpas de todo aquele enxurro de paixões. A pequena
cidade tinha dentro de suas trincheiras o Coronel Gomes Carneiro,
uma energia, uma vontade, verdadeiramente isso, porque era sereno,
confiante e justo. Não se desmanchou em violências de apavorado e
soube tornar verdade a gasta frase grandiloqüente: resistir até a
morte.
A ilha do Governador tinha sido ocupada e Majé tomado; os
revoltosos, porém, tinham a vasta baia e a barra apertada, por onde
saiam e entravam, sem temer o estorvo das fortalezas.
As violências, os crimes que tinham assinalado esses dois marcos de
atividade guerreira do governo, chegavam ao ouvido de Quaresma e ele
sofria.
Da ilha do Governador fez-se uma verdadeira mudança de móveis,
roupas e outros haveres. O que não podia ser transportado era
destruído pelo fogo e pelo machado.
A ocupação deixou lá a mais execranda memória e até hoje os seus
habitantes ainda se recordam dolorosamente de um capitão, patriótico
ou da guarda nacional, Ortiz, pela sua ferocidade e insofrido gosto
pelo saque e outras vexações. Passava um pescador, com uma tampa de
peixe, e o capitão chamava o pobre homem:
- Venha cá!
O homem aproximava-se amedrontado e Ortiz perguntava:
- Quanto quer por isso?
- Três mil-réis, capitão.
Ele sorria diabolicamente e familiarmente regateava:
- Você não deixa por menos?... Está caro... Isso é peixe
ordinário... Carapebas! Ora!
- Bem, capitão, vá lá por dois e quinhentos.
- Leve isso lá dentro.
Ele falava na porta de casa. O pescador voltava e ficava um tempo em
pé, demonstrando que esperava o dinheiro. Ortiz balançava a cabeça e
dizia escarninho:
- Dinheiro! hein? Vá cobrar ao Floriano.
Entretanto, Moreira César deixou boas recordações de si e ainda hoje
há lá quem se lembre dele, agradecido por este ou aquele benefício
que o famoso coronel lhe prestou.
As forças revoltosas pareciam não ter enfraquecido; tinham, porém,
perdido dois navios, sendo um destes o “Javari”, cuja reputação na
revolta era das mais altas e consideradas. As forças de terra
detestavam-no particularmente. Era um monitor, chato, raso com a
água, uma espécie de sáurio ou quelônio de ferro, de construção
francesa. A sua artilharia era temida; mas o que sobremodo
enraivecia os adversários era ele não ter quase borda acima d’água,
ficar quase ao nível do mar e fugir assim aos tiros incertos de
terra. As suas máquinas não funcionavam, e a grande tartaruga vinha
colocar-se em posição de combate com auxílio de um rebocador.
Um dia em que estava nas proximidades de Villegagnon, foi a pique.
Não se soube e até hoje não foi esclarecido por que foi. Os
legalistas afirmaram que foi uma bala de Gragoatá; mas os revoltosos
asseguraram que foi a abertura de uma válvula ou um outro acidente
qualquer.
Como o do seu irmão, o “Solimões”, que desapareceu nas costas do
cabo Polônio, o fim do “Javari” ainda está envolvido no mistério.
Quaresma permanecia de guarnição no Caju, e viera receber dinheiro.
Deixara lá Polidoro, pois os outros oficiais estavam doentes ou
licenciados, e Fontes, que, sendo uma espécie de inspetor geral, ao
contrário de seus hábitos, dormira aquela noite no pequeno pavilhão
imperial e ia ficar até à tarde.
Ricardo Coração dos Outros, desde o dia da proibição de tocar
violão, andava macambúzio. Tinham-lhe tirado o sangue, o motivo de
viver, e passava os dias taciturno, encostado a um tronco de árvore,
maldizendo no fundo de si a incompreensão dos homens e os caprichos
do destino. Fontes notara a sua tristeza; e, para minorar-lhe o
desgosto, obrigara a Bustamante a fazê-lo sargento. Não foi sem
custo, porque o antigo veterano do Paraguai encarecia muito essa
graduação e só a dava como recompensa excepcional ou quando
requerida por pessoas importantes.
A vida do pobre menestrel era assim a de um melro engaiolado; e, de
quando em quando, ele se afastava um pouco e ensaiava a voz, para
ver se ainda a tinha e não fugira como o fumo dos disparos.
Quaresma sabendo que dessa maneira o posto estava bem entregue,
resolveu demorar-se mais, e, após despedir-se de Albernaz,
encaminhou-se para a casa do seu compadre, a fim de cumprir a
promessa que fizera ao general.
Coleoni ainda não decidira a sua viagem à Europa. Hesitava,
esperando o fim da rebelião que não parecia estar próximo. Ele nada
tinha com ela; até ali, não dissera a ninguém a sua opinião; e, se
era muito instado, apelava para a sua condição de estrangeiro e
metia-se numa reserva prudente. Mas, aquela exigência de passaporte,
tirado na chefatura de polícia, dava-lhe susto. Naqueles tempos,
toda a gente tinha medo de tratar com autoridades. Havia tanta má
vontade com os estrangeiros, tanta arrogância nos funcionários que
ele não se animava a ir obter o documento, temendo que uma palavra,
que um olhar, que um gesto, interpretados por qualquer funcionário
zeloso e dedicado, não o levassem a sofrer maus quartos de hora.
Verdade é que ele era italiano e a Itália já fizera ver ao ditador
que era uma grande potência, mas no caso de que se lembrava,
tratava-se de um marinheiro, por cuja vida, extinta por uma descarga
das forças legais, Floriano pagara a quantia de cem contos. Ele,
Coleoni, porém, não era marinheiro, e não sabia, caso fosse preso,
se os representantes diplomáticos de seu país tomariam interesse
pela sua liberdade.
De resto, não tendo protestado manter a sua nacionalidade, quando o
governo provisório expediu o famoso decreto de naturalização, era
bem possível que uma ou outra parte se ativessem a isso, para
desinteressar-se dele ou mantê-lo na famosa galeria n. 7, da Casa de
Correção, transformada, por uma penada mágica, em prisão de Estado.
A época era de susto e temor, e todos esses que ele sentia, só os
comunicava à filha, porque o genro cada vez mais se fazia
florianista e jacobino, de cuja boca muita vez ouvia duras
invectivas aos estrangeiros.
E o doutor tinha razão; já obtivera uma graça governamental. Fora
nomeado médico do Hospital de Santa Bárbara, na vaga de um colega,
demitido a bem do serviço público como suspeito por ter ido visitar
um amigo na prisão. Como o hospital, porém, ficasse no ilhéu do
mesmo nome, dentro da baia, em frente à Saúde e a Guanabara ainda
estivesse em mão dos revoltosos, ele nada tinha que fazer, pois até
agora o governo não aceitara os seus oferecimentos de auxiliar o
tratamento dos feridos.
O major foi encontrar pai e filha em casa; o doutor tinha saído, ido
dar uma volta pela cidade, dar arras de sua dedicação à causa legal,
conversando com os mais exaltados jacobinos do Café do Rio, não
esquecendo também de passear pelos corredores do Itamarati,
fazendo-se ver pelos ajudantes-de-ordens, secretários e outras
pessoas influentes no ânimo de Floriano.
A moça viu entrar Quaresma com aquele sentimento estranho que o seu
padrinho lhe causava ultimamente, e esse sentimento mais agudo se
tornava quando o via contar os casos guerreiros do seu destacamento,
a passagem de balas, as descargas das lanchas, naturalmente,
simplesmente, como se fossem feições de uma festa, de uma justa, de
um divertimento qualquer em que a morte não estivesse presente.
Tanto mais que o via apreensivo, deixando perceber numa frase e
noutra desânimo e desesperança.
Na verdade o major tinha um espinho n’alma. Aquela recepção de
Floriano às suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu
entusiasmo e sinceridade nem tampouco a idéia que ele fazia do
ditador, Saíra ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha
esbarrar com um presidente que o chamava de visionário, que não
avaliava o alcance dos seus projetos, que os não examinava sequer,
desinteressado daquelas altas coisas de governo como se não o
fosse!... Era pois para sustentar tal homem que deixava o sossego de
sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem
que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte
sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles,
pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do país, o
progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural?
Pensando assim, havia instantes que lhe vinha um mortal desespero,
uma raiva de si mesmo; mas em seguida considerava: o homem está
atrapalhado, não pode agora; mais tarde com certeza ele fará a
coisa...
Vivia nessa alternativa dolorosa e era ela que lhe trazia
apreensões, desânimo e desesperança, notados por sua afilhada na sua
fisionomia já um pouco acabrunhada.
Não tardou, porém, que, abandonando os episódios da sua vida
militar, Quaresma explicasse o motivo de sua visita.
- Mas qual delas? perguntou a afilhada.
- A segunda, a Ismênia.
- Aquela que estava para casar com o dentista?
- Esta mesmo.
- Ahn! ...
Ela pronunciou este “ahn” muito longo e profundo, como se pusesse
nele tudo que queria dizer sobre o caso. Via bem o que fazia o
desespero da moça, mas via melhor a causa, naquela obrigação que
incrustam no espírito das meninas, que elas se devem casar a todo
custo, fazendo do casamento o pólo e fim da vida, a ponto de parecer
uma desonra, uma injúria ficar solteira.
O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso:
é simplesmente casamento, uma coisa vazia, sem fundamento nem na
nossa natureza nem nas nossas necessidades.
Graças à frouxidão, à pobreza intelectual e fraqueza de energia
vital de Ismênia, aquela fuga do noivo se transformou em certeza de
não casar mais e tudo nela se abismou nessa idéia desesperada.
Coleoni enterneceu-se muito e interessou-se. Sendo bom de fundo,
quando lutava pela fortuna se fez duro e áspero, mas logo que se viu
rico, perdeu a dureza de que se revestira, pois percebia bem que só
se pode ser bom quando se é forte de algum modo.
Ultimamente o major tinha diminuído um pouco o interesse pela moça;
andava atormentado com o seu caso de consciência; entretanto, se não
tinha um constante e particular pensamento pela desdita da filha de
Albernaz, abrangia-a ainda na sua bondade geral, larga e humana.
Não se demorou muito na casa do compadre; ele queria, antes de
voltar ao Caju, passar pelo quartel do seu batalhão. Ia ver se
arranjava uma pequena licença, para visitar a irmã que deixara lá,
no “Sossego”, e de quem tinha notícias, por carta, três vezes por
semana. Eram elas satisfatórias, contudo ele tinha necessidade de
ver tanto ela como o Anastácio, fisionomias com quem se encontrava
diariamente há tantos anos e cuja contemplação lhe fazia falta e
talvez lhe restituísse a calma e a paz de espírito.
A última carta que recebera de Dona Adelaide, havia uma frase de
que, no momento, se lembrava sorrindo: “Não te exponhas muito,
Policarpo. Toma muita cautela”. Pobre Adelaide! Estava a pensar que
esse negócio de balas é assim como a chuva?!...
O quartel ainda ficava no velho cortiço condenado pela higiene, lá
para as bandas da Cidade Nova. Assim que Quaresma apontou na
esquina, a sentinela deu um grande berro, fez uma imensa bulha com a
arma e ele entrou, tirando o chapéu da cabeça baixa, pois estava à
paisana e tinha abandonado a cartola com medo de que esse traje
fosse ferir as suscetibilidades republicanas dos jacobinos.
No pátio, o instrutor coxo adestrava novos voluntários e os seus
majestosos e demorados gritos: ombroôô... armas! mei-ããã volta...
volver! subiam ao céu e ecoavam longamente pelos muros da antiga
estalagem.
Bustamante estava no seu cubículo, mais conhecido por gabinete,
irrepreensível no seu uniforme verde-garrafa, alamares dourados e
vivos azulferrete. Com auxilio de um sargento, examinava a escrita
de um livro quarteleiro.
- Tinta vermelha, sargento! É como mandam as instruções de 1864.
Tratava-se de uma emenda ou de coisa semelhante.
Logo que viu Quaresma entrar, o comandante exclamou radiante:
- O major adivinhou!
Quaresma descansou placidamente o chapéu, bebeu um pouco d’água, e o
Coronel Inocêncio explicou a alegria:
- Sabe que temos de marchar?
- Para onde?
- Não sei... Recebi ordem do Itamarati.
Ele não dizia nunca do quartel-general, nem mesmo do ministro da
Guerra; era do Itamarati, do presidente, do chefe supremo. Parecia
que assim dava mais importância a si mesmo e ao seu batalhão,
fazia-o uma espécie de batalhão da guarda, favorito e amado do
ditador.
Quaresma não se espantou, nem se aborreceu. Percebeu que era
impossível obter a licença e também necessário mudar os seus
estudos: da artilharia, tinha que passar para a infantaria.
- O major é que vai comandar o corpo, sabia?
- Não, coronel. E o senhor não vai?
- Não, disse Bustamante, alisando o cavanhaque mosaico e abrindo a
boca para o lado esquerdo. Tenho que acabar a organização da unidade
e não posso... Não se assuste, mais tarde irei lá ter...
Começava a tarde, quando Quaresma saiu do quartel. O instrutor coxo
continuava, com força, majestade e demora, a gritar: om-brôôô...
armas! A sentinela não pôde fazer a bulha da entrada, porque só viu
o major, quando já ia longe. Ele desceu até à cidade e foi ao
correio. Havia alguns tiros espaçados; no Café do Rio, os levitas
continuavam a trocar idéias para a consolidação definitiva da
República.
Antes de chegar ao correio, Quaresma lembrou-se de sua partida.
Correu a uma livraria e comprou livros sobre infantaria; precisava
também dos regulamentos: arranjaria no quartel-general.
Para onde ia? Para o Sul, para Majé, para Niterói? Não sabia... Não
sabia... Ah! se isso fosse para realização dos seus desejos e
sonhos! Mas quem sabe?... Podia ser... talvez... Mais tarde...
E passou o dia atormentado pela dúvida do bom emprego de sua vida e
de suas energias.
O marido de Olga não fez nenhuma questão em ir ver a filha do
general. Ele levava a íntima convicção de que a sua ciência toda
nova pudesse fazer alguma coisa; mas assim não se deu.
A moça continuou a definhar, e, se a mania parecia um pouco
atenuada, o seu organismo caia. Estava magra e fraca, a ponto de
quase não poder sentar-se na cama. Era sua mãe quem mais junto a ela
vivia; as irmãs se desinteressavam um pouco, pois as exigências de
sua mocidade levavamnas para outros lados.
Dona Maricota, tendo perdido todo aquele antigo fervor pelas festas
e bailes, estava sempre no quarto da filha, a consolá-la, animá-la
e, às vezes, quando a olhava muito, como que se sentia um tanto
culpada pela sua infelicidade.
A moléstia tinha posto mais firmeza nos traços de Ismênia, tinha-lhe
diminuído a lassidão, tirado o mortiço dos olhos e os seus lindos
cabelos castanhos, com reflexos de ouro, mais belos se faziam quando
cercavam a palidez de sua face.
Raro era falar muito; e assim foi que, naquele dia, se espantou
muito Dona Maricota com a loquacidade da filha.
- Mamãe, quando se casa Lalá?
- Quando se acabar a revolta.
- A revolta ainda não acabou?
A mãe respondeu-lhe e ela esteve um instante calada, olhando o teto,
e, após essa contemplação disse à mãe:
- Mamãe... Eu vou morrer...
As palavras saíram-lhe dos lábios, seguras, doces e naturais.
- Não diga isso, minha filha, adiantou-se Dona Maricota. Qual
morrer! Você vai ficar boa; seu pai vai levar você para Minas; você
engorda, toma forças...
A mãe dizia-lhe tudo isso devagar, alisando-lhe a face com a mão,
como se se tratasse de uma criança. Ela ouvia tudo com paciência e
voltou por sua vez serenamente:
- Qual, mamãe! Eu sei; vou morrer e peço uma coisa à senhora...
A mãe ficou espantada com a seriedade e firmeza da filha. Olhou em
redor, deu com a porta semicerrada e levantou-se para fechá-la. Quis
ainda ver se a dissuadia daquele pensamento; Ismênia, porém,
continuava a repeti-lo pacientemente, docemente, serenamente;
- Eu sei, mamãe.
- Bem. Suponho que é verdade: o que é que você quer?
- Eu quero, mamãe, ir vestida de noiva.
Dona Maricota ainda quis brincar, troçar; a filha, porém, voltou-se
para o outro lado, pôs-se a dormir, com um leve respirar espaçado. A
mãe saiu do quarto, comovida, com lágrimas nos olhos e a secreta
certeza de que a filha falava a verdade.
Não tardou muito a se verificar. O doutor Armando a tinha visitado
naquela manhã pela quarta vez; ela parecia melhor, desde alguns
dias, falava com discernimento, sentava-se à cama e conversava com
prazer.
Dona Maricota teve que fazer uma visita e deixou a doente entregue
às irmãs. Elas foram lá ao quarto várias vezes e parecia dormir.
Distraíram-se.
Ismênia despertou: viu, por entre a porta do guarda-vestidos meio
aberto, o seu traje de noiva. Teve vontade de vê-lo mais de perto.
Levantou-se descalça e estendeu-o na cama para contemplá-lo.
Chegou-lhe o desejo de vesti-lo. Pôs a saia; e, por aí, vieram
recordações do seu casamento falhado. Lembrou-se do seu noivo, do
nariz fortemente ósseo e dos olhos esgazeados de Cavalcânti; mas não
se recordou com ódio, antes como se fosse um lugar visto há muito
tempo, e que a tivesse impressionado.
De quem ela se lembrava com raiva era da cartomante. Iludindo sua
mãe, acompanhada por uma criada, tinha conseguido consultar Mme.
Sinhá. Com que indiferença ela lhe respondeu: não volta! Aquilo
doeu-lhe... Que mulher má! Desde esse dia... Ah!... Acabou de
abotoar a saia em cima do corpinho, pois não encontrara colete; e
foi ao espelho. Viu os seus ombros nus, o seu colo muito branco...
Surpreendeu-se. Era dela aquilo tudo? Apalpou-se um pouco e depois
colocou a coroa. O véu afagou-lhe as espáduas carinhosamente, como
um adejo de borboleta. Teve uma fraqueza, uma coisa, deu um ai e
caiu de costas na cama, com as pernas para fora... Quando a vieram
ver, estava morta. Tinha ainda a coroa na cabeça e um seio, muito
branco e redondo, saltava-lhe do corpinho.
O enterro foi feito no dia imediato e a casa de Albernaz esteve os
dois dias cheia, como nos dias de suas melhores festas.
Quaresma foi ao enterro; ele não gostava muito dessa cerimônia; mas
veio, e foi ver a pobre moça, no caixão, coberta de flores, vestida
de noiva, com um ar imaculado de imagem. Pouco mudara, entretanto.
Era ela mesma ali; era a Ismênia dolente e pobre de nervos, com os
seus traços miúdos e os seus lindos cabelos, que estava dentro
daquelas quatro tábuas. A morte tinha fixado a sua pequena beleza e
o seu aspecto pueril; e ela ia para a cova com a insignificância,
com a inocência e a falta de acento próprio que tinha tido em vida.
Contemplando aqueles tristes restos, Quaresma viu o caixão do coche
parar na porta do cemitério, atravessar pelas ruas de túmulos - uma
multidão que trepava, se tocava, lutava por espaço, na estreiteza da
várzea e nas encostas das colinas. Algumas sepulturas como se
olhavam com afeto e se queriam aproximar; em outras transparecia
repugnância por estarem perto. Havia ali, naquele mudo laboratório
de decomposições, solicitações incompreensíveis, repulsões,
simpatias e antipatias; havia túmulos arrogantes, vaidosos,
orgulhosos, humildes, alegres e tristes; e de muitos, ressumava o
esforço, um esforço extraordinário, para escapar ao nivelamento da
morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.
Quaresma ainda contemplava o cadáver da moça e o cemitério surgia
aos seus olhos com as esculturas que se amontoavam, com vasos,
cruzes e inscrições, em alguns túmulos; noutros, eram pirâmides de
pedra tosca, retratos, caramanchões extravagantes, complicações de
ornatos, coisas barrocas e delirantes, para fugir ao anonimato do
túmulo, ao fim dos fins.
As inscrições exuberam: são longas, são breves; têm nomes, têm
datas, sobrenomes, filiações, toda a certidão de idade do morto que,
lá embaixo, não se pode mais conhecer e é lama pútrida.
E se sente um desespero em não se deparar com um nome conhecido, nem
uma celebridade, uma notabilidade, um desses nomes que enchem
décadas e, às vezes mesmo, já mortos, parece que continuam a viver.
Tudo é desconhecido; todos aqueles que querem fugir do túmulo para a
memória dos vivos, são anódinos felizes e medíocres existências que
passaram pelo mundo sem ser notadas.
E lá ia aquela moça por ali afora para o buraco escuro, para o fim,
sem deixar na vida um traço mais fundo de sua pessoa, de seus
sentimentos, de sua alma!
Quaresma quis afastar essa visão triste e encaminhou-se para o
interior da casa. Ele estivera na sala de visitas, onde Dona
Maricota também estava, cercada de outras senhoras amigas que nada
lhe diziam. O Lulu, fardado do colégio, com fumo no braço, cochilava
a uma cadeira. As irmãs iam e vinham. Na sala de jantar, estava o
general silencioso, tendo ao lado Fontes e outros amigos.
Caldas e Bustamante conversavam baixo, afastados; e quando Quaresma
passou, pôde ouvir o almirante dizer:
- Qual! Os homens estão dentro em pouco aqui... O governo está
exausto.
O major ficou na janela que dava para o quintal. O tecido do céu se
tinha adelgaçado: o azul estava sedoso e fino; e tudo tranqüilo,
sereno e calmo.
A Estefânia, a doutora, a de olhos maliciosos e quentes, passou,
tendo ao lado Lalá, que levava, de quando em quando, o lenço aos
olhos já secos, a quem aquela dizia:
- Eu, se fosse você, não comprava lá... É caro! Vai ao “Bonheur des
Dames”... Dizem que tem coisas boas e é pechincheiro.
O major voltou de novo a contemplar o céu que cobria o quintal.
Tinha uma tranqüilidade quase indiferente. Genelício apareceu
demasiadamente fúnebre. Todo de preto, ele tinha afivelado ao rosto
a mais profunda máscara de tristeza. O seu pince-nez azulado também
parecia de luto.
Não lhe fora possível deixar de ir trabalhar; um serviço urgente
fizera-o indispensável na repartição.
- É isto, general, disse ele, não está lá o doutor Genelício, nada
se faz... Não há meio da Marinha mandar os processos certos... É um
relaxamento...
O general não respondeu; estava deveras combalido. Bustamante e
Caldas continuavam a conversar baixo. Ouviu-se o rodar de uma
carruagem na rua. Quinota chegou à sala de jantar:
- Papai, está aí o coche.
O velho levantou-se a custo e foi para a sala de visitas. Falou à
mulher que se ergueu com a face contraída, exprimindo uma grande
contensão. Os seus cabelos já tinham muitos fios de prata. Não deu
um passo; esteve um instante parada e logo caiu na cadeira,
chorando. Todos estavam vendo sem saber o que fazer; alguns
choravam; Genelício tomou um partido: foi retirando os círios de ao
redor do caixão. A mãe levantou-se, veio até ao esquife, beijou o
cadáver: minha filha!
Quaresma adiantou-se, foi saindo com o chapéu na mão. No corredor,
ainda ouviu Estefânia dizer a alguém: o coche é bonito.
Saiu. Na rua parecia que havia festa. As crianças da vizinhança
cercavam o carro fúnebre e faziam inocentes comentários sobre os
dourados e enfeites. As grinaldas foram aparecendo e sendo
dependuradas nas extremidades das colunas do coche: “À minha querida
filha”, “À minha irmã”. As fitas roxas e pretas, com letras
douradas, moviam-se lentamente ao leve vento que soprava.
Apareceu o caixão, todo roxo, com guarnições de galões dourados,
muito brilhantes. Tudo aquilo ia pra terra. As janelas se povoaram,
de um lado e doutro da rua; um menino na casa próxima, gritou da rua
para o interior: “Mamãe, lá vai o enterro da moça!”
O caixão foi afinal amarrado fortemente no carro mortuário, cujos
cavalos, ruços, cobertos com uma rede preta, escarvavam o chão
cheios de impaciência.
Aqueles que iam acompanhar até ao cemitério, procuravam os seus
carros. Embarcaram todos, e o enterro rodou.
A esse tempo, na vizinhança, alguns pombos imaculadamente brancos,
as aves de Vênus, ergueram o vôo, ruflando estrepitosamente; deram
volta por cima do coche e tornaram logo silenciosos, quase sem bater
asas, para o pombal que se ocultava nos quintais burgueses...
IV
O BOQUEIRÃO
O sítio de Quaresma, em Curuzu, voltava aos poucos ao estado de
abandono em que ele o encontrara. A erva daninha crescia e cobria
tudo. As plantações que fizera, tinham desaparecido na invasão do
capim, do carrapicho, das urtigas e outros arbustos. Os arredores da
casa ofereciam um aspecto desolador, apesar dos esforços de
Anastácio, sempre vigoroso e trabalhador na sua forte velhice
africana, mas baldo de iniciativa, de método, de continuidade no
esforço.
Um dia capinava aqui, outro dia ali, outro pedaço, e assim ia
saltando de trecho em trecho, sem fazer trabalho que se visse,
permitindo que as terras e os arredores da casa adquirissem um
aspecto de desleixo que não condizia com o seu trabalho efetivo.
As formigas voltaram também, mais terríveis e depredadoras, vencendo
obstáculos, devastando tudo, restos de seara, brotos de fruteiras,
até os araçazeiros depenavam com uma energia e bravura que sorriam
aos fracos expedientes da inteligência crestada do antigo escravo,
incapaz de achar meios eficazes de batê-las ou afugentá-las.
Entretanto ele cultivava. Era a sua mania, o seu vício, uma teimosia
de caduco. Tinha uma horta que disputava diariamente às saúvas; e,
como os animais da vizinhança a tivessem um dia invadido, ele a
protegeu pacientemente com uma cerca de materiais mais
inconcebíveis: latas de querosene desdobradas, caibros bons, folhas
de coqueiros, tábuas de caixão, não obstante ter à mão bambus à
vontade.
Na sua inteligência havia uma necessidade do tortuoso, do
aparentemente fácil; e, em tudo ele punha esse jeito de sua psique,
tanto no falar, com grandes rodeios, como nos canteiros que traçava,
irregulares, maiores aqui, menores ali, fugindo à regularidade, ao
paralelismo, à simetria, com um horror artístico.
A revolta tinha tido sobre a política local efeito pacificador.
Todos os partidos se fizeram dedicadamente governistas, de forma
que, entre os dois poderosos contendores, o doutor Campos e o
Tenente Antonino houve um traço de união que os reconciliou e os fez
entenderem-se. Ao osso que ambos disputavam encarniçadamente,
u
um outro mais forte que pôs em perigo a segurança de ambos e eles se
puseram em expectativa, um instante unidos.
O candidato foi imposto pelo governo central e as eleições chegaram.
É um momento bem curioso esse das eleições na roça. Não se sabe bem
donde saem tantos tipos exóticos. De tal forma são eles esquisitos
que se pode mesmo esperar que apareçam calções e bofes de renda,
espadins e gibão. Há sobrecasacas de cintura, há calças
boca-de-sino, há chapéus de seda - todo um museu de indumentária
que aqueles roceiros vestem e por um instante fazem viver por entre
as ruas esburacadas e estradas poeirentas das vilas e lugarejos. Não
faltam também os valentões, com calças bombachas e grandes bengalões
de pequiá, à espera do que der e vier.
Para a monótona vida que levava Dona Adelaide, esse desfile de
manequins de museu, por sua porteira, em direção à seção eleitoral
que lhe ficava nas proximidades, foi um divertimento. Ela passava
longos e tristes dias naquele isolamento. Fazia-lhe companhia desde
muito a mulher de Felizardo, a Sinhá Chica, uma velha cafuza,
espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por
sobre todo o município. Não havia quem como ela soubesse rezar
dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os efeitos das
ervas medicinais: a língua-de-vaca, a silvina, o cipóchumbo - toda
aquela drogaria que crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos
troncos de árvores.
Além desse saber que a fazia estimada e respeitável, tinha também a
habilidade de assistir partos. Na redondeza, entre a gente pobre e
mesmo remediada, todos os nascimentos se faziam aos cuidados de suas
luzes.
Era de ver como pegava um faca e agitava o pequeno instrumento
doméstico em cruz, repetidas vezes, sobre a sede da dor ou da
tarefa, rezando em voz baixa, balbuciando preces que afugentavam o
espírito maligno que estava ali. Contavam-se dela milagres, vitórias
extraordinárias, denunciadoras do seu estranho poder quase mágico,
sobre as forças ocultas, que nos perseguem ou nos auxiliam.
Um dos mais curiosos, e era contado em toda parte e a toda hora,
consistia no afastamento das lagartas, Os vermes haviam dado num
feijoal, aos milheiros, cobrindo as folhas e os colmos; o
proprietário já desesperava e tinha tudo por perdido quando se
lembrou dos maravilhosos poderes de Sinhá Chica. A velha lá foi. Pôs
cruzes de gravetos pelas bordas da roça, assim como se fizesse uma
cerca de invisível material que nela se apoiasse: deixou uma
extremidade aberta e colocou-se na oposta a rezar. Não tardou o
milagre a verificar-se. Os vermes, num rebanho moroso e serpejante,
como se fossem tocados pela vara de um pastor, foram saindo na sua
frente, devagar, aos dois, aos quatro, aos cinco, aos dez, aos
vinte, e um só não ficou.
O doutor Campos não tinha absolutamente nenhuma espécie de ciúme
dessa rival. Armou-se de um pequeno desdém pelo poder sobre-humano
da mulher, mas não apelou nunca para o arsenal de leis, que vedava o
exercício de sua transcendente medicina. Seria a impopularidade; ele
era político.
No interior, e não é preciso afastar-se muito do Rio de Janeiro, as
duas medicinas coexistem sem raiva e ambas atendem às necessidades
mentais e econômicas da população.
A da Sinhá Chica, quase grátis, ia ao encontro da população pobre,
daquela em cujos cérebros, por contágio ou herança, ainda vivem os
manitus e manipansos, sujeitos a fugirem aos exorcismos, benzeduras
e fumigações. A sua clientela, entretanto, não se resumia só na
gente pobre da terra, ali nascida ou criada; havia mesmo
recém-chegados de outros ares, italianos, portugueses e espanhóis,
que se socorriam da sua força sobrenatural, não tanto pelo preço ou
contágio das crenças ambientes, mas também por aquela estranha
superstição européia de que todo negro ou gente colorida penetra e é
sagaz para descobrir as coisas malignas e exercer a feitiçaria.
Enquanto a terapêutica fluídica ou herbácea de Sinhá Chica atendia
aos miseráveis, aos pobretões, a do doutor Campos era requerida
pelos mais cultos e ricos, cuja evolução mental exigia a medicina
regular e oficial.
Às vezes, um de um grupo passava para o outro; era nas moléstias
graves, nas complicadas, nas incuráveis, quando as ervas e as rezas
da milagrosa nada podiam ou os xaropes e pílulas do doutor eram
impotentes.
Sinhá Chica não era lá uma companheira muito agradável. Vivia sempre
mergulhada no seu sonho divino, abismada nos misteriosos poderes dos
feitiços, sentada sobre as pernas cruzadas, olhos baixos, fixos, de
fraco brilho, parecendo esmalte de olhos de múmia tanto ela era
encarquilhada e seca.
Não esquecia também o santos, a santa madre Igreja, os mandamentos,
as orações ortodoxas; embora não soubesse ler, era forte no
catecismo e conhecia a história sagrada aos pedaços, aduzindo a eles
interpretações suas e interpolações pitorescas.
Com o Apolinário, o famoso capelão das ladainhas, era ela o forte
poder espiritual da terra. O vigário ficava relegado a um papel de
funcionário, espécie de oficial de registro civil, encarregado dos
batizados e casamentos, pois toda a comunicação com Deus e o
Invisível se fazia por intermédio de Sinhá Chica ou do Apolinário. É
de dever falar em casamentos, mas bem podiam ser esquecidos, porque
a nossa gente pobre faz uso reduzido de tal sacramento e a simples
mancebia, por toda a parte, substitui a solene instituição católica.
Felizardo, o marido dela, aparecia pouco em casa de Quaresma; e, se
aparecia, era à noite, passando os dias pelos matos com medo do
recrutamento e logo que chegava indagava da mulher se o barulho já
tinha acabado.
Vivia num constante pavor; dormia vestido, galgando a janela e
embrenhando-se na capoeira, à menor bulha ouvida.
Tinham dois filhos, mas que tristeza de gente! Ajuntavam à depressão
moral dos pais uma pobreza de vigor físico e uma indolência
repugnante. Eram dois rapazes: o mais velho, José, orçava pelos
vinte anos; ambos inertes, moles, sem força e sem crenças, nem mesmo
a da feitiçaria, das rezas e benzeduras, que fazia o encanto da mãe
e merecia o respeito do pai.
Não houve quem os fizesse aprender qualquer coisa e os sujeitasse a
um trabalho contínuo. De quando em quando, assim de quinze em quinze
dias, faziam uma talha de lenha e vendiam ao primeiro taverneiro
pela metade do valor; voltavam para casa alegres, satisfeitos, com
um lenço de cores vivas, um vidro de água-de-colônia, um espelho,
bugigangas que denunciavam ainda neles gostos bastante selvagens.
Passavam então uma semana em casa, a dormir ou a perambular pelas
estradas e vendas; à noite, quase sempre nos dias de festas e
domingos, saiam com a “harmônica” a tocar peças, no que eram
exímios, sendo a presença deles muito reqüestada nos bailes da
vizinhança.
Embora seus pais vivessem em casa de Quaresma, raramente lá
apareciam; e, se o faziam, era porque de todo não tinham que comer.
Levavam o descuido da vida, a imprevidência, a ponto de não terem
medo do recrutamento. Eram, entretanto, capazes de dedicação, de
lealdade e bondade, mas o trabalho continuado, todo o dia,
repugnava-lhes à natureza, como uma pena ou um castigo.
Essa atonia da nossa população, essa espécie de desânimo doentio, de
indiferença nirvanesca por tudo e todas as coisas, cercam de uma
caligem de tristeza desesperada a nossa roça e tira-lhe o encanto, a
poesia e o viço sedutor de plena natureza.
Parece que nem um dos grandes países oprimidos, a Polônia, a
Irlanda, a Índia apresentará o aspecto cataléptico do nosso
interior. Tudo aí dorme, cochila, parece morto; naqueles há revolta,
há fuga para o sonho; no nosso... Oh!... dorme-se...
A ausência de Quaresma trouxera para o seu sítio essa atmosfera
geral da roça. O “Sossego” parecia dormir, dormir de encantamento, à
espera que o príncipe o viesse despertar.
Máquinas agrícolas, que não haviam ainda servido, enferrujavam com a
etiqueta da casa. Aqueles arados de ponta de aço, que tinham chegado
com a relha reluzente, de um brilho azulado e doce, estavam
hediondos e morriam de tédio no abandono em que jaziam, bracejando
angustiosamente para o céu mudo. De manhã, não se ouvia mais o
cacarejar das aves no galinheiro, o esvoaçar dos pombos - todo esse
hino matinal de vida, de trabalho, de fartura não mais se casava com
as auroras rosadas e com o chilreio álacre do passaredo; e ninguém
sabia ver as paineiras em flor, com as suas lindas flores rosadas e
brancas que, a espaços, caíam docemente como aves feridas.
Dona Adelaide não tinha nem gosto nem atividade para superintender
aqueles serviços e fruir a poesia da roça. Sofria com a separação do
irmão e vivia como se estivesse na cidade. Comprava os gêneros na
venda e não se incomodava com as coisas do sítio.
Ansiava pela volta do irmão; escrevia-lhe cartas desesperadas, às
quais ele respondia aconselhando calma, fazendo promessas. A última
recebida, porém, tinha de sopetão outro acento; não era mais
confiante, entusiástica, traía desânimo, desalento, mesmo desespero.
“Querida Adelaide. Só agora posso responder-te a carta que recebi há
quase duas semanas. Justamente quando ela me chegou às mãos, acabava
de ser ferido, ferimento ligeiro é verdade, mas que me levou à cama
e trar-me-á uma convalescença longa. Que combate, minha filha! Que
horror! Quando me lembro dele, passo as mãos pelos olhos como para
afastar uma visão má. Fiquei com horror à guerra que ninguém pode
avaliar... Uma confusão, um infernal zunir de balas, clarões
sinistros, imprecações - e tudo isto no seio da treva profunda da
noite... Houve momentos que se abandonaram as armas de fogo:
batíamo-nos à baioneta, a coronhadas, a machado, facão. Filha: um
combate de trogloditas, uma coisa pré-histórica... Eu duvido, eu
duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido da sua razão de ser,
duvido que seja certo e necessário ir tirar do fundo de nós todos a
ferocidade adormecida, aquela ferocidade que se fez e se depositou
em nós nos milenários combates com as feras, quando disputávamos a
terra a elas... E não vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon, do
Neanderthal armados com machados de sílex, sem piedade, sem amor,
sem sonhos generosos, a matar, sempre a matar... Este teu irmão que
estás vendo, também fez das suas, também foi descobrir dentro de si
muita brutalidade, muita ferocidade, muita crueldade... Eu matei,
minha irmã; eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um
tiro quando o inimigo arquejava a meus pés... Perdoa-me! Eu te peço
perdão, porque preciso de perdão e não sei a quem pedir, a que Deus,
a que homem, a alguém enfim... Não imaginas como isto faz-me
sofrer... Quando caí embaixo de uma carreta, o que me doía não era a
ferida, era a alma, era a consciência; e Ricardo, que foi ferido e
caiu ao meu lado, a gemer e pedir - ‘capitão, meu gorro, meu
gorro!’ - parecia que era o meu próprio pensamento que ironizava o
meu destino...
Esta vida é absurda e ilógica; eu já tenho medo de viver, Adelaide.
Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos
amanhã, de que maneira havemos de nos contradizer de sol para sol...
O melhor é não agir, Adelaide; e desde que o meu dever me livre
destes encargos, irei viver na quietude, na quietude mais absoluta
possível, para que do fundo de mim mesmo ou do mistério das coisas
não provoque a minha ação o aparecimento de energias estranhas à
minha vontade, que mais me façam sofrer e tirem o doce sabor de
viver...
Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil.
Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que
derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram
empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e
desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer...
Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir;
passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo
inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.”
—
Como Quaresma dizia na carta, o seu ferimento não era grave, era,
porém, delicado e exigia tempo para uma cura completa e sem perigos.
Ricardo, este, fora ferido mais gravemente. E se o sofrimento de
Quaresma era profundamente moral, o de Coração dos Outros era físico
e não se cansava de gemer e imprecar contra a sorte que o arrastara
até à posição de combatente.
Os hospitais em que se tratavam estavam separados pela baía, agora
intransponível, exigindo a viagem de uma margem à outra bem doze
horas por estrada de ferro.
Tanto na ida como na volta, ferido como estava, Quaresma passara
pela estação em que morava. O trem, porém, não parava, e ele se
limitou a deitar pela portinhola um longo e saudoso olhar para
aquele seu “Sossego”, de terras pobres e árvores velhas, onde
sonhara repousar calmamente por toda a vida; e, entretanto, o
lançara na mais terrível das aventuras.
E ele perguntava de si para si, onde, na terra, estava o verdadeiro
sossego, onde se poderia encontrar esse repouso de alma e corpo,
pelo qual tanto ansiava, depois dos sacolejamentos por que vinha
passando - onde? E o mapa dos continentes, as cartas dos países, as
plantas das cidades, passavam-lhe pelos olhos e não viu, não
encontrou um país, uma província, uma cidade, uma rua onde o
houvesse.
A sua sensação era de fadiga, não física, mas moral e intelectual,
Tinha vontade de não mais pensar, de não mais amar; queria, contudo,
viver, por prazer físico; pela sensação material pura e simples de
viver.
Assim, convalesceu longamente, demoradamente, melancolicamente, sem
uma visita, sem ver uma face amiga.
Coleoni e família se haviam retirado para fora; o general, por
preguiça e desleixo, não viera vê-lo. Vivia só, envolvido na
suavidade da convalescença, a pensar no Destino, na sua vida, nas
idéias e mais que tudo nas suas desilusões.
Entretanto, a revolta na baía chegava ao fim; toda gente já
pressentia isso e queria esse alívio.
O almirante e Albernaz, ambos pelos mesmos motivos, observavam esse
fim com tristeza. O primeiro via fugir o seu sonho de comandar uma
esquadra e a conseqüente volta para o quadro; e o general sentia
perder a sua comissão, cujos rendimentos faziam de forma tão notável
melhorar a situação da família.
Naquela manhã, bem cedo, Dona Maricota acordara o marido:
- Chico, levanta-te! Olha que tens que ir à missa do Senador
Clarimundo...
Ouvindo a recomendação da mulher, Albernaz ergueu-se logo do leito.
Era preciso não faltar. A sua presença se impunha e significava
muito. Clarimundo fora um republicano histórico, agitador, tribuno
temido, no tempo do Império; após a República, porém, não
apresentara aos seus pares do Senado nada de útil e benfazejo.
Embora assim, a sua influência ficara sendo grande; e, com diversos
outros, era chamado patriarca da República. Há nos próceres
republicanos uma necessidade extraordinária de serem gloriosos e não
esquecidos pelo futuro, a que eles se recomendam com teimoso
interesse.
Clarimundo era um desses próceres e, durante a comoção, não se sabia
bem por quê, o seu prestígio cresceu e já se falava nele para
substituir o marechal. Albernaz conhecera-o vagamente, mas assistir
a sua missa era quase uma afirmação política.
A dor da morte da filha já se esvaíra muito na sua memória. O que o
fazia sofrer era aquela semivida da moça, mergulhada na loucura e na
moléstia. A morte tem a virtude de ser brusca, de chocar, mas não
corroer, como essas moléstias duradouras nas pessoas amadas; passado
que é o choque, vai ficando em nós uma suave recordação do ente
querido, uma boa fisionomia sempre presente aos nossos olhos.
Dava-se isso com Albernaz e a sua satisfação de viver e a sua
jovialidade natural foram voltando insensivelmente.
Obediente à mulher, preparou-se, vestiu-se e saiu. Conquanto se
estivesse ainda em plena revolta, esses ofícios fúnebres se faziam
nas igrejas do centro da cidade. O general chegou a tempo e à hora.
Havia uniformes e cartolas e todos se comprimiam para assinar as
listas de presença. Não tanto que quisessem atestar à família do
morto esse ato delicado; dominava-os, além disso, a esperança de ter
os nomes nos jornais.
Albernaz não deixou de atirar-se também a uma das listas que andavam
pelas mesas da sacristia; e quando ia assinar, alguém lhe falou. Era
o almirante. A missa ia começar, mas ambos evita,”am entrar na nave
cheia, e ficaram a um vão de janela, na sacristia, conversando.
- Então acaba breve, hein?
- Dizem que a esquadra já saiu de Pernambuco.
Fora Caldas quem falara primeiro e a resposta do general fê-lo
sorrir irônico dizendo:
- Enfim...
- A baia está cercada de canhões, continuou o general, após uma
pausa, e o marechal vai intimá-los a renderem-se.
- Já era tempo, fez Caldas... Comigo, a coisa já estava acabada...
Levar quase sete meses para dar cabo de uns calhambeques!...
- Você exagera, Caldas; a coisa não era tão fácil assim... E o mar?
- Que fez a esquadra tanto tempo no Recife, você não me dirá? Ah!
Se fosse com este seu criado, tinha logo partido e atacado... Sou
pelas decisões prontas...
O padre, no interior da igreja, continuava a pedir a Deus repouso
para a alma do Senador Clarimundo. O místico cheiro de incenso vinha
até eles e o votivo perfume, votivo ao Deus da paz e da bondade, não
os demovia dos seus pensamentos guerreiros.
- Entre nós, aduziu Caldas, não há mais gente que preste... Isto é
um país perdido, acaba colônia inglesa...
Coçou nervoso um dos favoritos e esteve um instante a olhar o
ladrilho do chão. Albernaz avançou, meio sarcástico:
- Agora não; agora a autoridade está prestigiada, consolidada, e
uma era de progresso vai abrir-se para o Brasil.
- Qual o quê! Onde é que você viu um governo...
- Mais baixo, Caldas!
- ... onde é que se viu um governo que não aproveita as aptidões,
abandona-as, deixa-as por ai vegetar?... Dá-se o mesmo com as nossas
riquezas naturais: jazem por aí à toa!
A sineta soou e olharam um pouco a nave cheia. Pela porta, via-se
uma porção de homens, todos de negro, ajoelhados, contrictos,
batendo nos peitos, a confessar de si para si; mea culpa, mea maxima
culpa...
Uma réstia de sol coava-se por uma das aberturas do alto e
resplandecia sobre algumas cabeças.
Insensivelmente, os dois, na sacristia, levaram a mão ao peito e
confessaram também: mea culpa, mea maxima culpa...
A missa veio a acabar e ambos entraram para o abraço da pragmática.
A nave rescendia a incenso e tinha um aspecto tranqüilo de
imortalidade.
Todos tinham um grande ar de compunção: amigos, parentes, conhecidos
e desconhecidos pareciam sofrer igualmente. Albernaz e Caldas, logo
que penetraram no corpo da igreja, apanharam no ar um sentimento
profundo e afivelaram-no ao rosto.
Genelício também viera; ele tinha o vício das missas das pessoas
importantes, dos cartões de pêsames, dos cumprimentos em dias de
aniversário. Temendo que a memória não lhe ajudasse, possuía um
caderninho onde as datas aniversárias estavam assentadas e as
residências também. O índice era organizado com muito cuidado, Não
havia sogra, prima, tia, cunhada, de homem importante, que, em dia
de aniversário, não recebesse os seus parabéns, e, por morte, não o
levasse à igreja em missa de sétimo dia,
O seu traje de luto era de pano grosso, pesado; e, olhando-o,
lembrava-nos logo de um castigo dantesco.
Na rua, Genelício escovava a cartola com a manga da sobrecasaca e
dizia ao sogro e ao almirante:
- A coisa está pra acabar...! Breve...
- E se resistirem? perguntou o general.
- Qual! Não resistem. Corre que já propuseram rendição... É preciso
arranjar uma manifestação ao marechal.
- Não acredito, fez o almirante. Conheço muito o Saldanha, é
orgulhoso e não se entrega assim...
Genelício ficou um pouco assustado com a entonação da voz do seu
parente; teve medo que ele falasse mais alto, desse na vista e o
comprometesse. Calou-se; Albernaz, porém, avançou:
- Não há orgulho que resista a uma esquadra mais forte.
- Forte! Uns calhambeques, homem!
Caldas continha a custo a fúria que lhe ia n’alma. O céu estava azul
e calmo. Havia nele nuvens brancas, leves, esgarçadas, que se moviam
lentamente, como velas, naquele mar infinito. Genelício olhou-o um
pouco e aconselhou:
- Almirante, não fale assim... Olhe que...
- Qual! Não tenho medo... Porcarias!...
- Bom, fez Genelício, eu tenho que ir à Rua Primeiro de Março e...
Despediu-se e saiu com o seu traje de chumbo, curvado, olhando o
chão com o seu pince-nez azulado, palmilhando a rua com passo miúdo
e cauteloso.
Albernaz e Caldas ainda estiveram conversando um tempo e se
despediram sempre amigos, cada um com o seu desgosto e a sua
decepção.
Tinham razão: a revolta veio a acabar dai a dias. A esquadra legal
entrou; os oficiais revoltosos se refugiaram nos navios de guerra
portugueses e o Marechal Floriano ficou senhor da baía.
No dia da entrada, acreditando que houvesse canhoneio, uma grande
parte da população abandonou a cidade, refugiando-se nos subúrbios,
por baixo das árvores, na casa de amigos ou nos galpões construídos
adrede pelo Estado.
Era de ver o terror que se estampava naquelas fisionomias, a ânsia e
a angústia também. Levavam trouxas, samburás, pequenas malas;
crianças de peito, a chorar, o papagaio querido, o cachorro de
estimação, o passarinho que de há muito quebrava a tristeza de uma
casa pobre.
O que mais metia medo era o famoso canhão de dinamite, do “Niterói”,
uma espalhafatosa invenção americana, instrumento terrível, capaz de
causar terremotos e de abalar os fundamentos das montanhas
graníticas do Rio.
As crianças e as mulheres, mesmo fora do alcance de seu poder,
temiam uvir o seu estrondo; entretanto, esse fantasma yankee, esse
pesadelo, essa quase força da natureza, foi morrer abandonado num
cais, desprezado e inofensivo.
O fim do levante foi um alívio; a coisa já estava ficando monótona e
o marechal ganhou feições sobre-humanas com a vitória.
Quaresma teve alta por esse tempo; e uma ala de seu batalhão foi
destacada para guarnecer a ilha das Enxadas. Inocêncio Bustamante
continuava a superintender o corpo com muito zelo, do interior do
seu gabinete, na estalagem condenada que lhe servia de quartel. A
escrituração estava em dia e era feita com a melhor letra.
Policarpo aceitou com repugnância o papel de carcereiro, pois na
ilha das Enxadas estavam depositados os marinheiros prisioneiros. Os
seus tormentos d’alma mais cresceram com o exercício de tal função.
Quase os não olhava; tinha vexame, piedade e parecia-lhe que dentre
eles um conhecia o segredo de sua consciência.
De resto, todo o sistema de idéias que o fizera meter-se na guerra
civil se tinha desmoronado. Não encontrara o Sully e muito menos o
Henrique IV. Sentia também que o seu pensamento motriz não residia
em nenhuma das pessoas que encontrara. Todos tinham vindo ou com
pueris pensamentos políticos, ou por interesse; nada de superior os
animava. Mesmo entre os moços, que eram muitos, se não havia baixo
interesse, existia uma adoração fetíchica pela forma republicana, um
exagero das virtudes dela, um pendor para o despotismo que os seus
estudos e meditações não podiam achar justos. Era grande a sua
desilusão.
Os prisioneiros se amontoavam nas antigas salas de aulas e
alojamentos dos aspirantes. Havia simples marinheiros; havia
inferiores; havia escreventes e operários de bordo. Brancos, pretos,
mulatos, caboclos, gente de todas as cores e todos os sentimentos,
gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer,
gente inteiramente estranha à questão em debate, gente arrancada à
força aos lares ou à calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que
se haviam alistado por miséria; gente ignara, simples, às vezes
cruel e perversa como crianças inconscientes; às vezes, boa e dócil
como um cordeiro, mas, enfim, gente sem responsabilidade, sem anseio
político, sem vontade própria, simples autômatos nas mãos dos chefes
e superiores que a tinham abandonado à mercê do vencedor.
De tarde, ele ficava a passear, olhando o mar. A viração soprava
ainda e as gaivotas continuavam a pescar. Os barcos passavam. Ora,
eram lanchas fumarentas que lá iam para o fundo da baía; ora
pequenos botes ou canoas, roçando carinhosamente a superfície das
águas, pendendo para lá e para cá, como se as suas alvas velas
enfunadas quisessem afagar a espelhenta superfície do abismo. Os
Órgãos vinham suavemente morrendo na violeta macia; e o resto era
azul, um azul imaterial que inebriava, embriagava, como um licor
capitoso.
Ficava assim um tempo longo, a ver, e quando se voltava, olhava a
cidade que entrava na sombra, aos beijos sangrentos do ocaso.
A noite chegava e Quaresma continuava a passear na borda do mar,
meditando, pensando, sofrendo com aquelas lembranças de ódios, de
sangueiras e ferocidade.
A sociedade e a vida pareceram-lhe coisas horrorosas, e imaginou que
do exemplo delas vinham os crimes que aquela punia, castigava e
procurava restringir. Eram negras e desesperadas, as suas idéias;
muita vez julgou que delirava.
E então se lamentava por estar sozinho, por não ter um companheiro
com quem conversar, que lhe fizesse fugir àqueles tristes
pensamentos que o assediavam e se estavam transformando em obsessão.
Ricardo estava de guarnição na ilha das Cobras; e, mesmo que ali
estivesse, os rigores da disciplina não lhe permitiriam uma conversa
mais amigável. Vinha a noite inteiramente, e o silêncio e a treva
envolviam tudo.
Quaresma ainda ficava horas ao ar livre a pensar, olhando o fundo da
baía, onde quase não havia luzes que interrompessem a continuidade
do negror noturno.
Fixava bem os olhos para lá, como se os quisesse habituar a penetrar
nas coisas indecifráveis e adivinhar dentro da sombra negra a forma
das montanhas, o recorte das ilhas que a noite tinha feito
desaparecer.
Fatigado, ia dormir. Nem sempre dormia bem; tinha insônias e, se
queria ler, a atenção recusava fixar-se e o pensamento vagabundava
muito longe do livro.
Certa noite em que ia dormindo melhor, um inferior veio acordá-lo
pela madrugada:
- Senhor major, está aí o “home” do Itamarati.
- Que homem?
- O oficial que vem buscar a turma do Boqueirão.
Sem atinar do que se tratava, levantou-se e foi ao encontro do
visitante. O homem já estava no interior de um dos alojamentos. Uma
escolta estava à porta. Seguiam-no algumas praças, das quais uma
levava uma lanterna que derramava no salão uma fraca luzerna
amarelada. A vasta sala estava cheia de corpos, deitados, seminus, e
havia todo o íris das cores humanas. Uns roncavam, outros dormiam
somente; e, quando Quaresma entrou, houve alguém que em sonho,
- ai! Cumprimentaram-se, Quaresma e o emissário do Itamarati, e
nada disseram. Ambos tiveram medo de falar. O oficial despertou um
dos prisioneiros e disse para as praças: “Levem este”.
Seguiu adiante e despertou outro: - “Onde você esteve?” “Eu” -
respondeu o marinheiro - “na Guanabara”... “Ah! patife” acudiu o
homem do Itamarati... “Este também... Levem!”...
Os soldados condutores iam até à porta, deixavam o prisioneiro e
voltavam.
O oficial passou por uma porção deles e não fez reparo; adiante, deu
com um rapaz claro, franzino, que não dormia. Gritou então:
“Levante- se!” O rapaz ergueu-se tremendo. - “Onde esteve você?”
perguntou. - “Eu era enfermeiro”, retrucou o rapaz. - “Que
enfermeiro!” fez o emissário. “Levem este também”...
- Mas, “seu” tenente, deixe-me escrever à minha mãe, pediu o rapaz
quase chorando.
- Que mãe! respondeu o homem do Itamarati. Siga! Vá!
E assim foi uma dúzia, escolhida a esmo, ao acaso, cercada pela
escolta, a embarcar num batelão que uma lancha logo rebocou para
fora das águas da ilha.
Quaresma não atinou de pronto com o sentido da cena e foi, após o
afastamento da lancha, que ele encontrou uma explicação.
Não deixou de pensar então por que força misteriosa, por que
injunção irônica ele se tinha misturado em tão tenebrosos
acontecimentos, assistindo ao sinistro alicerçar do regime...
A embarcação não ia longe. O mar gemia demoradamente de encontro às
pedras do cais. A esteira da embarcação estrelejava fosforescente.
No alto, num céu negro e profundo, as estrelas brilhavam
serenamente.
A lancha desapareceu nas trevas do fundo da baía. Para onde ia? Para
o Boqueirão...
V
A AFILHADA
Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele
estreito calabouço? Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão
profundos pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim? De que
maneira sorrateira o Destino o arrastara até ali, sem que ele
pudesse pressentir o seu extravagante propósito, tão aparentemente
sem relação com o resto da sua vida? Teria sido ele com os seus atos
passados, com as suas ações encadeadas no tempo, que fizera com que
aquele velho deus docilmente o trouxesse até à execução de tal
desígnio? Ou teriam sido os fatos externos, que venceram a ele,
Quaresma, e fizeram-no escravo da sentença da onipotente divindade?
Ele não sabia, e, quando teimava em pensar, as duas coisas se
baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e exata lhe fugia.
Não estava ali há muitas horas. Fora preso pela manhã, logo ao
erguer-se da cama; e, pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava
sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-lo à fraca luz
da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.
Por que estava preso? Ao certo não sabia; o oficial que o conduzira,
nada lhe quisera dizer; e, desde que saíra da ilha das Enxadas para
a das Cobras, não trocara palavra com ninguém, não vira nenhum
conhecido no caminho, nem o próprio Ricardo que lhe podia, com um
olhar, com um gesto, trazer sossego às suas dúvidas. Entretanto, ele
atribuía a prisão à carta que escrevera ao presidente, protestando
contra a cena que presenciara na véspera.
Não se pudera conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a
desoras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara
fundo a todos os seus sentimentos; pusera diante dos seus olhos
todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a
sua solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com
paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro,
franca e nitidamente.
Devia ser por isso que ele estava ali naquela masmorra, engaiolado,
trancafiado, isolado dos seus semelhantes como uma fera, como um
criminoso, sepultado na treva, sofrendo umidade, misturado com os
seus detritos, quase sem comer... Como acabarei? Como acabarei? E a
pergunta lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquela
angústia provocava pensar. Não havia base para qualquer hipótese.
Era de conduta tão irregular e incerta o Governo que tudo ele podia
esperar: a liberdade ou a morte, mais esta que aquela.
O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar,
para afirmar mais a vitória e senti-la bem na consciência coisa sua,
própria, e altamente honrosa.
Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito
de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a
pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a
sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua
virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o
recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava?
Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de fruir, na sua
vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara - todo esse lado
da existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária,
ele não vira, ele não provara, ele não experimentara.
Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele
fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios?
Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a
felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O
importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das
suas coisas de tupi, do folk-lore, das suas tentativas agrícolas...
Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio;
e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras
não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra
decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que
achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não
a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros,
inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série,
melhor, um encadeamento de decepções.
A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele
no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a
intelectual,nem a política que julgava existir, havia, A que existia
de fato, era a do Tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem
do Itamarati.
E, bem pensado, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Pátria? Não
teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma idéia
a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma Deusa cujo império
se esvaía? Não sabia que essa idéia nascera da amplificação da
crendice dos povos greco-romanos de que os ancestrais mortos
continuariam a viver como sombras e era preciso alimentá-las para
que eles não perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel
de Coulanges... Lembrou-se de que essa noção nada é para os
Menenanã, para tantas pessoas... Pareceu-lhe que essa idéia como que
fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das
nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas
próprias ambições...
Reviu a história; viu as mutilações, os acréscimos em todos os
países históricos e perguntou de si para si: como um homem que
vivesse quatro séculos sendo francês, inglês, italiano, alemão,
podia sentir a Pátria?
Uma hora, para o francês, o Franco-Condado era terra dos seus avós,
outra não era; num dado momento, a Alsácia não era, depois era e
afinal não vinha a ser.
Nós mesmos não tivemos a Cisplatina e não a perdemos; e, porventura,
sentimos que haja lá manes dos nossos avós e por isso sofremos
qualquer mágoa?
Certamente era uma noção sem consistência racional e precisava ser
revista.
Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida,
gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que
não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou
enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto
toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de
si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um
filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e
sem sequer uma asneira!
Nada deixava que afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera
nada de saboroso.
Contudo, quem sabe se outros que lhe seguissem as pegadas não seriam
mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se
fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho,
dando-lhe corpo e substância?
E esse seguimento adiantaria alguma coisa? E essa continuidade
traria enfim para a terra alguma felicidade? Há quantos anos vidas
mais valiosas que a dele, se vinham oferecendo, sacrificando e as
coisas ficaram na mesma, a terra na mesma miséria, na mesma
opressão, na mesma tristeza.
E ele se lembrava que há bem cem anos, ali, naquele mesmo lugar onde
estava, talvez naquela mesma prisão, homens generosos e ilustres
estiveram presos por quererem melhorar o estado de coisas de seu
tempo. Talvez só tivessem pensado, mas sofreram pelo seu pensamento.
Tinha havido vantagem? As condições gerais tinham melhorado?
Aparentemente sim; mas, bem examinado, não.
Aqueles homens, acusados de crime tão nefando em face da legislação
da época, tinham levado dois anos a ser julgados; e ele, que não
tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado; seria
simplesmente executado!
Fora bom, fora generoso, fora honesto, fora virtuoso - ele que fora
tudo isso, ia para a cova sem o acompanhamento de um parente, de um
amigo, de um camarada...
Onde estariam eles? Sobre o Ricardo Coração dos Outros, tão simples
e tão inocente na sua mania de violão, ele não poria mais os olhos?
Era tão bom que o pudesse, para mandar à sua irmã o último recado,
ao preto Anastácio um adeus, à sua afilhada um abraço! Nunca mais
vê-los-ia, nunca!
E ele chorou um pouco.
Quaresma, porém, enganava-se em parte. Ricardo soubera de sua prisão
e procurava soltá-lo. Teve noticia do exato motivo dela; mas não se
intimidou. Sabia perfeitamente que corria grande risco, pois a
indignação no palácio contra Quaresma fora geral. A vitória tinha
feito os vitoriosos inclementes e ferozes, e aquele protesto soou
entre eles como um desejo de diminuir o valor das vantagens
alcançadas. Não havia mais piedade, não havia mais simpatia, nem
respeito pela vida humana; o que era necessário era dar o exemplo de
um massacre à turca, porém clandestino, para que jamais o poder
constituído fosse atacado ou mesmo discutido. Era a filosofia social
da época, com forças de religião, com os seus fanáticos, com os seus
sacerdotes e pregadores, e ela agia com a maldade de uma crença
forte, sobre a qual fizéssemos repousar a felicidade de muitos.
Ricardo, entretanto, não se amedrontou; procurou influências de
amigos. Ao entrar no Largo de São Francisco encontrou Genelício.
Vinha da missa da irmã da sogra do Deputado Castro. Como sempre,
trajava uma pesada sobrecasaca preta que parecia de chumbo. Já
estava subdiretor e o seu trabalho era agora imaginar meios e modos
de ser diretor. A coisa era difícil; mas trabalhava num livro: Os
Tribunais de Contas nos Países Asiáticos - o qual, demonstrando uma
erudição superior, talvez lhe levasse ao alto lugar cobiçado.
Vendo-o, Ricardo não se deteve. Correu-lhe ao encalço e falou-lhe:
- Doutor, Vossa Excelência dá licença que lhe dê uma palavra?
Genelício perfilou-se todo e, como tivesse péssima memória das
fisionomias humildes, perguntou com solenidade e arrogância:
- Que deseja, camarada?
Coração dos Outros estava com a sua farda do “Cruzeiro do Sul” e não
ficava bem a Genelício dar-se como conhecido de um soldado. O
trovador julgou-o mesmo esquecido e indagou ingenuamente:
- Não me conhece mais, doutor?
Genelício fechou um pouco os olhos por detrás do pince-nez azulado e
disse secamente:
- Não.
- Eu, fez com humildade Ricardo, sou Ricardo Coração dos Outros,
que cantou no seu casamento.
Genelicio não sorriu, não deu mostras de alegria e limitou-se:
- Ah! É o senhor! Bem: que deseja?
- O senhor não sabe que o Major Quaresma está preso?
- Quem é?
- Aquele que foi vizinho do seu sogro.
- Aquele maluco... Ahn!... E daí?
- Eu queria que o senhor se interessasse...
- Não me meto nessas coisas, meu amigo. O governo tem sempre razão.
Passe bem.
E Genelício seguiu com o seu passo cauteloso de quem poupa as solas
das botas, enquanto Ricardo ficava de pé a olhar o largo, a gente
que passava, a estátua imóvel, as casas feias, a igreja... Tudo lhe
pareceu hostil, mau ou indiferente; aquelas caras de homens tinham
cataduras de feras e ele quis por um momento chorar de desespero por
não poder salvar o amigo.
Lembrou-se, porém, de Albernaz, e correu a procurá-lo. Não era
longe, mas o general ainda não tinha chegado. Ao fim de uma hora o
general chegou e, dando com Ricardo, perguntou:
- Que há?
O trovador, bastante emocionado, explicou-lhe com voz dorida todo o
fato. Albernaz concertou o pince-nez, ajeitou bem o trancelim de
ouro na orelha e disse com doçura:
- Meu filho, eu não posso... Você sabe; sou governista e parece, se
eu for pedir por um preso, que já não o sou bastante... Sinto muito,
mas... que se há de fazer? Paciência.
E entrou para o seu gabinete prazenteiro, muito seguro de si, dentro
do seu plácido uniforme de general.
Os oficiais continuavam a entrar e a sair; as campainhas soavam; os
contínuos iam e vinham; e Ricardo procurava entre todas aquelas
fisionomias uma que lhe pudesse valer. Não havia e ele desesperava.
Mas quem havia de ser? Quem? Lembrou-se: o comandante; e foi ter com
o Coronel Bustamante, na velha estalagem que servia de quartel ao
garboso “Cruzeiro do Sul”.
O batalhão ainda continuava em pé de guerra. Embora terminada a
revolta no porto do Rio de Janeiro era preciso mandar forças para o
Sul; de forma que os batalhões não tinham sido dissolvidos e um dos
apontados para partir era o “Cruzeiro”.
O alferes coxo, no ensaboado pátio da antiga estalagem, continuava
na sua faina de instrutor dos novos recrutas. Om - brooo... armas!
Mei - ãã volta!
Ricardo entrou, subiu rapidamente a oscilante escada do velho
cortiço e logo que chegou ao cubículo do comandante, gritou: “Com
licença, comandante!”
Bustamante andava de mau humor. Aquele negócio de partir para o
Paraná não lhe agradava. Como é que havia de superintender a escrita
do batalhão, no fervor de batalhas, nas desordens de marchas e
contramarchas? Isso era uma tolice do comandante marchar; o chefe
devia ficar a resguardo, para providenciar e dirigir a escrituração.
Ele pensava nessas coisas, quando Ricardo pediu licença.
- Entre, disse ele.
O bravo coronel coçava a grande barba mosaica, tinha o dólmã
desabotoado e acabava de calçar um dos pés de botina, para com mais
decência receber o inferior.
Ricardo expôs o seu pedido e esperou com paciência a resposta, que
custou a vir. Por fim, Inocêncio disse sacudindo a cabeça e olhando
o inferior cheio de severidade:
- Vai-te embora, senão mando-te prender! Já!
E apontou com o dedo a porta da saída num gesto marcial e enérgico.
O cabo não se demorou mais. No pátio o instrutor coxo, veterano do
Paraguai, continuava com solenidade a encher a arruinada estalagem
com as suas vozes de comando! Om-brôô... armas! Meia-ãã... volta...
volver!
Ricardo veio andando triste e desalentado, O mundo lhe parecia vazio
de afeto e de amor. Ele que sempre decantara nas suas modinhas a
dedicação, o amor, as simpatias, via agora que tais sentimentos não
existiam. Tinha marchado atrás de coisas fora da realidade, de
quimeras. Olhou o céu alto. Estava tranqüilo e calmo. Olhou as
árvores. As palmeiras cresciam com orgulho e titanicamente
pretendiam atingir o céu. Olhou as casas, as igrejas, os palácios e
lembrou-se das guerras, do sangue, das dores que tudo aquilo
custara. E era assim que se fazia a vida, a história e o heroísmo:
com violência sobre os outros, com opressões e sofrimentos.
Logo, porém, recordou que era preciso salvar o amigo e que era
necessário dar mais uns passos. Quem poderia? Consultou sua memória.
Viu um, viu outro e por fim lembrou-se da afilhada de Quaresma, e
foi procurá-la na Real Grandeza.
Chegou, narrou-lhe o fato e as suas sinistras apreensões. Ela estava
só, pois o marido cada vez mais trabalhava para aproveitar os
despojos da vitória; não perdia um minuto, andando atrás de um e de
outro.
Olga lembrou-se bem do padrinho, do seu eterno sonhar, da sua
ternura, da tenacidade que punha em seguir as suas idéias, da sua
candura de donzela romântica...
Durante um instante uma grande pena tomou-a toda inteira e tirou-lhe
a vontade de agir. Pareceu-lhe que era bastante a sua piedade e ela
ia de algum modo dar lenitivo ao sofrimento do padrinho; mas bem
cedo o viu ensangüentado - ele, tão generoso, ele, tão bom, e
pensou em salvá-lo.
- Mas que fazer, meu caro Senhor Ricardo, que fazer? Eu não conheço
ninguém... Eu não tenho relações... Minhas amigas... A Alice, a
mulher do doutor Brandão, está fora... A Cassilda, a filha do
Castrioto, não pode... Não sei, meu Deus!
E acentuou estas últimas palavras com grande e lancinante desespero.
Os dois ficaram calados. A moça, que estava sentada, tomou a cabeça
entre as mãos e as suas unhas longas e aperoladas engastaram-se nos
seus cabelos negros. Ricardo estava de pé e aparvalhado.
- Que hei de fazer, meu Deus? repetiu ela.
Pela primeira vez, ela sentiu que a vida tinha coisas
desesperadoras. Possuía a mais forte disposição de salvar seu
padrinho: faria sacrifício de tudo, mas era impossível, impossível!
Não havia um meio; não havia um caminho. Ele tinha que ir para o
posto de suplício, tinha que subir o seu Calvário, sem esperança de
ressurreição.
- Talvez seu marido, disse Ricardo.
Pensou um pouco, demorou-se mais no exame do caráter do esposo; mas,
em breve, viu bem que o seu egoísmo, a sua ambição e a sua
ferocidade interesseira não permitiriam, que ele desse o mínimo
passo.
- Qual, esse...
Ricardo não sabia o que aconselhá-la e olhava sem pensamento os
móveis e a montanha negra e alta que se avistava da sala onde
estavam. Queria encontrar um alvitre, um conselho; mas nada!
A moça continuava a cravar os dedos nos seus cabelos negros e a
olhar a mesa em que repousavam os seus cotovelos. O silêncio era
augusto.
Num dado momento, Ricardo teve uma grande alegria no olhar e disse:
- Se a senhora fosse lá...
Ela levantou a cabeça; os seus olhos se dilataram de espanto e o
rosto lhe ficou rígido. Pensou um pouco, um nada, e falou com
firmeza:
- Vou.
Ricardo ficou só e sentou-se, Olga foi vestir-se.
Ele então pensou com admiração naquela moça que por simples amizade
se dava a tão arriscado sacrifício, que tinha a alma tão ao alcance
dela mesma e a sentiu bem longe desse nosso mundo, deste nosso
egoísmo, dessa nossa baixeza e cobriu a sua imagem com um grande
olhar de reconhecimento.
Não tardou que ela ficasse pronta e ainda abotoava as luvas, na sala
de jantar, quando o marido entrou. Vinha radiante, com os seus
grandes bigodes e o seu rosto redondo cheio de satisfação de si
mesmo. Nem fez menção de ter visto Ricardo e foi logo direto à
mulher:
- Vais sair?
Ela, afogueada pela ânsia desesperada de salvar Quaresma, disse com
certa vivacidade:
- Vou.
Armando ficou admirado de vê-la falar daquele modo. Voltou-se um
instante para Ricardo, quis interrogá-lo, mas logo, dirigindo-se à
mulher, perguntou com autoridade:
- Onde vais?
A mulher não lhe respondeu logo e, por sua vez, o doutor interrogou
o trovador:
- Que faz o senhor aqui?
Coração dos Outros não teve ânimo de responder; adivinhava uma cena
violenta que ele teria querido evitar; mas Olga adiantou-se:
- Vai acompanhar-me ao Itamarati, para salvar da morte meu
padrinho. Já sabe?
O marido pareceu acalmar-se. Acreditou que, com meios suasórios,
poderia evitar que a mulher desse passo tão perigoso para os seus
interesses e ambições. Falou docemente:
- Fazes mal.
- Por quê? perguntou ela com calor.
- Vais comprometer-me. Sabes que...
Ela não lhe respondeu logo e mirou-o um instante com os seus grandes
olhos cheios de escárnio; mirou-o um, dois minutos; depois, riu-se
um pouco e disse:
- É isto! “Eu”, porque “eu”, porque “eu”, é só “eu” para aqui, “eu”
para ali... Não pensas noutra coisa... A vida é feita para ti, todos
só devem viver para ti... Muito engraçado! De forma que eu (agora
digo “eu” também) não tenho direito de me sacrificar, de provar a
minha amizade, de ter na minha vida um traço superior? É
interessante! Não sou nada, nada! Sou alguma coisa como um móvel, um
adorno, não tenho relações, não tenho amizades, não tenho caráter?
Ora!...
Ela falava, ora vagarosa e irônica, ora rapidamente e apaixonada; e
o marido tinha diante de suas palavras um grande espanto, Ele vivera
sempre tão longe dela que não a julgara nunca capaz de tais assomos.
Então aquela menina? Então aquele bibelot? Quem lhe teria ensinado
tais coisas? Quis desarmá-la com uma ironia e disse risonho:
- Estás no teatro?
Ela lhe respondeu logo:
- Se é só no teatro que há grandes coisas, estou.
E acrescentou com força:
- É o que te digo: vou e vou, porque devo, porque quero, porque é
do meu direito.
Apanhou a sombrinha, concertou o véu e saiu solene, firme, alta e
nobre. O marido não sabia o que fazer. Ficou assombrado e assombrado
e silencioso viu-a sair pela porta fora.
Em breve, estava no palácio da Rua Larga. Ricardo não entrou: deixou
que a moça o fizesse e foi esperá-la no Campo de Sant’Ana,
Ela subiu. Havia um imenso burburinho, uma agitação de entradas e
saídas. Toda a gente queria mostrar-se a Floriano, queria
cumprimentálo, queria dar mostras da sua dedicação, provar os seus
serviços, mostrandose co-participante na sua vitória. Lançavam mão
de todos os meios, de todos os planos, de todos os processos. O
ditador tão acessível antes, agora se esquivava. Havia quem lhe
quisesse beijar as mãos, como ao papa ou a um imperador; e ele já
tinha nojo de tanta subserviência. O califa não se supunha sagrado e
aborrecia-se.
Olga falou aos contínuos, pedindo ser recebida pelo marechal. Foi
inútil. A muito custo conseguiu falar a um secretário ou
ajudante-de-ordens. Quando ela lhe disse a que vinha, a fisionomia
terrosa do homem tornou-se de oca e sob as suas pálpebras correu um
firme e rápido lampejo de espada:
- Quem, Quaresma? disse ele. Um traidor! Um bandido!
Depois, arrependeu-se da veemência, fez com certa delicadeza:
- Não é possível, minha senhora. O marechal não a atenderá.
Ela nem lhe esperou o fim da frase. Ergueu-se orgulhosamente,
deu-lhe as costas e teve vergonha de ter ido pedir, de ter descido
do seu orgulho e ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o
seu pedido. Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e
heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo
inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua
personalidade moral, sem a mácula de um empenho que diminuísse a
injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus
algozes que eles tinham direito de matá-lo.
Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se
lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens,
das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de
dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os
ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas; viu os
bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma
linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do
campo... Tinha havido grandes e inúmeras modificações. Que fora
aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações
nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos
mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo
Coração dos Outros.
Todos os Santos (Rio de Janeiro), janeiro - março de 1911.
\ No newline at end of file
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new file mode 100644
index 0000000..375b856
Binary files /dev/null and b/1ano/2semestre/poo/guides/POO-2021-aula03.pdf differ
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deleted file mode 100644
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--- a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/README.md
+++ /dev/null
@@ -1,6 +0,0 @@
-# Programação Orientada a Objetos
-## Código fonte para as diversas aulas de POO
-### Métodos extra no diretório [*utils*](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/src/utils)
-
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deleted file mode 100644
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Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula01/KmToMiles.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
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Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula01/MyFirstClass.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
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Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula01/PescadaDeRaboNaBoca.class and /dev/null differ
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+++ /dev/null
@@ -1,9 +0,0 @@
-# Programação Orientada a Objetos
-## Aula 01
-### Tópico principal da aula: Introduction, Basics
-
-* [Guião](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/guides/POO-2021-aula01.pdf)
-* [Slides](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/slides/POO_01_Introdução.pdf)
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index 53a0036..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula01/ReadFileExample.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
index 217dd3c..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula01/StringExample.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
index cf29054..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/AverageSpeed.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
index 43c5fc4..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/CelciusToFahrenheit.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
index 1233309..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/Countdown.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
index 4fa3fe4..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/DistanceBetweenPoints.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/EnergyToHeatWater.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/EnergyToHeatWater.class
deleted file mode 100644
index 0ec5dff..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/EnergyToHeatWater.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
index 0a8a46f..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/Investment.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
index adde2b5..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/KmToMiles.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/PythagoreanTheorem.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/PythagoreanTheorem.class
deleted file mode 100644
index 3802356..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/PythagoreanTheorem.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/README.md b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/README.md
deleted file mode 100755
index de42a52..0000000
--- a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/README.md
+++ /dev/null
@@ -1,18 +0,0 @@
-# Programação Orientada a Objetos
-## Aula 02
-### Tópico principal da aula: Flux Control
-
-* [Guião](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/guides/POO-2021-aula02.pdf)
-* [Slides](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/slides/POO_02_ControloFluxo.pdf)
-
-### Exercise List
-| Exercise Number | File Name | Exercise Number | File Name |
-|-----------------|----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------|-----------------|--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------|
-| 1 | [KmToMiles.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/KmToMiles.java) | 6 | [SecsToHMS.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/SecsToHMS.java) |
-| 2 | [CelciusToFahrenheit.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/CelciusToFahrenheit.java) | 7 | [DistanceBetweenPoints.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/DistanceBetweenPoints.java) |
-| 3 | [EnergyToHeatWater.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/EnergyToHeatWater.java) | 8 | [PythagoreanTheorem.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/PythagoreanTheorem.java) |
-| 4 | [Investment.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/Investment.java) | 9 | [Countdown.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/Countdown.java) |
-| 5 | [AverageSpeed.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/AverageSpeed.java) | 10 | [RealNumbers.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02/RealNumbers.java) |
-
----
-*Pode conter erros, caso encontre algum, crie um* [*ticket*](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/issues/new)
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/RealNumbers.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/RealNumbers.class
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index 96ff9d6..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/RealNumbers.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
index 6f8c06b..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/aula02/SecsToHMS.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100755
index f49dbb0..0000000
--- a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/README.md
+++ /dev/null
@@ -1,6 +0,0 @@
-# Programação Orientada a Objetos
-## Exercícios TP
-### Resoluções para exercícios sugeridos nas aulas Teórico-Práticas
-
----
-*Pode conter erros, caso encontre algum, crie um* [*ticket*](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/issues/new)
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp01/BankInterest.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp01/BankInterest.class
deleted file mode 100644
index 0651117..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp01/BankInterest.class and /dev/null differ
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deleted file mode 100644
index 15ff93c..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp01/Table.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp01/Temperature.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp01/Temperature.class
deleted file mode 100644
index 9c46d70..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp01/Temperature.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Array1.md b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Array1.md
deleted file mode 100644
index 82c4075..0000000
--- a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Array1.md
+++ /dev/null
@@ -1,23 +0,0 @@
-# Exercícios de Arrays
-
-## Ex1
-```java
-final int LENGHT = 100;
-int[] a = new int[LENGHT];
-// Code for filling a ommited
-for (int = 99; i >= 0; i--)
-{
- System.out.print(a[i]);
- if (i > 0) { System.out.print(', '); }
-}
-```
-
-## Ex2
-```java
-int[] numbers = new int[100];
-for (int k = 0; k < numbers.length; k++)
-{
- numbers[k] = k + 1;
-}
-```
-
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/NumberOfDays.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/NumberOfDays.class
deleted file mode 100644
index dbb0162..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/NumberOfDays.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Numbers.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Numbers.class
deleted file mode 100644
index 8323d22..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Numbers.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Strings1.md b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Strings1.md
deleted file mode 100644
index ea8d514..0000000
--- a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Strings1.md
+++ /dev/null
@@ -1,9 +0,0 @@
-# Tabela Exercício 1 de Strings
-
-| Question | Answer |
-|---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------|------------------|
-| What is the length of the string below?
String str = "Java Program" | 12 |
-| With str as defined above, give a call to the substring method that returns the substring "gram". | str.substring(8) |
-| Use the string concatenation operator to change the string variable str to contain the string "Java Programming". | str += "ming" |
-| What does the following statement sequence print?
String str = "Harry";
int n = str.length();
String mystery = str.substring(0, 1) + str.substring(n - 1, n);
System.out.println(mystery); | Hy |
-| Consider the following statement sequence. If the user provides the input John Q. Public, what is printed? If an error occurs, type error.
Scanner in = new Scanner(System.in);
String first = in.next();
String last = in.next();
System.out.println(last + ", " + first); | Q., John |
\ No newline at end of file
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Words.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Words.class
deleted file mode 100644
index aa87939..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/tp_codecheck/tp02/Words.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/utils/MathTools.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/utils/MathTools.class
deleted file mode 100644
index d1dcc90..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/utils/MathTools.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/utils/UserInput.class b/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/utils/UserInput.class
deleted file mode 100644
index 9748a8d..0000000
Binary files a/1ano/2semestre/poo/out/production/poo/utils/UserInput.class and /dev/null differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/slides/POO_02_Modularidade_MetodosEstaticos.pdf b/1ano/2semestre/poo/slides/POO_02_Modularidade_MetodosEstaticos.pdf
new file mode 100644
index 0000000..eb0f317
Binary files /dev/null and b/1ano/2semestre/poo/slides/POO_02_Modularidade_MetodosEstaticos.pdf differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/slides/POO_03_Classes.pdf b/1ano/2semestre/poo/slides/POO_03_Classes.pdf
new file mode 100644
index 0000000..ec33ca7
Binary files /dev/null and b/1ano/2semestre/poo/slides/POO_03_Classes.pdf differ
diff --git a/1ano/2semestre/poo/src/README.md b/1ano/2semestre/poo/src/README.md
index 4cf3d18..c85c255 100644
--- a/1ano/2semestre/poo/src/README.md
+++ b/1ano/2semestre/poo/src/README.md
@@ -2,5 +2,12 @@
## Código fonte para as diversas aulas de POO
### Métodos extra no diretório [*utils*](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/src/utils)
+## Índice
+| Aula nº | Tópicos |
+|-----------------------------------------------------------------------------------------|----------------------|
+| [01](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/src/aula01) | Introduction, Basics |
+| [02](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/src/aula02) | Flux Control |
+| [03](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/src/aula03) | Classes |
+
---
*Pode conter erros, caso encontre algum, crie um* [*ticket*](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/issues/new)
diff --git a/1ano/2semestre/poo/src/aula02/README.md b/1ano/2semestre/poo/src/aula02/README.md
index de42a52..5fdc3f6 100755
--- a/1ano/2semestre/poo/src/aula02/README.md
+++ b/1ano/2semestre/poo/src/aula02/README.md
@@ -3,7 +3,8 @@
### Tópico principal da aula: Flux Control
* [Guião](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/guides/POO-2021-aula02.pdf)
-* [Slides](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/slides/POO_02_ControloFluxo.pdf)
+* [Slides 1](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/slides/POO_02_ControloFluxo.pdf)
+* [Slides 2](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/slides/POO_02_Modularidade_MetodosEstaticos.pdf)
### Exercise List
| Exercise Number | File Name | Exercise Number | File Name |
diff --git a/1ano/2semestre/poo/src/aula02/RealNumbers.java b/1ano/2semestre/poo/src/aula02/RealNumbers.java
index 76969bf..9b4675f 100644
--- a/1ano/2semestre/poo/src/aula02/RealNumbers.java
+++ b/1ano/2semestre/poo/src/aula02/RealNumbers.java
@@ -16,17 +16,16 @@ public class RealNumbers {
double min = first;
double sum = first;
- while (true) {
- double n = sin.nextDouble();
- if (n == first)
- break;
+ double n;
+ do {
+ n = sin.nextDouble();
if (n > max)
max = n;
if (n < min)
min = n;
sum += n;
++readNumbers;
- }
+ } while (n != first);
System.out.printf("Valor máximo: %f\nValor mínimo: %f\nMédia: %f\nTotal: %f\n", max, min, (float) sum/readNumbers, sum);
diff --git a/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Calendar.java b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Calendar.java
new file mode 100644
index 0000000..ba3711c
--- /dev/null
+++ b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Calendar.java
@@ -0,0 +1,81 @@
+package aula03;
+
+import utils.UserInput;
+import java.util.Scanner;
+
+// Solução do exercício 5
+
+public class Calendar {
+ public static void main(String[] args) {
+ // Data contains: {month, year, firstDay}
+ int[] data = getValues();
+ int monthDays = monthDays(data[0], data[1]);
+ printCalendar(data, monthDays);
+ System.out.println();
+ }
+
+ private static int[] getValues() {
+ Scanner sin = new Scanner(System.in);
+
+ System.out.print("Introduza o mês/ano no formato mm/yyyy: ");
+ String[] monthYear = sin.next().split("/");
+ System.out.print("1 = Segunda\n2 = Terça\n3 = Quarta\n4 = Quinta\n5 = Sexta\n6 = Sábado\n7 = Domingo\nIntroduza o dia da semana em que começa o mês (1 a 7): ");
+ int firstDay = (int) UserInput.getNumberBetween(sin, 1, 7);
+
+ sin.close();
+
+ return new int[]{Integer.parseInt(monthYear[0]), Integer.parseInt(monthYear[1]), firstDay};
+ }
+
+ private static int monthDays(int month, int year) {
+ switch (month) {
+ case 2:
+ if (year % 100 == 0 ? year % 400 == 0 : year % 4 == 0)
+ return 29;
+ else
+ return 28;
+ case 4:
+ case 6:
+ case 9:
+ case 11:
+ return 30;
+ default:
+ return 31;
+ }
+ }
+
+ private static void printCalendar(int[] data, int monthDays) {
+ System.out.printf("\n%13s %d\n", monthName(data[0]), data[1]);
+ System.out.println("Dom Seg Ter Qua Qui Sex Sab");
+
+ if (data[2] != 7)
+ for (int i = 0; i < data[2]; i++)
+ System.out.print(" ");
+
+ for (int monthDay = 1; monthDay <= monthDays; monthDay++) {
+ System.out.printf("%3d ", monthDay);
+ if ((monthDay + data[2]) % 7 == 0)
+ System.out.println();
+ }
+ }
+
+ private static String monthName(int month) {
+ /* Note that this does not work in codecheck.
+ In codecheck use the usual switch case.
+ */
+ return switch (month) {
+ case 1 -> "Janeiro";
+ case 2 -> "Fevereiro";
+ case 3 -> "Março";
+ case 4 -> "Abril";
+ case 5 -> "Maio";
+ case 6 -> "Junho";
+ case 7 -> "Julho";
+ case 8 -> "Agosto";
+ case 9 -> "Setembro";
+ case 10 -> "Outubro";
+ case 11 -> "Novembro";
+ default -> "Dezembro";
+ };
+ }
+}
diff --git a/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Grades.java b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Grades.java
new file mode 100644
index 0000000..0407fbb
--- /dev/null
+++ b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Grades.java
@@ -0,0 +1,46 @@
+package aula03;
+
+import java.util.Scanner;
+import utils.UserInput;
+
+// Solução do exercício 4
+
+public class Grades {
+ private static final Scanner sin = new Scanner(System.in);
+
+ public static void main(String[] args) {
+ System.out.print("Quantos alunos tem a turma? ");
+ int studentCount = sin.nextInt();
+ Student[] students = new Student[studentCount];
+
+ for (int i = 0; i < studentCount; i++) {
+ System.out.printf("Nota teórica do aluno %d: ", i+1);
+ double notaT = UserInput.getNumberBetween(sin, 0, 20);
+ System.out.printf("Nota prática do aluno %d: ", i+1);
+ double notaP = UserInput.getNumberBetween(sin, 0, 20);
+ students[i] = new Student(notaT, notaP);
+ }
+
+ printGrades(students);
+ System.out.println();
+ }
+
+ private static void printGrades(Student[] students) {
+ System.out.println("NotaT NotaP Pauta");
+ for (Student student : students) {
+ System.out.printf("%5.1f %5.1f %5d\n", student.notaT, student.notaP, student.notaFinal);
+ }
+ }
+}
+
+class Student {
+ public double notaT;
+ public double notaP;
+ public int notaFinal;
+
+ public Student(double notaT, double notaP) {
+ this.notaT = notaT;
+ this.notaP = notaP;
+ this.notaFinal = (notaT < 7 || notaP < 7) ? 66 : (int) Math.round(0.4 * notaT + 0.6 * notaP);
+ }
+}
diff --git a/1ano/2semestre/poo/src/aula03/HiLo.java b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/HiLo.java
new file mode 100644
index 0000000..b95fbb5
--- /dev/null
+++ b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/HiLo.java
@@ -0,0 +1,39 @@
+package aula03;
+
+import utils.UserInput;
+import java.util.Random;
+import java.util.Scanner;
+
+// Solução do exercício 3
+
+public class HiLo {
+ private static final Scanner sin = new Scanner(System.in);
+ private static final Random rand = new Random();
+
+ public static void main(String[] args) {
+ String toContinue;
+ do {
+ game();
+ System.out.print("Pretende continuar? Prima (S)im ");
+ toContinue = sin.next();
+ } while (toContinue.equals("S") || toContinue.equals("Sim"));
+ }
+
+ private static void game() {
+ int secret = rand.nextInt(1, 100);
+ int i = 1;
+ int n;
+ while (true) {
+ System.out.printf("Tentativa %d: ", i);
+ n = (int) UserInput.getNumberBetween(sin, 1, 100);
+ if (n > secret)
+ System.out.println("Tentativa demasiado alta");
+ else if (n < secret)
+ System.out.println("Tentativa demasiado baixa");
+ else
+ break;
+ i++;
+ }
+ System.out.printf("Acertou, o número era %d, foram precisas %d tentativas.\n", secret, i);
+ }
+}
diff --git a/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Investment.java b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Investment.java
new file mode 100644
index 0000000..fac08a3
--- /dev/null
+++ b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Investment.java
@@ -0,0 +1,28 @@
+package aula03;
+
+import utils.UserInput;
+import java.util.Scanner;
+
+// Solução do exercício 2
+
+public class Investment {
+ public static void main(String[] args) {
+ Scanner sin = new Scanner(System.in);
+
+ int investment;
+ do {
+ System.out.print("Introduza o investimento inicial (múltiplo de 1000): ");
+ investment = sin.nextInt();
+ } while (investment <= 0 || investment % 1000 != 0);
+
+ System.out.print("Introduza a taxa a aplicar (entre 0% e 5%): ");
+ double tax = UserInput.getNumberBetween(sin, 0, 5);
+
+ for (int i = 1; i <= 12; i++) {
+ investment *= 1+tax/100;
+ System.out.printf("Investimento em %d %s: %d\n", i, i==1?"mês":"meses", investment);
+ }
+
+ sin.close();
+ }
+}
diff --git a/1ano/2semestre/poo/src/aula03/PrimesSum.java b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/PrimesSum.java
new file mode 100644
index 0000000..13425ad
--- /dev/null
+++ b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/PrimesSum.java
@@ -0,0 +1,33 @@
+package aula03;
+
+import utils.UserInput;
+import java.util.Scanner;
+
+// Solução do exercício 1
+
+public class PrimesSum {
+ public static void main(String[] args) {
+ Scanner sin = new Scanner(System.in);
+
+ System.out.println("Introduza um número:");
+ int n = (int) UserInput.getPositiveNumber(sin);
+
+ int sum = 0;
+ for (int i = 0; i <= n; i++)
+ if (isNumPrime(i))
+ sum += i;
+
+ System.out.printf("A soma dos números primos até %d é %d\n", n, sum);
+
+ sin.close();
+ }
+
+ private static boolean isNumPrime(int n) {
+ if (n == 1)
+ return false;
+ for (int i = 2; i < n; i++)
+ if (n % i == 0)
+ return false;
+ return true;
+ }
+}
diff --git a/1ano/2semestre/poo/src/aula03/README.md b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/README.md
new file mode 100755
index 0000000..530859c
--- /dev/null
+++ b/1ano/2semestre/poo/src/aula03/README.md
@@ -0,0 +1,18 @@
+# Programação Orientada a Objetos
+## Aula 03
+### Tópico principal da aula: Classes
+
+* [Guião](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/guides/POO-2021-aula03.pdf)
+* [Slides](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/tree/master/1ano/2semestre/poo/slides/POO_03_Classes.pdf)
+
+### Exercise List
+| Exercise Number | File Name |
+|-----------------|----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------|
+| 1 | [PrimesSum.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula03/PrimesSum.java) |
+| 2 | [Investment.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Investment.java) |
+| 3 | [HiLo.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula03/HiLo.java) |
+| 4 | [Grades.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Grades.java) |
+| 5 | [Calendar.java](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/blob/master/1ano/2semestre/poo/src/aula03/Calendar.java) |
+
+---
+*Pode conter erros, caso encontre algum, crie um* [*ticket*](https://github.com/TiagoRG/uaveiro-leci/issues/new)